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Foto diagrama do projeto Vocabulário político para processos estéticos. Capacete, Rio de Janeiro, 2014.

Vocabulários interseccionando:
uma transversal no Brasil entre Junhos disruptivos

Cristina Ribas

A imaginação política se destravou e produziu um corte no tempo político.”

Peter Pál Pelbart, Eu sou ninguém, 19/07/20131

Seções do texto

1. Apresentação
2. Língua, linguagem, capitalismo financeiro: capturas e proliferações de sentido
3. Transversalidade
4. Método e metodologias: um encontro transformador?
5. O Livro-invenção e algumas intersecções

1. Apresentação

Este texto desenha uma cartografia narrativa e analítica do processo de realização do livro Vocabulário político para processos estéticos, concebido e editado por mim, com a participação de mais de trinta autores. O livro foi realizado a partir do Rio de Janeiro, com patrocínio da Funarte/Edital Redes 2013. Ele surge em meio ao ciclo de manifestações que colocam em questão as políticas antidemocráticas e neodesenvolvimentistas no Brasil, um ciclo que culmina no que se chamou de Jornadas de Junho, Primavera do Brasil, Ciclo de Junho, Junho disruptivo, entre outras denominações.2 O livro é homônimo ao projeto, que aconteceu por meio de encontros diversos em abril de 2014. Vocabulário político foi lançado em Janeiro de 2015 e tem distribuição gratuita. Também pode ser acessado aqui. Este texto é uma cartografia porque ele narra uma parte do processo de realização do projeto, levanta algumas marcas desse processo e abre novos caminhos de investigação.

A concepção do projeto Vocabulário político para processos estéticos aconteceu paralelamente ao ciclo de manifestações que surgiu no Brasil a partir de meados de Abril de 2013, com as primeiras manifestações do Movimento Passe Livre (MPL) em Porto Alegre, Florianópolis e Salvador. O objetivo do projeto não era de antemão ser uma estratégia conectada apenas ao ciclo de manifestações, mas a criação de uma estratégia que provocasse uma espécie de transversal – um atravessamento – nos espaços da criação e da política de alguns circuitos de produção estética e política no Brasil, recentemente mobilizados também pelo ciclo de manifestações. O objetivo central do projeto era trabalhar o mapeamento dos conceitos e práticas a partir de um encontro de diferenças, de uma coletividade múltipla (ou diversa), com participantes de várias partes do país.3 Com a coleção de conceitos e práticas elencados pelos participantes, o livro se tornaria então a produção de um para-além-de-um-glossário, de um arquivo ou de uma caixa de ferramentas para processos coletivos.4 5 Lidamos com os conceitos não a partir de uma noção de objetividade como a que podemos encontrar em outras caixas de ferramentas. Produzimos entradas-conceitos que volta e meia podem levar o leitor a descobrir outras partidas, outras ferramentas, ou seja, interseccionar com outros vocabulários.

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Foto do projeto Vocabulário político para processos estéticos. Capacete, Rio de Janeiro, 2014.

O Vocabulário político é então um livro-invenção com cerca de trinta vocábulos expressos em linguagens diversas, que fazem uso de narrativa, relato, argumentação crítica e teórica, ficção, diagramas, poesia, imagens, entre outras formas expressivas. Uma grande parte desse conteúdo surge junto com ou passa pelos Junhos disruptivos. O presente texto persegue duas perguntas ou dois pressupostos que exponho no Editorial/Desditorial do livro e investiga em especial o conceito de “transversalidade” e a possibilidade de “interseccionarmos” vocabulários. As duas perguntas que exponho no Editorial centram tanto no “fazer” de um vocabulário (“como fazer um vocabulário?” ou o seu método), como em seus efeitos (“o que o vocabulário quer fazer?”). Movendo-me entre essas duas perguntas procuro abrir análises sobre os efeitos do Vocabulário político no contexto político e cultural do Brasil hoje.

O conceito de “transversalidade” é pensado aqui a partir da prática da “cartografia” conceitualizada por Félix Guattari e Suely Rolnik e desenvolvido no Brasil hoje em pesquisas acadêmicas transversalistas por pesquisadores como Virgínia Kastrup, Eduardo Passos, Regina Benevides de Barros e Tania Maria Galli da Fonseca, entre muitos outros.6 O conceito de “interseccionalidade”, por sua vez, surge das lutas feministas e da necessidade de que o “feminismo branco” saia de uma posição central nas lutas feministas e dê espaço para um “feminismo interseccional”.7 A “interseccionalidade” tem por objetivo criar passagens, cruzamentos ou linhas de solidarização entre lutas diversas – entre aquelas que se constituem ao redor das noções de raça, sexualidade, classe e gênero. Neste texto não vou investigar o “feminismo interseccional”, mas vou me apropriar do conceito de interseccionalidade sem descolá-lo de seu fundo político e tentando ativá-lo no espaço e no modo de acontecimento dos vocabulários.

A análise do processo de realização do livro é, na prática, a investigação da possibilidade de aplicar a transversalidade e ativar a interseccionalidade em encontros como esse – encontros que procuram ser produtivos ao colocar em contato práticas artísticas e políticas, passando por outras práticas tais como as educacionais, midiáticas, filosóficas.8 Para fazer o livro convidei pessoas ou grupos cujas práticas, em grande parte, surgem a partir de lugares híbridos, ensaiam e performam intervenções em campos do conhecimento diversos, ou a partir de transversais em e entre linguagens. Produzem arte, estratégias de pesquisa e produção de conhecimento e aprendizagem radical, intervenção urbana, criam dispositivos vários, fazem performance, mobilização social e política, tradução, organizam livros, participam de grupos de educação popular, organizam oficinas de copesquisa, festivais de veganismo, de cultura digital, de cartografia crítica, dão aulas de equitação, entre outros.

Foram convidados o grupo Agência Transitiva e, individualmente, Andre Bassères, André Luiz Mesquita, Beatriz Lemos, Breno Silva, Cecilia Cotrim, Davi Marcos, Daniela Mattos, Enrico Rocha, Giseli Vasconcelos, Graziela Kunsch, Inês Nin, Isabel Ferreira, Jeferson Andrade, Julia Ruiz, Juliana Dorneles, Kadija de Paula, Laura Lima, Lucas Rodrigues, Lucas Sargentelli, Margit Leisner, Pedro Mendes, Raphi Soifer, Rodrigo Nunes e Sara Uchoa.9 Inês e Sara faziam parte também da equipe, trabalhando respectivamente no desenho do site e na produção do projeto. Se somaram na edição do livro com textos ou com comentários Anamalia Ribas, Annick Kleizen, Bárbara Lito, Geo Abreu, Steffania Paola, Tiago Régis, Luiza Cilente. Textos de Brian Holmes, Fernando Monteiro (Coletivo Das Lutas), Hélio Oiticica, Josinaldo Medeiros e do “organismo” carioca RhR foram também adicionados. O livro foi desenhado por Priscila Gonzaga, da Editora Aplicação.

