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O ambiente cultural tornando-se visível. Foto: Noélia Albuquerque.

Encontros e Derivas:
Cartografias Afetivas da Universidade das Quebradas

Angela Carneiro

Para Beá Meira

[…] Você junta duas coisas que nunca foram juntadas antes.
E o mundo se transforma.
As pessoas podem não reparar na hora, mas isso não importa.
Mesmo assim, o mundo se transformou.”

Julian Barnes, Altos voos e quedas livres1

O que pode um encontro? Um encontro marcante é potente quando dele já não saímos mais os mesmos, quando o que nos acontece nos reinventa e reinventa o entorno. Esse risco – pois é um risco entrar nas derivas da vida – existe quando caminhamos nas bordas de nossos mundos e insistimos em atravessar fronteiras do que ainda não se nomeia, mas pede passagem, caminhando como equilibristas, tateando o desconhecido, acreditando numa rede em que só a herança de nossas histórias, lembradas e esquecidas, nos dá movimentos, ora firmes, ora cambaleantes.

É nessa direção que se dá a proposta da Universidade das Quebradas (UQ), um curso de extensão, com duração de um ano, que está em sua quinta edição. Coordenado pelas professoras Heloísa Buarque de Hollanda e Numa Ciro, faz parte do Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC) – Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A proposta do curso é produzir um conhecimento resultante do encontro entre a academia e os artistas, animadores culturais e militantes poéticos, que se reconhecem como “quebradeiros”, aqueles moradores da periferia que circulam nos fluxos e franjas da cidade. O nome do curso tem sua origem na denominação paulistana de favela. A trama das favelas, com suas ruas labirínticas e estreitas que quebram as passagens e desenham uma paisagem muito singular, marca muito bem a vida que insiste em passar. Quebrada carrega também uma atitude crítica diante da vida, em que é preciso quebrar os paradigmas que se colocam de forma absoluta e impositiva nas relações de domínio e poder que definem os lugares de valor e pertencimento.

Este ensaio explora esses processos “quebradeiros” e tem como foco as experimentações com a turma da quarta edição da Universidade das Quebradas, quando criamos um grupo de trabalho para desenvolver uma reflexão poética sobre as questões que desassossegavam a turma. Estabelecemos três momentos. Primeiro momento, Nas Quebradas do Mar, quando o curso passa a ocupar o Museu de Arte do Rio (MAR). Segundo, quando os quebradeiros expandem a relação do Museu com a cidade ao produzirem uma nova cartografia, entre a cidade que se sonha (Manifesto) e a cidade que se vive (Mapa), feita dos múltiplos Rios que deságuam no Mar. E, por último, o Manifesto e o Mapa são miniaturizados e lançados ao mar e acompanhados em seus percursos. Finalmente, apresentamos algumas pistas da metodologia do trabalho.

O trabalho da UQ se faz na busca de um espaço entre a academia e os quebradeiros, um “entre nós” que abrigue diferentes modos de conhecimento e metodologias capazes de acolher e expandir tanto o patrimônio acadêmico quanto o dos artistas quebradeiros para outros planos de produção e compartilhamento.

Nessa tensão, a periferia chega fazendo barulho, tramada por uma intensa produção de cultura, fazendo brechas numa maciça imagem de aridez e carência, mostrando a cultura como processo de construção social da realidade e desenhando modos de vida e ocupação da cidade. De outro lado, a academia busca seus próprios barulhos, na reinvenção de um patrimônio de conhecimento que permaneça vivo pelos usos de muitos. Desse encontro, caminhos. Uma aposta.

E o que trazem os quebradeiros?

