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Guilherme Vaz. Uma fração do infinito, 2014Frame do filme: Daniel Leão

Uma fração do infinito

Guilherme Vaz

a Andrei Tarkovsky1

Uma Fração do Infinito é uma obra de arte sonora empírica. É também uma homenagem a Charles Darwin na sua passagem pelo Brasil, atravessando a mesma trilha que ele atravessou. É um pequeno trabalho sobre um grande tema. E também um teatro antropológico imaginário e cinematográfico sonoro, que pretendo desenvolver. Passagens Noturnas sobre o mundo dos símbolos. Suas referências estão no Mundo Indígena do Brasil, na floresta, nas formas universais da geometria à mão livre, nas pessoas mais que nos objetos. São sete pontos no infinito com uma poesia simples, mas densa como o Silêncio, e livre como o Vento. Por isso, ele é essencialmente arte contemporânea – não possui clímax, todos os seus pontos são iguais em significado. Estes são os primeiros filmados de uma série que pode ir ao infinito, como um cordão de significados livres.


Guilherme Vaz. Uma fração do infinito, 2014

Os Personagens: O Mundo Indígena Filosófico e A Natureza, A Sociedade e O Educador

Três vetores estão presentes:

1) a filosofia e o conhecimento indígena, a condição de viver na América, com as suas qualidades de não acumular bens, respeito à natureza, despojamento, vida social harmônica, representados pelo Maracá #1 e o ator Guilherme Vaz;

2) a sociedade, a Dama de Preto, representada no filme pela atriz Jessica Gogan, que aprende com a filosofia indígena e a natureza, simbolizada pelos desenhos geométricos indígenas que ela faz. Ela está aprendendo com o Maracá #1 e observando à medida que desenha, anotando o que vê, à medida que está ouvindo a filosofia indígena representada pelo Maracá #1, e com a natureza, a floresta, em torno de onde ela passa.

3) o Educador, a educação, que confirma os desenhos da Dama de Preto com os sons do Maracá #2, representado no filme pelo ator Guilherme Vergara.

As Placas de Signos e Símbolos

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sessao3   Revista MESA - foto Rafael Adorján (8)
Guilherme Vaz. As placas de signos e símbolos: Uma fração do infinito, 2014. Fotos: Rafael Adorján

Cada placa e folha de papel preenchida com símbolos e signos tem o impulso de abraçar e mover cada ponto em que o teatro sonoro para com seus atores. As placas são anotações, impulsos e desvelamentos da sociedade, representada no filme pela atriz com vestido preto. Cabe à sociedade absorver os signos do infinito, enquanto se move na noite. Cada placa é um sinal no mar, um farol e uma fração do infinito, elas possuem uma regra embora pareçam inteiramente livres, uma delicada regra, toda a sua linguagem deve operar com símbolos ameríndios, e geometria à mão livre, embora sejam irmãs das geometrias de todo o mundo, especialmente dos locais desprezados pelos olhares temporais, elas existem no mundo todo, são ágrafas e anteriores à escrita. Mas, como nem sempre a escrita é linguagem, elas são pura linguagem, seu significado é desconhecido ou apenas pressentido, isso não importa, a sua existência abraça o universo que amamos.

A Dama de Preto e A Sociedade

A Dama de Preto é a sociedade, eu utilizo esse ícone todas as vezes que escrevo sobre a sociedade, ou penso sobre ela, acho que cheguei a uma imagem quase “perfeita”, essa palavra é meio forte, mas tenho de usar para o que penso e percebo sobre a ideia de sociedade. A Sociedade [a Dama de Preto], nas muitas viagens que fiz por todos os lugares que pude pensar, inclusive na Amazônia, essa imagem me agrada, porque existem palavras que não tenho como exprimir, dizer, sobre o que eu vejo na sociedade, mas a imagem diz o que eu não posso dizer por ausência de palavras. Não tenho palavras ainda, elas não nasceram ainda. Preto quer dizer o mistério, e o Enigma, o desconhecido, não sabemos o que é a sociedade ainda, e isso é muito bom, não é ruim, como se possa imaginar. Isto é um campo infinito, um vestido preto, a noite, estamos ainda tentando saber quem é a sociedade. …………… é uma obra aberta, o que é a sociedade, não sabemos, vamos percebê-la e não inventar teorias. Outro lado que não sei se podem falar é que esta imagem está ligada aos Dark Lady Sonnets do velho William2, sempre via essa imagem por trás das palavras quando lia esses sonetos tremendo. Outra ligação é a noite, quando a imaginação humana se faz livre e voa por muitos significados noturnos, sons e sentidos, essas associações livres definem tudo o que eu pensei quando imaginei a Dama de Preto como a sociedade.