O projeto toma como base a compreensão de que os processos criativos e políticos passam também pela criação de conceitos que mobilizam a própria prática, ou seja, de que não criamos sem modificar ou, em outros termos, sem atualizar conceitos e práticas. Nesse sentido, um mapeamento dos enunciados, discursos e signos em proliferação na atualidade pode nos mostrar trânsitos produtivos e emergentes de significativo efeito político e potencial criativo.10 O desejo de abordar os espaços produtivos da criação e da política provocando entre eles uma transversal vem de minha própria experiência, durante anos, militando em movimentos sociais e ambientais e simultaneamente realizando ações em espaços públicos mais relacionadas a linguagens do campo da arte, sejam elas a intervenção urbana ou a arte comunitária e participativa (conceitos em parte problemáticos, que não pretendo desenvolver aqui). O Vocabulário político me encorajou a desenhar uma hipótese – afirmada por muitos teóricos da política – de que a política ela mesma prescinde de criação, que a política na sua dimensão criativa se descola da política de cartilha e prescinde dos encontros transformativos que engajam processos de subjetivação vários, que abrem processos autonomizantes. Por isso, modos de fazer que se colocam em territórios híbridos parece que dão conta da complexidade dos encontros políticos contemporâneos, assim como da complexidade da produção da vida ela mesma em suas múltiplas singularidades e comunalidades.

O espaço das ruas do Brasil no ciclo de manifestações, nos Junhos disruptivos, para aqueles que estavam ou não literalmente nas ruas, foi marcado pelo desenho de diversas transversais – como aquela manifestação que reclamava o corpo de Amarildo Dias de Souza11, partindo da Rocinha, e que rompe a dicotomia do enunciado “a favela desce para o asfalto”, conclamando o “asfalto” ele mesmo a conjurar aquele corpo. Como escreveu Barbara Szaniecki, configurou-se, junto do meme “Onde está o Amarildo?”, “uma maré de formas expressivas que atravessou a polis real e virtual manifestando sua dor pela chacina de jovens na Maré até o desaparecimento de Amarildo na Rocinha.”12 Na interseccionalidade daquela conjuração, uma proliferação de enunciados, escutas, novos gritos, surgem efeitos não apenas políticos, mas também estéticos.

Paolo Virno afirma que a linguagem é uma capacidade política por si. Para ele, o discurso articulado é uma práxis virtuosa, cujo fim último é o exercício dessa faculdade. A linguagem para ele é simultaneamente produção (poiesis) e cognição (episteme). A política, segundo o autor, faz corpo junto com o próprio ser da linguagem. Virno analisa a capacidade da linguagem e da performance virtuosa (comparando o trabalhador contemporâneo com o artista) e a captura dessa capacidade como modo produtivo. Ele vê aí um aspecto de autonomização do trabalhador, em que a performance linguística se torna uma “atividade sem obra”.13 Contudo, é neste mesmo ponto de absoluta abstração que residem a captura e a reprodução de valor sobre uma potência vital. Como diz Franco Bifo Berardi, é aí que se descolam o corpo real do trabalhador e a reprodução do valor, visto que na era do capital financeiro já não se precisa nem mesmo de bens intercambiáveis, da mesma maneira que corpos e vidas se tornam descartáveis.14

Numa das primeiras conversas do projeto, Breno Silva expôs como percebia a concepção de um novo vocabulário. Para ele, o vocabulário que surgisse a partir de nosso projeto poderia ser ativado pela escrita de textos curtos, que operassem inserções à forma de um glossário; a partir daí, então, é que seria possível observar como novos vocabulários poderiam surgir. Breno não propôs que esses dois momentos fossem assim distintos (a criação do vocabulário e a sua efetuação), afastados um do outro, mas elaborou claramente como é por tempos atomizados, por cortes ou pela observação de fragmentos de tempo que podemos perceber a constituição de novos vocabulários. Quando propus que partíssemos da noção de vocabulário, foi no intuito de poder observar a dimensão viva e relacional da linguagem, para que, escutando uns aos outros, pudéssemos operar uma espécie de análise das palavras, dos conceitos, dos signos que mobilizamos, criamos, negamos, ressignificamos, entre outros. De alguma maneira, desejei que pudéssemos olhar naquele Abril disruptivo para os vocabulários já em intersecção. É a partir daí que surge uma operação artificial que, de alguma maneira, dá forma aos nossos vocabulários mais ou menos invisíveis – passando pela escrita, pelo diagrama, pelo desenho, pela imagem. O livro-invenção é então essa Estratégia (como escreveu Julia Ruiz no livro Vocabulário político) de produção de um mapa complexo, de tempo atomizado. No vocabulário das cartografias o “mapeamento” é ao mesmo tempo uma apresentação, dando visibilidade e expressão, uma apresentação produtiva, e não uma representação.15

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Desenhos/diagramas do processo. Cristina Ribas, 2014.

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Desenhos/diagramas do processo. Cristina Ribas, 2014.

2. Língua, linguagem, capitalismo financeiro: capturas e proliferações de sentido

A linguagem ou como nos comunicamos, como falamos (e de que falamos, se falamos) são constitutivos de nossas vidas, das singularidades que desenhamos e de realidades comuns às quais pertencemos e que constituímos. A linguagem, por isso, se relaciona diretamente à produção da vida e à produção das línguas e de outras linguagens, à criação de outros modos de expressão e comunicação. Os vocabulários, portanto, são parte da dimensão viva da linguagem e se manifestam em nossas práticas artísticas e políticas. Os vocabulários são formados por múltiplas miscigenações, que expõem as marcas de nossas individualidades a partir de registros plurais (a geração a que pertencemos, nosso gênero, nossas relações familiais e de poder, nosso trabalho, nossas etnias, nossas línguas). Mas a linguagem, assim como os vocabulários, não estão diretamente relacionados à fala, à capacidade da fala como fato comunicativo. Nossos vocabulários podem – em situações de censura, trauma e silenciamento – permanecer como linguagem não enunciada, podem permanecer numa dimensão não audível nem visível das demais expressões humanas. Podem estar sendo estrategicamente não ouvidos nem compreendidos, de maneira que fiquem obscurecidos, dessignificados.