Expõem de forma contundente um fazer arte como invenção da vida, como uma usina de produção de sentidos que reordenam seus modos de vida, potencializam a herança de diferentes origens e redistribuem a concentração de bens culturais por outras lógicas de produção, colocando em xeque a própria sociedade em que vivemos. Essa atitude nos remete à concepção de cultura de Homi K. Bhabha, que se refere a uma produção de sujeitos no espaço de um entre-lugar, nas brechas do estranho, deslizante e marginal.2 Portanto, a matéria do fazer quebradeiro se dá nas fronteiras, nos espaços de transição, surge num diálogo combativo entre o que se impõe como realidade única e absoluta e as novas versões de modos de vida afirmados por uma série de práticas que vão constituindo uma ecologia que busca outros parâmetros éticos, estéticos e políticos. Aí a sua força, pensar o que de fora pede voz.

Os territórios quebradeiros nos servem como analisadores da cidade em que vivemos, pois se desdobram em muitas questões: a problematização da concepção de cultura como tensão entre uma cultura que responde à lógica do mercado e, como entretenimento, reduz-se ao consumo, e outra que busca a reinvenção da realidade, o que coloca em questão o próprio conceito de centro e periferia. E nesse campo de forças é fundamental uma constante atitude crítica com relação às instituições e à indústria cultural, que para justificarem sua existência se apropriam dessa produção artística.

O que acompanhamos, portanto, são os fluxos de criação e reinvenção numa cidade em que a maioria das pessoas vive em regiões de pouco ou quase nenhum dos equipamentos – cinemas, teatros, centros culturais, bibliotecas –, mas em que há uma intensa vida cultural. São intervenções culturais e sociais (saraus, cineclubes, bailes, riqueza gastronômica, oficinas diversas), grupos artísticos (músicos, poetas, grafiteiros, grupos teatrais e de cinema) em geral, invisíveis para uma mídia que mantém o foco na violência e dilui a complexidade das múltiplas relações que é uma cidade em fluxos.

É a presença também de inúmeros grupos religiosos, que preservam uma herança cultural riquíssima, mas que, ao mesmo tempo, com o crescimento de novas igrejas, sofrem intolerância.

É a presença cada vez mais complexa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs)3, e é o longo caminho da convivência com elas, que oscila entre o estado de direito e a barbárie.

São as dificuldades de mobilidade na cidade para aqueles que nela moram, que, no dia a dia, tomam a forma de longas viagens em condições aviltantes.

É a grande produção de narrativas, para além das redes sociais da Internet, que ganham registro em livros e vídeos; são produções baseadas em outra lógica econômica, que se ordenam na criatividade, na solidariedade e na pressão sobre o poder público. É pensar a criação para além de uma obra de arte, mas como paradigma de um modo de olhar e de fazer corpo no corpo do mundo.

O que fazer para deixar o tempo habitar essas questões e multiplicá-las em outras, para que não percam vigor e dobrem-se em outras possibilidades?

Nas Quebradas do MAR

Com esse balaio de questões nos vimos diante de uma pedra e, aí, um caminho4. Mais uma vez, a Universidade das Quebradas ficou sem casa. À deriva, fomos acolhidos pelo Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR), um encontro promissor5. A instituição se situa no centro da cidade, na área do cais do porto, região com tradição histórica e cultura riquíssima que vivencia momento político e econômico complexo, com projetos de renovação e gentrificação. E assim, novas questões nos atravessam e aumentam nossos desassossegos. Como seria ocupar esse novo espaço, sair do ambiente acadêmico para um museu? O que pode um museu como lugar de acontecimentos? Como manter um campo de tensão entre nós para que as diferenças não se diluam, mas nos aproximem?

O balaio de questões foi aumentando. Como acompanhar os processos que ali aconteciam, desviando das capturas que imobilizam e passam a ser reprodução do mesmo, com um sentido absoluto? Daqui e dali, alguns quebradeiros formulavam novas questões. Como se apropriar de outras linguagens para novas composições de pensamento? Resolvemos nos debruçar sobre o que os quebradeiros trazem, nas bagagens de seus territórios de origem, que possa contribuir para expandir o conhecimento sobre a cidade do Rio de Janeiro. Seria o caso de redesenhá-la culturalmente e expandir suas fronteiras para uma produção que abrigasse uma multiplicidade de expressões? De que forma esse encontro poderia redesenhar a cidade?

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 Cartógrafos convocam a turma. Foto: Noélia Albuquerque.