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Guilherme Vaz. Uma fração do infinito, 2014. Frame do filme: Daniel Leão

O Silêncio

Vejo hoje que existem diversas espessuras e naturezas do silêncio, inteiramente distintas. Cada uma tem uma natureza dependendo da hora do dia, da antropologia, da noite, são as diversas personalidades do silêncio – o silêncio não é uma abstração.

Uma vez eu disse, no MAM (Museu de Arte Moderna, no Rio de Janeiro), no lançamento do trabalho Crude durante a exposição do Romano3, que se a arte sonora não fosse capaz de silêncio ela não atingiria a arte. Ninguém pensa que deve haver silêncio na arte sonora. Uma coisa é a música experimental e outra a arte sonora, o corpo histórico das duas é inteiramente distinto apesar das similaridades, na música experimental é mais fácil falar do silêncio e ser compreendido do que na arte sonora, os artistas da arte sonora, como vêm na sua maioria das artes visuais, não têm uma compreensão germinada de silêncio ligado ao som, mas a possuem apenas como conceito, não é real ainda. E suas obras continuarão supersaturadas de som, sem nenhuma consequência fenomenológica.4

O silêncio é o jejum. Não é meramente a presença do som que define uma obra de arte sonora, mas o silêncio, porque quando as pessoas pensam no som elas não pensam em silêncio, mas não é possível deixar de pensar, o silêncio na arte sonora é tão importante quanto o som, por isso existem silêncios na Fração do Infinito, essa posição clara faz parte da concepção do trabalho, mesmo em momentos em que há o som natural da floresta, muito baixo volume, existe também o silêncio dos atores, parados no meio da floresta, da estrada, mesmo com o som natural quase inaudível, o silêncio dramático está presente.

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Guilherme Vaz. Uma fração do infinito, 2014. Frame do filme: Daniel Leão

Niterói e o Caminho Darwin

Tudo nessa obra tem um conceito que tem um sentido, significado nos seus mínimos detalhes. A escolha de Niterói e não do Rio tem um sentido muito amplo. Quando fui convidado a realizar um trabalho de arte sonora para a Revista MESA, pensei muito, e pensei em algumas soluções no Rio, soluções urbanas, mas, com o tempo, me decidi por Niterói com o alargamento das reflexões. Não é uma decisão informal ou momentânea, é uma decisão conceitual e semântica, era preciso a presença da floresta e a tradição, a semântica da floresta. Esta apontou Niterói como melhor local. Além disso, o que imagino seja a linha de pensamento da arte ligada à arte contemporânea e especialmente ligada ao MAC (Museu de Arte Contemporânea de Niterói) e a toda a região específica e única de Niterói. A decisão do Caminho Darwin também é assim, no sentido de simbolizar a presença da natureza e do meio ambiente na arte e no trabalho. Isso não significa que o trabalho seja darwinista, não, mas significa que a relação da vida universal com todas as outras vidas é necessária aqui, a relação entre todos os elementos e todos os elementos de um contexto. É isso que eu imagino quando leio as propostas de Darwin, a relação de tudo com tudo, a relação entre todos os elementos do universo, o que se chama em arte de transversalidade, tudo está relacionado no mundo, a progressão do pensamento relacional na natureza, e na filosofia, esse é o sentido.