A força dos vocabulários em intersecção, por sua vez, produz enunciações. Como um grito que – incontrolável – abre um espaço diante do corpo e encontra outros corpos que se contaminam, que reproduzem e modulam aquele enunciado. A força da intersecção de vocabulários, tal como no encontro social, ou como no Evento (como analisa Rodrigo Nunes no Vocabulário político), pode ser não apenas o espaço de disputa da significação, mas da própria vida. No contexto das manifestações a fusão dos black blocs com a luta dos professores no Rio de Janeiro pode ser pensada como exemplo de força. Contando brevemente, em Outubro de 2013 uma manifestação que fazia parte da agenda da Greve dos Professores Municipais e Estaduais foi amplamente reprimida pela Polícia Militar na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, e os black blocs se uniram aos professores. Com a repressão aos black blocs, criaram-se várias linhas de solidarização, e em especial dois novos blocos, o “Blac Prof” e a “Tropa de Prof”. Estes dois blocos já não permitiam distinguir como atores separados os professores e os black blocs, o que confundia a estratégia da polícia e criava uma solidarização inédita no ciclo de manifestações carioca.

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Foto: Autor desconhecido, circulou na internet. Rio de Janeiro, 2013.

Podemos identificar um dos pontos de partida da força da intersecção de vocabulários e – por outro lado – das causas da supressão dos mesmos – na análise de autores como Paolo Virno, Cristian Marazzi, Franco Bifo Berardi e Félix Guattari16, que, cada um à sua maneira, pontuam que há na atualidade uma subsunção da produção linguística aos modos do capital (cognitivo, financeiro), o que acarreta um achatamento brutal: uma diminuição do potencial de proliferação do sentido da produção social da linguagem.17 Isso não quer dizer que produzimos menos (muito pelo contrário!), mas que há uma semiotização da produção estética e política que desvia da proliferação multitudinária que a potência criativa pode possuir em função de um significante – o valor do capital. Isso quer dizer, como afirma Berardi, que há muito pouco sentido para uma quantidade nunca vista de signos.18 E isso quer dizer, também, que nos tornamos agentes de valoração.

O Brasil19 dos últimos meses e anos, por sua vez, tem manifestado uma proliferação incontrolável de enunciados que demandam a democracia e o direito à manifestação, o cumprimento de direitos civis básicos frente aos gastos irresponsáveis do Estado brasileiro (os “megaeventos”)20, o respeito à vida e à diferença religiosa, o fim da homofobia e do racismo e o fim da violência policial. Essa proliferação incontrolável de enunciados marca passagens muito intensivas entre os processos políticos e estéticos.

Diante do que chamo aqui de uma “questão maior”, que envolve a significação social da linguagem e reprodução de valor no capital financeiro, como podemos criar estratégias de visibilização de vocabulários que proliferem, junto com as lutas, com as vidas, a produção de enunciados diante da macropolítica e da macroeconomia? Há um embate em curso em relação à produção e à significação da produção social, e ele expõe como capital e Estado estão cada vez mais conjugados. Nesse embate antagonizam-se posições distintas, mais ou menos territorializadas, mais ou menos normativas (a não legalização do aborto, o “Estatuto da Família”, entre outros). Torna-se necessário afirmar que o boicote às forças políticas e criadoras das ruas é o boicote à própria potência criativa, e ele acontece em diversas esferas, desde as mídias comunicativas até o próprio governo.21

A defesa da retomada do conceito de multidão por Virno, em Gramática da multidão, vale aqui para pensar o potencial criativo da vida, o potencial de diferir. Virno recupera de Espinosa a definição de multidão que afirma a “pluralidade” e não a massificação (diante das imagens de povo, ou de público). Ele diz: “a multidão é a forma de existência política e social dos muitos enquanto muitos: forma permanente, não episódica nem intersticial”. Ele apresenta um outro diagrama a partir de onde conceitualiza a “multidão” na era pós-fordista, dizendo que

(Há) Uma ampla e notável gama de fenômenos – jogos linguísticos, formas de vida, tendências éticas, características fundamentais do modo atual de produção material – resulta pouco ou nada compreensível se não é a partir do modo de ser dos muitos. Para analisar esse modo de ser é preciso recorrer a um rearranjo conceitual sumamente variado: antropologia, filosofia da linguagem, crítica da economia política, reflexão ética. É preciso cercar o continente-multidão, mudando muitas vezes o ângulo da abordagem.”22

O “como” implícito no recorte acima do texto de Virno é o mesmo “como fazer” no Vocabulário político. Por isso a feitura de um “vocabulário” é uma proposta artificial, capenga23, duvidosa, que possa operar, contudo, como uma “máquina produtiva”. Guattari investe no conceito de máquina em Caosmose, numa concepção ampliada de máquina, uma máquina que se acopla aos processos vitais e se torna “desejante” (Guattari, 1992, pp. 45-46) ou, literalmente, ativadora da libido, produtora de mais desejos. Na perspectiva dos vocabulários, de intersecções entre vocabulários, eles podem se tornar uma máquina que não seja a da “maioridade” da fala (daqueles que já têm voz, ou dos que podem falar), mas que seja também uma máquina que abre escutas e “bulinações”24 que surgem nos processos estéticos e políticos, nas trocas, nas criações, nas transformações subjetivas que quebram a semiótica da macropolítica, que interferem na estrutura do poder do estado, que proliferam as significações sociais.

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Foto do projeto Vocabulário político para processos estéticos. Capacete, Rio de Janeiro, 2014.

3. Transversalidade

Mas então como foi que “fizemos” o Vocabulário político? Ou como foi que definimos, como disse Virno, um “rearranjo conceitual” a partir do qual realizamos o vocabulário? Considerando que o projeto do vocabulário reuniu pessoas temporalmente – não éramos um grupo já constituído a partir de onde culminou a realização do livro –, como é que estabelecemos, a partir do meu convite, um método ou uma metodologia para fazer o vocabulário? Processos coletivos prescindem de um “como fazer”, senão correríamos o risco de ficarmos conversando confortavelmente durante uma semana sem sair do encontro com um programa de trabalho. Julia Ruiz perguntou (problematizando) se iríamos fazer um vocabulário político que pudesse “ensinar” algo para os processos estéticos, e muita gente sugeriu (e segue sugerindo) que o Vocabulário fosse o contrário: estético para processos políticos! Esse “como fazer” é uma mistura de estratégia com método. Por um lado eu não desejava impor “métodos” e esperava que os participantes pudessem trazer suas próprias metodologias como parte de seus aprendizados intrínsecos em suas vivências e seus processos coletivos. Eu havia concebido, para começar, uma espécie de programa para nossa semana de trabalho, um programa que solicitava a proposição de atividades pelos participantes.