Para esse mergulho, um grupo de quebradeiros interessou-se em formar um grupo de trabalho (Angelo Mello, Denise Kosta, Fábio Pedroza, Juliana Barreto, Noélia Albuquerque e os professores Beá Meira, Angela Carneiro e Egeu Laus), que se reuniu semanalmente durante um ano. Ao longo desse período, um diálogo foi sendo construído entre o grupo e a turma de 70 alunos, e juntos produziam uma nova composição. Por exemplo, criaram o Manifesto Quebradeiro, que contamos a seguir.

O momento era muito especial. Com a preparação para a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016, a cidade transformou-se num grande canteiro de obras, o que aumentou muito a dificuldade de circulação e gerou clima de insatisfação crescente, a que se somam as notícias dos gastos com as obras para os eventos esportivos, revelando enorme descompasso com relação à distribuição dos investimentos em saúde e educação. O Brasil vai para as ruas e confronta-se com o Brasil feito nos gabinetes. O grande slogan “Você não me representa”, que emerge das ruas, expõe a crise de representatividade, e o país exige mudanças. As redes sociais foram o dispositivo que, como um rastilho, desencadeou um movimento que, num crescendo, explodiu em uma série de manifestações, que ganharam a rua, não só no Rio de Janeiro, mas no Brasil – no dia de maior mobilização, as ruas do país foram ocupadas por um milhão de pessoas.6 Além disso, no Rio de Janeiro, a situação se agrava quando o que era presente no cotidiano da periferia – violência, ausência do Estado, descaso com a população – e a complexa situação das UPPs – que não deveriam ser reduzidas a uma ação policial, mas atuar como política de reterritorialização do Estado – foram cada vez mais evidenciando as contradições, que explodiram com o desaparecimento do pedreiro Amarildo dentro da sede de uma UPP e a prisão e morte da enfermeira Ana Cláudia, ambos vítimas da violência policial.7 A cidade foi atingida como um todo. Tudo isso junto encontrou eco em outros territórios, e um campo coletivo de forças foi acionado.

Quais os efeitos desse cenário nas Quebradas? Os quebradeiros trazem inscritos no corpo a dor e os absurdos de uma cidade que se quer partida e afirmam um tempo de mudanças. Falam da cidade que se quer. Numa ação coletiva, trabalham com a professora Sandra Portugal, no Laboratório de Expressão e Linguagem, a forma narrativa de um manifesto.8

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Sandra Portugal e os manifestos. Foto: Noélia Albuquerque. 

O que é um manifesto, qual a sua relação com a presença e o desejo de utopia, quais são ou foram os diversos manifestos e intervenções na sociedade? Um manifesto tem a capacidade de acionar um campo de forças coletivas?

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4ª turma da UQ. Foto: Noélia Albuquerque. 

Tomar a palavra e não esperar que ela seja dada foi o deslocamento fundamental que tornou esse encontro memorável. Como resultado, lançam o Manifesto Quebradeiro, impressão digital num labirinto multicolorido que busca saídas, não pelo caminho do mais do mesmo, mas do que de fato possa ser inédito. Pela palavra expressa em gesto, o Manifesto afirma a cidade que se quer.

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Labirinto multicolorido de desejos. Foto: Noélia Albuquerque. 

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O manifesto. Foto: Noélia Albuquerque. 

Manifesto quebradeiro

• A cidade que se ama tem sua lógica ambiental.

• Que o mobiliário urbano seja voltado essencialmente para o humano.

• Que nunca deixemos nossos sonhos de construir um país digno e valoroso, com irmãos de pátria e os iguais que moram em nossas gargantas.

• Andemos de mãos dadas. Quem faz junto coopera, quem fala mal compete.

• A verdadeira cultura alternativa tem que ter seu espaço legítimo.

• Por uma cidade que se encontre olho no olho na mesma rua que frequenta.

• Não se cale maré, das ondas criadoras das próprias terras. Onde alicerçou as casas de palafitas.

• Que o presente não construa só o futuro, mas também o passado.