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Guilherme Vaz. Uma fração do infinito, 2014Frame do filme: Daniel Leão

Os Maracás

Os Maracás como fonte sonora principal, ele é o instrumento ícone da América, antiga e milenar, e dos povos indígenas da América, e me parece que mesmo da América do Norte, ele é dessa forma o som da América atual e eterna, e o som do grande Oeste, aberto, e aponta para essa dimensão. O seu som é produzido por sementes secas, portanto é também, pelas sementes, o som da grande floresta porque são as sementes que ele planta, o próprio instrumento planta, planta as sementes, isso para dar uma noção inicial do simbolismo desse instrumento.

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Guilherme Vaz. Uma fração do infinito, 2014. Frame do filme: Daniel Leão

O Teatro

Por que o teatro e o teatro à maneira de Grotowsky5, mais que o cinema? Porque a pessoa está presente no teatro, e muito mais que no objeto da arte visual comum, povoada por objetos, o teatro experimental faz que quem olha se sinta possível de estar na cena, porque tem gente do outro lado e não apenas objetos, a questão da pessoa, do sujeito, mais que o objeto, é essencial na minha obra, e ela não pode ser entendida sem essa admiração crônica do sujeito, mais que pelo objeto, qualquer que ele seja, a tal ponto que mesmo o objeto de mau gosto e anacrônico toma um sentido sublime perto do sujeito, ele é tão grande que atravessa as fronteiras das eras da arte e do gosto, e sobretudo do bom gosto, ele é capaz de legitimar o inexpressável e o objeto de mais profundo mau gosto se torna sublime. A pessoa, o que a filosofia chama de sujeito, é de longe mais importante que o objeto, superando-o, na angulação das opções composicionais e da filosofia da arte, por isso o Teatro. A Fração do Infinito não é um objeto, um objeto comum como a maior parte da arte sonora e da arte visual, mas o teatro transpassando o corpo da arte sonora. É isso que o teatro significa em um mundo onde todos confundem arte com objetos.

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Guilherme Vaz. Uma fração do infinito, 2014. Frame do filme: Daniel Leão

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1 O diretor de filmes russo Andrei Tarkovsky (1932–1986) foi um dos mais importantes diretores do século 20. Esse trabalho é dedicado a Tarkovsky, pela nudez simbólica dele, tão comum e tão cara em seus filmes – o mundo simbólico colocado em nudez sem filtros, e assim é na minha obra com “a sociedade”,”a filosofia indígena” e “o educador”. O diretor tem uma maneira de falar que me fascina, seja nos seus livros ou nos seus filmes, porque não cria filtros nem neblinas entre o espectador, o criador, o autor, os atores e o discurso, tornando tudo muito claro, o símbolo e a sua sequência, coisa de que gosto muito, tornando a imagem direta e a invenção poderosa, vertical – por isso dedico esse trabalho ao diretor russo.

2 William Shakespeare (1564–1616) publicou sua coleção de 154 sonetos em 1606. Os sonetos exploram os temas tempo, amor, beleza e mortalidade. Os Dark Lady Sonnets, aqueles numerados de 127 até 152, refletem o desejo do poeta para uma mulher misteriosa – a palavra negro descreve em momentos diferentes sua beleza e mal. Nesses múltiplos sentidos em constante mudança, oferecem um paralelo e um dado inovador para o conceito da sociedade.

3 Crude é essencialmente fazer ressoar as paredes e os pisos dos museus, utilizando a percussão de mãos como palmas nas paredes. Realizei esta obra originalmente em 1977 na 17ª Bienal de Paris e de novo como uma releitura contemporânea com o artista visual e sonoro brasileiro Romano (1969– ) na 7ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, 2009, e no MAM, em 2012, na ocasião da sua exposição.

4 Apesar do legado pioneiro de John Cage (1912–1992) e sua famosa obra 4’33, realizada pela primeira vez em 1952, onde os músicos fazem nada para além de estar presentes para a duração do título, vejo ainda um uso de silêncio mais conceitual que corporal.

5 Jerzy Grotowski (1933–1999) foi um diretor do teatro polonês e um grande inovador de teatro experimental, com os conceitos “laboratório de teatro” e “teatro pobre”.