Entre várias metodologias que já usei, mobilizei e estudei tanto em projetos de arte, na universidade e na pesquisa independente, como nos processos políticos dos quais participei, trouxe para as semanas de trabalho do vocabulário tanto noções de pesquisa (que na minha prática se inspira na “pesquisa militante” de grupos como Colectivo Situaciones e Precarias a La Deriva25) como de aprendizagem radical ou coletiva.26 Ambas – pesquisa e aprendizagem – de alguma maneira se misturam e se encontram também na concepção de produção da multidão – exposta acima a partir de Virno – e nos seus processos de subjetivação, a partir de Guattari. Precarias a La Deriva, grupo que se constituiu na Espanha no começo dos anos 2000, definiu “investigação militante” como um “processo de reapropriação de nossa capacidade de criação de mundos que, impulsionado por uma obstinada decisão militante (…), interroga, problematiza e empurra o real através de uma série de procedimentos concretos”.27

Em meu doutorado na Goldsmiths College, em Londres, onde estudo com os dois olhos voltados para o Brasil, tenho me dedicado a estudar as cartografias esquizoanalíticas de Félix Guattari e conceitos que foram desenvolvidos por ele, associados às cartografias: o “paradigma ético-estético”, os “agenciamentos coletivos de enunciação”, a “análise institucional” e a “transversalidade”. A “transversalidade” pode ser compreendida como a produção de uma estratégia de análise (seja uma observação, uma implicação ou uma escuta, entre outros procedimentos) que possa dar conta de quebrar aspectos majoritários e abrir posicionamentos, singularizações, intervenções. Perseguindo duas linhas desenvolvidas por Guattari, percebo que o conceito permite produzir análises transversais em dois pontos: por um lado, quanto à possibilidade de criar intervenções ou atravessamentos em campos do conhecimento ou em práticas distintas (atravessando práticas, atravessando instituições) e, por outro, também no trabalho de grupo, sobre como pode ativar falas autênticas que por sua vez passam pela análise e produção de “cortes” nas próprias instituições.

O conceito surge a partir da prática de psicoterapia institucional de Guattari. Ele trabalhou desde muito novo na Clínica Psiquiátrica La Borde, na periferia de Paris, dirigida por Jean Oury, com quem aprendeu e cooperou em artigos durante anos, até sua morte em 1992. A clínica foi inaugurada em 1951, e Guattari ingressou ali em 1955. Uma série de transformações ensejadas na clínica correspondiam a um mesmo movimento de crítica ou análise institucional que pretendia uma transformação das instituições manicomiais, conhecido no Brasil por “luta anti-manicomial”.28 Na Clínica La Borde, Guattari e Oury desenvolveram suas contribuições mais significativas para a psiquiatria institucional, literalmente virando “de cabeça para baixo” algumas práticas e criando “transversais” que seriam capazes de problematizar a instituição psiquiátrica em suas dimensões de poder, controle, cuidado e terapia. A crítica de Guattari surgiu a partir dos estudos de psicanálise, da linhagem foucaultiana com a qual ele tivera contato por meio de Jacques Lacan e que era aplicada largamente nas instituições psiquiátricas europeias.

A Clínica La Borde abrigava internos, era aberta a visitantes e realizava sessões abertas de “análise institucional” que recebiam militantes, sociólogos, filósofos, entre outros. A principal diferença entre o sistema hospitalar de La Borde e os de outras instituições psiquiátricas era com relação ao cuidado com os internos. Guattari e Oury observaram que era necessário retirar os internos do isolamento personológico – o tratamento caso a caso, a “terapia de sofá” –, observando a força que a própria instituição psiquiátrica, pautada em “verdades” psicanalíticas, imprimia sobre os pacientes e sobre seu possível tratamento. Guattari e Oury trabalharam a transversalização do tratamento trazendo todos os participantes da La Borde (os profissionais e os pacientes) para a análise em sessões de grupo nas quais a “analisada” era a instituição ela mesma e não mais a/o paciente (isso não quer dizer que os pacientes pararam de ser observados caso a caso ou que pararam a terapia um para um). A partir de uma sessão de análise coletiva a transversalidade requer que cada participante da sessão, seja ele um profissional de saúde, um paciente ou um visitante, seja capaz de revisitar o seu papel. Isso poderia acontecer, por exemplo, pela análise do papel simbólico do médico e o enfermeiro, em como eles poderiam ser “uma expressão da subjetividade inconsciente da instituição”. A análise institucional intenciona expor como podemos produzir “acomplamentos” ou simbioses com as instituições, “falando por” e “sendo” as instituições elas mesmas. Ao analisar essa simbiose pode-se produzir novos pontos de vista, deslocando o poder dos lugares onde estavam alojados, redistribuindo-o.

Em uma abordagem que estende a “transversalidade” como método para processos coletivos, ela pode configurar a análise sobre as instituições e as formas que se imprimem em coletivos, a partir dos quais uma coletividade se relaciona. Guattari criou uma distinção muito útil entre “grupos sujeito” e “grupos assujeitados”, uma concepção que definia os primeiros como capazes de conceberem ou perceberem seu fim (por terem mais autonomia na condução de seu próprio processo) e os segundos como grupos que seguem métodos rígidos e hierarquias e que tendem a não criar espaço para processos de subjetivação mais transformadores. Para Guattari, segundo Watson, o grupo sujeito é aquele que “consegue se organizar de acordo com a estrutura da transversalidade”.29

Sobre a transversalidade e processos de grupo, Guattari escreveu:

(Na) análise de grupo as questões-chave se colocam antes da cristalização das constelações, das rejeições e das atrações, ao nível donde pode brotar uma criatividade do grupo, se bem que esta geralmente se estrangula por si mesma com o tênue fio de nonsense que ela se recusa a assumir, preferindo o grupo se consagrar ao balbuciamento de ‘palavras de ordem’, obturando qualquer acesso a uma fala verdadeira, isto é, articulável às outras cadeias do discurso histórico, científico, estético, etc.”30

Em outro aspecto, a produção de uma transversal em relação a determinadas práticas ou formas, e determinadas instituições ou campos do conhecimento, seria provocar uma tensão entre devires majoritários e minoritários, abrindo trocas diretamente no campo micropolítico sem que esse tenha que constantemente referir-se ao campo macropolítico (das significações majoritárias). Nesse sentido, haveria uma quebra de uma relação binária ou que constantemente reflete práticas minoritárias a uma estrutura majoritária. Para exemplificar, podemos pensar na proliferação de enunciações nas ruas do Brasil no ciclo dos Junhos e como essas enunciações se dirigem à estrutura majoritária constituída pelo estado brasileiro. O poder do estado controla, ignora e ou sobre-significa essas enunciações “menores”.