• Que as cidades e pessoas se atrasem, quando tiverem suas pressas.

• Que tirem o “R” do se armem e todos se amem. Que não façamos na urna o mesmo que fazemos na privada.

• Uma cidade, que dança na sua liberdade, a latência de corpos castrados por uma ignorância opressora.

• Os que habitam nessa terra maravilhosa acordem para a importância de sua beleza e a preservação de seus mananciais, e para a destruição de sua identidade, que empobrece as referências do legado deixado por seus ancestrais.

• Que os construtores da economia atentem para a ética da justiça, de olhos abertos sobre os altos de seus belos montes.

• O Rio não é mais aquele, mas continua lindo e se esvaindo.

• Ano de eleição, quero escolher! Homens ou mulheres? Quero cidadãos de bom coração.

• Por uma cidade de carne, humana, como nós. Uma cidade feita de nós, por nós, em nós (de nós cegos ou não).

• Amar a arte que miro no mar.

• Que sejam poéticas as ondas da foz deste rio. De janeiro a janeiro, que sejam proféticas nossas maravilhas as margens. Nós marginais.

• Travessia, um rio que se manifesta e cria.

• Que a paisagem tenha mais árvore e espaço, não somente ferro e aço.

• Que a cidade seja por inteiro, e não apenas parte dela, se dividindo em centro e periferia ou zona norte e zona sul.

• Não acredito em um Deus que não dance.

• Chega de homens que pensam que o corpo é bibelô estéril como enfeite, que não encantam.

• Que possamos viver com liberdade e não prisioneiros das necessidades nessa cidade.

• Meu Rio: Carente. Insegura. Desrespeitada. Atacada. Densa. Espera uma rendição para alcançar a redenção.

• O Rio é rua.

• Essa cidade é minha, essa cidade é nossa.

• E que nesse Rio o amor seja verbo!

E a cidade que se quer trouxe os movimentos da cidade em que se vive. Onde parece que nada acontece, é ali que a turma se concentra para fazer escoar a riqueza cultural e um fazer político que busca mudanças para quem vive na periferia. Para registrar essa produção, o grupo de trabalho pesquisou com a turma e desenvolveu uma série de ícones, que dialogam com a riqueza das expressões da periferia e forjam uma nova cartografia da cidade, mostrando as múltiplas cidades que habitam o Rio de Janeiro em um mapa.

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Arte photoshop: Beá Meira. Ícones para legenda do mapa

Os Rios que deságuam no Mar

Nesse processo de redesenhar a cidade, a água surge como o elemento forte, por sua fluidez, resistência e maleabilidade. Carrega histórias, músicas e ritmos, bebe na fonte da ancestralidade e se transforma em Os Rios que deságuam no Mar. Buscamos saber o que flui na memória e no corpo de cada quebradeiro. Entendemos que o trabalho de cada um em seu território é um modo de expressar os múltiplos atravessamentos que constituem as relações pessoais. Serão essas relações que virão fazer corpo no mapa e quebrar a convenção internacional. Os mapas do Rio de Janeiro, em geral, são os mapas de turismo que mostram a cidade a partir da praia e da zona sul.9 O mapa dos quebradeiros se desnorteia, o norte não é mais a referência, substituído pela linha do trem, que vem lá de Santa Cruz, e pela Avenida Brasil; é a zona oeste que reordena a cidade.

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Seguindo a linha do trem. Foto: Noélia Albuquerque. 

E o mapa traz consigo o espanto com o mundo que emerge das cores, sabores, ritmos, crenças, inventividade, tradição, solidariedade, conhecimento, camadas de tempo falando do presente no meio de tanta dificuldade. O mapa nu é tomado por cada quebradeiro, que dá visibilidade a uma atividade cultural feita das marcas de suas atividades, da circulação e participação em diferentes centros da periferia. Essas marcas desenham um ambiente cultural entrelaçado por uma vida, tinhosa, difícil, de quem é empurrado para ser sobrante no mundo.