A transversalidade como método, ou seja, como saber sistematizado que pode ser acessado e aplicado em situações temporais, contingentes, pode ser encontrada na definição das “cartografias esquizoanalíticas” na atualidade. Regina Benevides de Barros e Eduardo Passos, psicólogos, professores e pesquisadores da UFF, explicam que o método cartográfico tem uma direção clínico-política, tem um crescente “coeficiente de transversalidade”, garantindo uma comunicação que não se exaure nos dois eixos hegemônicos do socius (o vertical e o horizontal). O método cartográfico segundo eles é sempre transversalista. A transversal é então a criação de um terceiro vetor que cruza o vertical – aquele que organiza a diferença (no sentido de produzir hierarquias) – e o horizontal – aquele que organiza por meio de semelhanças, de grupos (que acopla minorias umas às outras). Barros e Passos afirmam então que há uma “natureza política do método cartográfico que diz respeito à forma como intervimos nas operações de organização da realidade – a partir de eixos verticais e horizontais”, abrindo a capacidade de produzir transversais.31 Na produção de metodologias transversalistas, outras perspectivas se abrem, assim como operações de corte que relacionam processos estéticos e processos políticos.

4. Métodos e metodologias: um encontro transformador?

No encontro para a realização do livro no Rio não centramos nossa conversa em torno de um processo grupal nem trocamos a fundo metodologias de grupo. Foram feitas inúmeras intervenções e contribuições pelos participantes do projeto que excederam minha concepção dada a priori de como o encontro deveria funcionar – para que dali saíssemos com o pré-projeto de um livro. Quando compus esse grupo para fazer o Vocabulário político foi já pensando nas práticas transversais que os participantes desempenham em diversos campos, formações sociais e instituições. Poder compartilhar o modo como produzimos, como trabalhamos, como performamos certamente poderia ser uma maneira de já investigar nossos vocabulários, percebendo semelhanças e diferenças não só conceituais, mas também em nossas práticas. Pessoalmente, eu desejava que ao escutarmos uns aos outros, no processo de intersecção de nossos vocabulários, pudéssemos aprender uns com os outros sobre nossos modos de fazer, mas também que pudéssemos revisitar nossas posições. Nesse sentido havia uma aposta de que o encontro fosse subjetivamente transformador.32

Com alguns dos participantes convidados – como Beatriz Lemos, Isabel Ferreira, Breno Silva, Graziela Kunsch – eu já havia trabalhado antes em projetos comuns no campo das artes. E com outros eu já havia trabalhado antes em projetos com grupos voltados à mobilização social e organização política – Pedro Mendes, Inês Nin, Sara Uchoa e Rodrigo Nunes. Alguns deles são amigos com os quais eu desejava trabalhar junto, por observar sua capacidade transformadora de trabalhar em grupo – são os casos de Juliana Dorneles, Raphi Soifer e Laura Lima. O desejo de convidar André Mesquita e Julia Ruiz, por exemplo, para participar do projeto vinha de querer compartilhar processos de pesquisa, militância e conceitualização de eventos e processos criativos e políticos. Mas é evidente que o encontro proporcionou trocas imprevisíveis entre os participantes.

Cartografia dos participantes e do processo. Cristina Ribas, 2014.
Cartografia dos participantes e do processo. Cristina Ribas, 2014.

Dentre todas as sensações, percepções, experiências coletivas e recortes da vida que surgem ao final de uma semana de trabalho, fomos filtrando os conceitos sobre os quais queríamos escrever e fomos elencando ferramentas comuns que eram cruciais para estabelecer nossa estratégia. No livro, os conceitos e práticas, ou os vocábulos propriamente ditos, foram chamados de Entradas. Lembro que foi André Mesquita quem classificou em categorias as primeiras sugestões de vocábulos que surgiram, a partir de onde pudemos começar a entender não só o conteúdo que eles poderiam (con)ter, mas também o que e como eles pretendiam operar. Mais relacionadas a trabalhos em grupo, surgiram noções como Complexidade, Escuta, Estratégia, Experiência, Hidrosolidariedade, Humor, Vizinhança, responsa-habilidade, Transdução, entre outras. No encontro, por exemplo, a Agência Transitiva nos apresentou o Check In e o Check Out que eles usam em suas reuniões. Aplicar o método no nosso encontro foi uma maneira bonita de introduzir falas que nos conectassem a nossos estados subjetivos, operando ao vivo uma espécie de cartografia dos participantes. No Check In e no Check Out tínhamos um tempo preciso para relatar como nos sentíamos, o que poderia funcionar como feedback do processo coletivo.

A “transversalidade” não entrou como conteúdo do livro e operou mais de modo subjacente em como eu mesma agia a partir de minha posição “catalisadora”, fosse ela uma mistura, bem-sucedida ou malsucedida, entre ser mediadora, artista, investigadora militante, curadora e outras mais. Um mediador tem geralmente a função, no meu entender, de manter a conversa dentro do escopo do projeto, de perceber o tempo, de abrir espaço para posições distintas. Minha experiência como organizadora do projeto e simultaneamente editora do livro me possibilitou experimentar modos de trabalho que eu já havia experimentado antes, mas que aqui se colocavam de uma maneira inédita e bem precisa. Com base nessas experiências anteriores eu queria aqui poder ativar em mim mesma uma escuta atenta, um tal “coeficiente de transversalidade” que deveria ser trazido pelos participantes também. Como eu poderia, com base em minhas experiências anteriores, configurar uma posição catalisadora que não defendesse nenhuma forma, instituição ou campo do conhecimento dado a priori? Como eu poderia configurar ali junto aos participantes um espaço em que tivéssemos uma escuta sensível uns dos outros, que autorizasse posicionalidades autênticas e que, escutando nossos múltiplos desejos, desse forma a um vocabulário plural? Como eu poderia não tentar conceber uma posição neutra, mas ativa, catalisadora (aumentando o contato, a ebulição), bulinadora, atiçadora?