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Mapa nu tomado pelos quebradeiros. Foto: Noélia Albuquerque. 

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Mapa desnorteado. Foto: Noélia Albuquerque. 

Garrafas ao Mar

Com o Mapa e o Manifesto prontos, as ideias ganham mundo. Miniaturizados, vão ocupar o interior de garrafas jogadas ao mar.

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Garrafas ao Mar. Foto: Noélia Albuquerque. 

Seguem um ritual que retoma a antiga tradição das garrafas que carregavam um pedido de socorro dos náufragos ou o desejo que algo precioso ganhasse destino. O que esperar?

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Que o preciso desejo ganhe destino. Foto: Beá Meira. 

À deriva, frágeis, sujeitas ao inesperado, na contramão das viagens roteirizadas e seguras, tão em oferta na cena contemporânea. Promessas de futuro no dia a dia do agora. Nós quebradeiros cartógrafos sabemos que a cartografia é sempre parcial e provisória, nada mais do que um fluxo de momentos, que já anunciam outras paisagens desviando-se das redes e capturas em constante atenção. Por isso, se relançar é a condição, se desapegar é se abrir a novas formas, uma maneira de aceitar os riscos do acaso, acompanhá-las, mas sem ter controle sobre elas, seguir com elas, trocar nossas experiências periféricas com outros grupos ou indivíduos, encontrar novos parceiros, extrapolar nossas fronteiras. Mas, mesmo que fosse um gesto no escuro de possibilidade, a opção para acompanhar esta viagem, sem poder de influenciá-la, nos fascinava. Como segui-las em seus percursos?

São as tecnologias contemporâneas do Laboratório de Métodos Computacionais em Engenharia (COPPE/UFRJ), coordenado pelo professor Luiz Landau, que nos darão as condições para acompanhar os fluxos das correntes marinhas por satélites. As garrafas são equipadas com sensores locais (derivadores de superfície, perfiladores e seagliders) e sensores remotos a bordo de plataformas orbitais que registram os fluxos das correntes marítimas.10 Certezas, nenhuma. No mar sem fim, nossas fragilidades ganham uma visibilidade comovente e, num mergulho poético, carregam um profundo desejo de encontro que nos transforme e transforme o mundo.

Três garrafas rastreadas. Foto: Noélia Albuquerque.
Três garrafas rastreadas. Foto: Noélia Albuquerque. 

Revisitando o processo, percebemos que olhar para trás nos permite marcar os pontos que nos fizeram percurso. Percebemos o quanto é difícil ultrapassar o maior desafio, que é trabalhar com o que não é espelho. Caminhar entre nós significou confiar, ouvir, negociar, suportar o não saber, sair dos perímetros conhecidos para a ex-peri-em-si-ação de si e de mundo.

Cartografia, contribuições

A cartografia tem como proposta acompanhar as conexões, desvios e processos que inventam caminhos. A escolha dessa metodologia parte da crença de que a realidade está em constante produção e de que é possível construir territórios que acolham as diferenças resultantes das múltiplas possibilidades de encontros, ou seja, do interesse em pensar nas trans-form-ações.

No caso em questão, a cartografia permitiu olhar para trás e marcar o que, nesse grupo, momento e condições, levou ao caminho que foi trilhado. Tínhamos questões, desassossegos e diferentes linguagens, mas não um caminho. O que nos leva a dizer que a cartografia se faz num campo de forças, em que o interesse estará nas composições dos objetos, e não em suas representações. Diferentemente de mapear, cartografar é acompanhar os movimentos, num contínuo acontecer, num trabalho incansável de invenção de mundos, que fazem e desfazem a paisagem, sempre de maneira provisória e parcial.