Para garantir um encontro na sua potência transformadora deveríamos, na análise de nossos discursos, deslocar nossos pontos de vista, permitindo que nossas percepções e nossos conceitos fossem confrontados com outras percepções e vivências distintas a partir dos mesmos conceitos ou práticas. Esta era uma forma de colocar em prática a transversalidade. Foi muito importante quando Juliana Dorneles nos propôs que fizéssemos primeiro uma massagem na coluna, dois a dois, seguida de exercício de escrita. Ela perguntou: como produzir a partir de outro(s) lugare(s)?33 Outros lugares, eu entendo, que não fossem só o da troca verbal, discursiva, narrativa, analítica de nossos conceitos e práticas. E, nesse sentido, estendendo o que Julia perguntou sobre práticas estéticas que aprendem com as práticas políticas, o que poderíamos literal e subjetivamente “aprender uns com os outros”.

A noção de “aprendizagem” teria que ser inflexionada, contudo, aos processos de subjetivação, aos processos transformativos, para entender o que é que faz uma posição mudar (virar), sem deixar para trás as marcas que aparecem em uma escuta atenta. Eu percebo que a possibilidade de produzir transversalmente vem da habilidade de nos desconectarmos de fatores identitários maiores que constituem um sujeito e uma luta social, o que faz isso ainda mais complexo, visto que a identidade é um dos mecanismos da resistência política. O deslocamento poderia dar espaço a outras percepções de fatores majoritários que atuam, permitindo conexões por meio de fatores minoritários. Isso pode significar abandonar um modo de produção ou modo de significação da produção de um campo ou discursos específicos, de forma a ocupar outros espaços que são mais complexos, mais problemáticos, mais híbridos, e portanto difíceis de serem definidos ou circunscritos. Isso é toda uma estratégia. Essa estratégia desloca, por exemplo, uma compreensão dos efeitos estéticos da criatividade. Que novos espaços para os afetos criativos e os efeitos estéticos podem então surgir?

O processo de realização do livro incitou, por isso, inúmeros deslocamentos. Alguns de nós saíram do encontro mais seguros de “sobre o que” e “como” seria a contribuição para o livro (escrevendo, desenhando ou diagramando). Alguns de nós saíram com alguma sensação bem consolidada, que apenas depois se configurou em conteúdo e retomou tramas daquele diagrama que desenhamos ao longo de uma semana. Mas o processo do livro incitou contribuições que demoraram a chegar, demoraram porque tinham que ganhar sentido, tinham que tomar corpo. Essas colaborações me chamaram a dar continuidade à escuta atenta, reconfigurando em cada situação a catalisadora-editora em relação com os vocabulosos-escribas. No processo de transformação do conteúdo tomando forma emergem outras transformações, uma delas o reposicionamento diante daquele deslocamento, uma espécie de Transdução: uma tradução transformativa. O processo de reposicionamento que descrevo por ganhar sentido e tomar corpo dependia, claro, não só de uma ação individual ou coletiva, mas também da influência de um desejo de produzir mais desejo, de produzir novas escutas, novas leituras e leituras em voz alta.

É evidente que toda metodologia tem escapes. Que uma metodologia produtiva não pode cercear um processo a ponto de congelá-lo e deve ser capaz de mudar com o caminho que vai levando o processo, a estratégia. Por isso surge aqui um “vocabulário bastardo”, como disse um amigo ao ver o livro pronto, um vocabulário que é uma coleção de vozes múltiplas que muitas vezes falam juntas, em uníssono. Talvez o livro seja resultado de um processo em que alguns se permitiram bulinar mais os outros, entrando em um estado criativo e político. Então não cabe aqui descrever um processo de maneira a justificá-lo, identificando muitos afetos e poucos efeitos. Acredito que vale observar os modos ou o método como o vocabulário foi produzido (o processo de provocar transversais), e o modo produtivo, por sua vez, de cada Entrada que surgiu, para daí imaginar e perscrutar seus efeitos e outras interseccionalidades.

Encerro o texto com a narrativa de algumas experiências de participantes do projeto nos seus processos de escrita, conectando com as dimensões atuais dessas experiências, sejam elas mais ou menos relacionadas a lutas sociais.

5. O Livro-invenção e algumas intersecções

Agora que o livro está lançado, é como se abrisse uma atenção maior para o futuro, para o futuro do livro-invenção. O futuro podem ser os encontros, as conversas, os espaços sociais dos quais o livro poderá participar. Com a finalização do livro, fica então a perscrutação sobre “o que esse livro-invenção está fazendo” ou pode estar fazendo-desejar hoje nos espaços da política e da criação, e sobretudo nos espaços da política como criação. Nesse sentido, é possível operar uma inversão do nome do projeto, como várias pessoas sugeriram. Vocabulário estético para processos políticos. O que os processos políticos têm para “aprender” dos processos estéticos é exatamente a capacidade de ativar singularidades e interseccionalidades, de ativar a dimensão criativa que é inerente à própria vida.

Eu crio então uma analogia a partir de uma concepção de história para pensar na relevância que os processos estéticos estão tomando na vida daqueles que se enunciam nos espaços das ruas. A história, em uma concepção conservadora, pode ser a ela mesma linha dura que dificulta pontos de virada nos processos sociais, operando como horizonte indelével. Esse horizonte indelével para a arte seria a noção de espetáculo. Nas ruas do Brasil, definitivamente, o espetáculo foi outro, foi o corte no tempo político, como disse Pélbart, feito por aqueles que “são ninguém”. Dessa forma um campo de forças se abre, um sem palco onde se anunciam, incansáveis, os produtores de um “Brasil menor”. O “Brasil menor” é a afirmação contra um “Brasil maior” forçosamente produzido pelo estado e por suas relações econômicas.

Para fechar essa cartografia analítica e visual recorto do livro quatro Entradas que distendem interseccionalidades na atualidade do “Brasil menor”.

Giseli Vasconcelos escreveu a Entrada Hidrosolidariedade, uma “solidariedade solúvel (…), processos de colaborações e associações”. A Entrada é literalmente um mergulho na geografia da região Amazônica, e por que não uma cartografia, que passa pela viagem de Oswald de Andrade na região e se estende à formação da rede [aparelho], uma rede de produtores que agrega hackers, professores e artistas a partir de Belém. Giseli foi uma das organizadoras do projeto Cartografia Crítica da Amazônia, um projeto de mapeamento que concebeu uma série de atividades na região, criando ferramentas de mapeamento remoto e publicando um livro homônimo ao final. Giseli alavanca um vocabulário plural que se “molha” na geografia Amazônica, da sensibilidade de suar nessa terra úmida. Ao mesmo tempo, eu olho para esse vocabulário sem deixar de lembrar os embates com os projetos desenvolvimentistas que desconfiguram a região.

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Ferramenta de Oxum. Orixá feminino que reina o amor, a intimidade,
a beleza, a riqueza e a diplomacia sobre a água doce dos rios.

A Praça de Bolso do Ciclista foi construída a muitas mãos – e por que não pedaladas – em Curitiba nos últimos anos. A Entrada foi realizada por Margit Leisner, e reúne textos narrativos e poéticos e fotografias da construção da praça. Margit participou da oficina interna no Rio e tinha uma proposta para o livro que acabou não se consolidando. Após o encontro no Rio, Margit tinha dúvidas sobre que tipo de contribuição seria efetiva para o livro, e ela escreveu sobre a Praça depois de uma série de e-mails trocados entre nós duas. Nas trocas de e-mails conversamos sobre como o processo coletivo que lá se desenrolava era muito rico como processo que associava efeitos estéticos e políticos. Margit também fazia parte do movimento de resistência à não destruição do Bosque do Casa Gomm, um caso semelhante ao do Parque Augusta agora em São Paulo. O Parque é um espaço verde dentro da cidade, de uso comum, que será convertido na construção de três torres residenciais. A obra não só corre o risco de extinguir parte do microclima daquele bosque, como os modos de vida que desfrutaram e cuidaram desses territórios comuns – práticas que vão certamente reaparecer em novos bosques por vir.

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Foto: Doug Oliveira, Curitiba, 2014.

Enrico Rocha relata em Vizinhança sua relação com o Poço da Draga, bairro no limite com o mar em Fortaleza. O Poço da Draga surgiu no momento da construção de um porto em Fortaleza, secretando uma área que foi pouco a pouco sendo usada por pescadores para moradia. No texto Enrico faz um belíssimo relato da sua relação afetiva e política com o Poço da Draga, nos contando da iminência de expulsão da comunidade-bairro com a possibilidade de construção do Acquario Ceará (um projeto que ainda não saiu do papel e já suscita escândalos econômicos envolvendo a Prefeitura de Fortaleza e possíveis empreiteiras). Entre muitas ações de apoio ao bairro, no final de abril de 2014 um grupo de artistas realizou uma exposição no Centro Cultural Dragão do Mar, como parte de uma série de eventos em comemoração aos 108 anos do Poço da Draga, que se estenderam até junho. Enrico escreveu dois textos, publicados em jornais de Fortaleza, e foram produzidos cartazes que chamavam para o evento.

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Cartaz de Vitor César para os 108 anos do Poço da Draga. Fortaleza, 2014. | Cartaz de Ramón Cavalcante para os 108 anos do Poço da Draga. Fortaleza, 2014.

A Maré – um vocábulo complexo, senão o mais complexo, parafraseando a intervenção feita por Marcos Chaves em uma das passarelas da Brasil: Amarécomplexo. Conhecer o complexo da Maré foi um dos percursos gerados pela ideia de criar proposições naquela semana de trabalho em abril de 2014 quando estávamos reunidos para começar o Vocabulário político. Semanas antes uma grande chacina tinha acontecido, e o fato foi usado para justificar a ocupação militar da favela, que aconteceu uma semana antes do projeto começar. A Força Nacional do exército está lá até hoje, revistando cotidianamente os moradores e promovendo tiroteiros à revelia, que acarretam a morte de moradores da favela. A proposição que surgiu do grupo formado por cinco participantes – Lucas R., Lucas S., Breno, Graziela e Jeferson – foi a escrita de um texto que analisava os vocabulários tanto a “Cartilha para…” produzida por ONGs da favela, orientando os moradores sobre como responder à intervenção militar e às buscas da Polícia Militar, quanto o “manifesto contra”, escrito por moradores da Maré. O vocábulo Maré, no livro, se tornou uma cartografia investigativa e agregou várias vozes que falam dentro e com a favela.34 O vocábulo é, contudo, um pedaço muito pequeno da Maré imensa que pede agora a saída das forças militares e o fim da violência policial, segundo manifestação popular pacífica que levou recentemente para a Avenida Brasil e para a Linha Amarela a força dos vocabulários da população da Maré que pedem sobretudo respeito à vida. A manifestação foi reprimida pesadamente com tiros e bombas de gás lacrimogêneo, tanto pela PM como pelo Exército.

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Foto do projeto Vocabulário político para processos estéticos. Capacete, Rio de Janeiro, 2014.

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Presença do Exército na Maré. Foto: Frente Independente Popular (FIP), 2015.

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Manifestação popular na Maré. Foto: Katja Schiliró, 2015.

Bibliografia adicional

Kastrup, V.; Passos, E. and Tedesco, S., 2008, Políticas da cognição, Porto Alegre: Sulina
Marazzi, C. Capital and Language. From the New Economy to the War Economy. New York, London: The MIT Press, 2008.


1 http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/07/1313378-peter-pal-pelbart-anota-ai-eu-sou-ninguem.shtml

2 Sobre o ciclo de manifestações e sobre o Brasil atual, recomendo a leitura do artigo de Jean Tible Encruzilhadas brasileiras: entre protestos, processos e eleições. http://nuso.org/upload/articulos/4090_1.pdf

3 A participação de profissionais de várias partes do país era uma exigência do Edital Redes da Funarte, que prevê a circulação de profissionais despolarizando eixos centrais de produção e mobilizando novas redes produtivas.

4 Dois livros foram referência para esse projeto. Eles foram concebidos de maneira semelhante ao Vocabulário político e circularam nos nossos encontros. Eles são Vocabulaboratoires, editado por Manuela Zechner, Anja Kanngieser e Paz Guevara, e Micropolíticas de los grupos: Para una ecología de las prácticas colectivas, organizado por Oliver Crabbé, Thierry Muller e David Vercauteren. Ambos os livros são resultado de encontros e trocas e operam tanto como caixas de ferramentas como um documento/arquivo de práticas e experiências. Micropolíticas em especial é organizado a partir de verbos que caracterizam ações em grupo, ou metodologias para trabalhos micropolíticos.