Como método, a cartografia é resultado dos estudos de um grupo de pesquisadores brasileiros que, inspirados na obra de Deleuze e Guattari, apresentaram algumas pistas de como usá-la.11 Explicam: a cartografia não é um método pronto; exige do cartógrafo uma atenção que não é focal, mas aberta ao inesperado; se faz na construção de um plano coletivo, de composição de forças, como uma maneira de sair da dicotomia indivíduo-sociedade; trabalha com a dissolução do ponto de vista do observador para evidenciar as implicações de sua presença no campo; e aponta para uma política de narratividade, efeito de uma tomada de posição diante de si mesmo e do mundo, um falar “com” e não “sobre” os acontecimentos. Expõe a dinâmica de um momento, gera uma versão para o mundo a partir dos encontros, mas, como os encontros estão sempre a acontecer, a cartografia tem sua atenção nessas transformações. E nos dobra em uma nova questão.

O que fazemos existir quando produzimos esse trabalho?

Primeiro, certa experiência de produção de conhecimento que toma como direção o potencial emancipador das atividades, o que nos remete ao conceito de conhecimento emancipação de Boaventura de Sousa Santos (2001).12 O autor considera como emancipador aquele conhecimento que pensa as consequências dos atos, em que a relação sujeito-objeto é substituída pela reciprocidade entre os sujeitos, em relações de solidariedade. Forma-se então um espaço que, no dizer de Espinoza (2007), potencializa os bons encontros, aqueles carregados de afetos, tomados pela alegria, como a experiência de ser afetado por intensidades que expandem a vida.13

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Os bons encontros. Foto: Noélia Albuquerque. 

Segundo, ao acompanharmos os processos que entre nós se estabeleceram, seguimos atentos à desconstrução de uma relação hierárquica, procurando exercer uma coordenação no grupo sustentada por uma ética de escuta ao outro, que caminha com o outro, e não sobre o outro. Esse outro, que não é passivo, causa desconforto e nos põe em risco de sermos desestabilizados. É nessa tensão que abrimos espaço para novos conhecimentos.

Terceiro, criar é encontrar um trabalho que se constitui numa trama de encontros: de modos de vida, de diferenças que aproximam, de palavras, mas também de silêncios. Saímos das dicotomias e trabalhamos com o que inclui, no constante jogo do é isso, é aquilo e mais isso e aquilo outro. No jogo de encontros com humanos, mas também com o que o nosso corpo possa se deixar afetar: uma imagem, um objeto, um som, um perfume e que nos faz desviar. Ou seja, nos estendemos nas multitudes dos encontros. Um campo de acontecimentos, muito mais do que o que acontece, mas o que nos acontece, numa poética do encontro com o outro, da ordem do raro e do singular.

Em quarto lugar, um trabalho que pede corpo e tempo, um conhecimento mediado pelo corpo, um corpo expandido, que olha de corpo inteiro, que pode se reinventar e pensar também com a pele, ver com os ouvidos, tocar com os olhos e habitar espaços de tempo. E assim, alargar fronteiras, seguir no encalço daquilo que varia, nas brechas do cotidiano. Principalmente onde nos dizem que nada acontece, é justo ali que devemos pousar nossa atenção. Fazer tempo significou inventar o que chamamos de bolhas de conversas, espaços de encontros, lugar de perguntas que só acontecem quando nos esvaziamos da mesmice reprodutiva. Escutar o que está invisível, mas não menos existente. Planejar cada encontro conforme as pistas que nos oferecem, atentos ao que possa se tornar obstáculo, e fazer disso uma possibilidade. Por exemplo, um dia em que o grupo foi marcado por uma tragédia: uma passarela caiu, morreram pessoas e a cidade se abateu. Nesse dia, a conversa foi difícil, até porque a passarela fazia parte dos percursos de pessoas do grupo. No entanto, a passarela estabeleceu um grande diálogo sobre a própria cidade e trouxe a tensão, o que pode ser ponte e o que pode ser abismo, o que corta e o que aproxima. Assim, pensamos que nossa metodologia se fez nos encontros, esteve por acontecer, através dos laços criados entre nós, em que as diferenças foram matéria de aproximação. De tudo, fizemos dispositivos de diálogo: papel, carvão, tintas, bolas, panos, desenhos, água, textos, filmes, música, palavras, mar, programas, animações, adesivos, fotos.