5 Em 2012, a Rede Universidade Nômade organizou um léxico chamado Ferramentas das Lutas. http://www.revistaglobalbrasil.com.br/?page_id=1498

6 Informações sobre os grupos de pesquisa podem ser encontradas aqui http://www.ufrgs.br/ppgpsicologia/ e aqui http://www.slab.uff.br/

7 Um dos artigos de referência que acessei sobre feminismo interseccional foi o de Adriana Piscitelli: Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Revista Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez. 2008 link

8 Ao escolher o termo “práticas” para me referir a práticas artísticas, políticas e outras, quero chamar a atenção não para um campo específico ou linguagem, mas para uma capacidade ou, literalmente, para as dimensões práticas de ações realizadas por atores sociais vários. Nesse sentido, ao referir-me, por exemplo, às práticas artísticas não pretendo concentrar o foco apenas na arte realizada por artistas, mas naquilo que há de artístico ou de criativo igualmente em outras práticas sociais. Esta é, de alguma maneira, uma perspectiva transversalista. Esse tipo de “claim” é feito por Félix Guattari em Caosmose (1992). GUATTARI, F. Caosmose: um novo paradigma estético. São Paulo: Ed. 34, 1992.

9 Para uma biografia dos participantes acesse aqui.

10 Luiz Camillo Osório. A few thoughts on Aesthetics and Politics. Em: Transnational Dialogues 2014. Disponível em: http://www.transnationaldialogues.eu/

11 http://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Amarildo

12 Amar é a Maré Amarildo: multidão e arte, RJ, 2013 Disponível em: http://uninomade.net/tenda/amar-e-a-mare-amarildo-multidao-e arte-rj-2013/

13 VIRNO Paolo. Cuando el verbo se hace carne. Lenguaje y naturaleza humana. Buenos Aires: Cactus e Tinta Limón, 2004. pp. 46

14 BERARDI, Franco Bifo. The Uprising. On Poetry and Finance. New York/London: Semiotext(e), 2012.

15 Sobre isso vale ler também o texto Complexidade, que escrevi para o livro http://vocabpol.cristinaribas.org/vocab/complexidade/.

16 Me refiro à produção de Félix Guattari nas décadas de 80 até seu último livro, Caosmose, de 1992. GUATTARI, F. op cit.

17 Um dos textos do Vocabulário político que também lida com essas questões é Diagrama, de Tatiana Roque.

18 BERARDI, 2012. Op. Cit. Essa afirmação me faz pensar na significação e na economia geradas pelas feiras de arte no Brasil, que têm sido os projetos que mais captam recursos via Lei Rouanet. A feira de arte “organiza” um mercado de produção e consumo de arte a partir de um significante: a partir daquilo que pode ser intercambiado economicamente ou a arte como experiência nos modos que a feira provê.

19 Um dos textos escritos por mim para o Vocabulário político é Brasil | brasiu | Brazis, uma reflexão sobre os diversos “Brasis” que existem neste território e a partir dele.

20 Who Is the Cup For? Expenses in the World Cup 2014, PACS – Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul http://www.boell.de/en/2014/05/26/who-cup-expenses-world-cup-2014

21 Essa questão pode ser pensada assim: como a imprensa comercial – O Globo, Folha de São Paulo, Veja, entre outras mídias – classificaram e diminuíram a potência dos “levantes de junho” no Brasil. Tais mídias inicialmente identificaram manifestantes como “estudantes” (o que isola a mobilização em uma questão geracional – “é parte dessa geração a ideia de protesto” e “vai passar”) e logo em seguida como “vândalos” (“bloco” que agrupa militantes segundo a noção de arruaça ou marginalidade, despolitizados ou sem propósito político considerável e, portanto, passíveis de pesada repressão policial).

22 VIRNO, Paolo. Gramática da Multidão. Para uma análise das formas de vida contemporâneas. Tradução de Leonardo Retamoso de Palma. Santa Maria, 2003. (download aqui http://tinyurl.com/pcetcqx) pp. 5 (grifos meus)

23 No Vocabulário político, o capenga é conceitualizado a partir de um Forense capenga, texto de Raphi Soifer http://vocabpol.cristinaribas.org/vocab/forense-capenga

24 Recortando da palavra “vocabulário”, Cecília Cotrim propôs “bulinações” entre nossos vocabulários nos encontros da oficina interna, em Abril de 2014.

25 Referências para o trabalho desses grupos são o próprio texto Notas sobre el militante investigador, 2002, e o livro A la deriva por los circuitos de la precariedad femenina, 2004.

26 Uma das referências em aprendizagem radical nos atravessamentos estéticos e políticos é o grupo de investigação sonora Ultra-red. http://www.ultrared.org/directory.html

27 PRECARIAS a LA DERIVA “De preguntas, ilusiones, enjambres y desiertos. Apuntes sobre investigación y militancia desde Precarias a la deriva [Madrid]”. Em: Malo, Marta (ed.) Nociones comunes: experiencias y ensayos entre investigación y militancia. Madrid: Traficantes de Sueños , 2004. pp. 44.

28 Sobre o tema e sobre uma atualização da crítica institucional e do sistema educacional europeu vale ler o texto de Jakob Jakobsen The Pedagogy of Negating the Institution. http://www.metamute.org/editorial/articles/pedagogy-negating-institution

29 WATSON, Janell. Guattari’s diagrammatic thought: writing between Lacan and Deleuze. London, New York: Continuum Books, 2009. pp. 29

30 GUATTARI, Félix. “Transversalidade”. Em: Revolução Molecular. Pulsações Políticas do Desejo. São Paulo: Brasiliense, 1987, pp. 94.

31 BARROS, R. B., E E. PASSOS, “A cartografia como método de pesquisa-intervenção”. EM: ESCOSSIA, L; KASTRUP, V; PASSOS, E. (org) (2009) Pistas para o método da cartografia. pp. 28.

32 Neste texto eu foco na primeira semana de trabalho para a realização do livro. Essa primeira semana foi chamada de “oficina interna” e aconteceu no Capacete, no Rio de Janeiro, na segunda semana de Abril de 2014.

33 No Editorial/Desditorial eu escrevo mais detalhadamente sobre as proposições que realizamos e sobre as que não aconteceram.

34 A página Maré Vive é um portal de manifestações de moradores do Complexo da Maré e constitui uma das vozes mais plurais que surgem dali https://www.facebook.com/Marevive?fref=photo