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Traçando a Avenida Brasil com pincel acrílico. Foto: Beá Meira. 

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Material adesivos. Foto: Noélia Albuquerque. 

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Escrevendo com carvão. Foto: Noélia Albuquerque. 

Por esses caminhos, o depoimento de Hélio Oiticica dado a Ivan Cardoso em 1979, no livro Encontros. Um encontro com a arte como invenção, em que aponta para uma radicalidade do fazer artístico: “eu não me transformei num artista plástico, eu me transformei num declanchador de estados de invenção (…) o estado de invenção é profundamente solitário, mas ele é profundamente coletivo”.14 O artista como um catalisador dos campos coletivos de forças. Por esses campos nos embrenhamos.

Um dispositivo potente que nos sustentou nesse caminho foi o uso das redes sociais. Nos trouxe uma experiência muito importante, mantendo um canal de comunicação contínuo, reduzindo a distância e o tempo entre os encontros. Como também foi um dispositivo de estudo, de compartilhamento de questões e principalmente de sustentação da continuidade necessária do trabalho com processos.

Por fim, o Garrafas ao Mar nos relança a ideia do conhecimento como produção com o outro e não sobre o outro. Para não perder o movimento, é preciso se relançar, buscar as fronteiras que permitem transitar. As garrafas ao mar, com sua poética, nos implicaram com os movimentos de expansão e contágio em buscas de mais encontros. Em que mais do que chegar nos interessam os percursos e a capacidade de produzir narrativas que transportam sentidos das múltiplas possibilidades de invenção. Arranhando os impossíveis, vamos inventando mundos, quiçá mais bonitos e solidários, parando onde as intensidades nos deslocam. E assim, seguindo.

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Nosso desejo de encontrar e transformar. Foto: Noélia Albuquerque. 

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1 BARNES, JULIEN. Altos Voos e quedas livres. Tradução de Léa Viveiros de Castro, Rio de Janeiro: Rocco, 2014.p.11

2 BHABHA, Homi K. O Local da Cultura. Trad. De Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. – 2ª Ed.- Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, p. 19-20

3 UPPs – Unidades de Polícia Pacificadora consiste em um projeto de intervenção policial que se desenvolveu a partir de dezembro de 2007, pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, com objetivos de retomar o controle estatal sobre comunidades que estavam sob influência de grupos criminosos armados, devolvendo à população local a paz e a tranquilidade públicas, necessárias ao exercício e desenvolvimento integral da cidadania. Até a presente data, 39 UPPs foram instaladas em territórios que englobam comunidades, em sua maioria na zona sul, no centro e zona norte da cidade. O projeto, que encontra uma série de desafios dentro da própria polícia como corrupção, violência, abuso de autoridade e despreparo do seu contingente, é bastante polêmico. Por um lado tem a aprovação de parte das comunidades atendidas, que perceberam a diminuição da violência em seu cotidiano e por outro a reprovação de moradores que se viram envolvidos em casos de violência praticados pelos próprios policiais da UPPs, como no caso do desaparecimento de Amarildo de Souza, prisão e morte da enfermeira Ana Claudia, do assassinato do dançarino Douglas Rafael da Silva Pereira, entre muitos outros.
Para ver o mapa com dados do censo das UPPs: http://oglobo.globo.com/infograficos/upps-favelas-rio/ Mais informações: http://www.rj.gov.br/web/seseg/exibeconteudo?article-id=1349728 e http://www.upprj.com/
Para aprofundar: o texto da Silvia Ramos e do Ricardo Henriques é sobre a implantação da UPP Social, um desdobramento do projeto de segurança pública para uma ação social nas favelas pacificadas. Trata-se de um documento com modelos e diretrizes de atuação para o projeto http://www.ie.ufrj.br/oldroot/datacenterie/pdfs/seminarios/pesquisa/texto3008.pdf

4 Se refere o poema “No Meio do Caminho” de Carlos Drummond de Andrade:
“No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra.”
Na verdade para nós, as pedras, nossos desassossegos é que nos fizeram caminhos.

5 MAR – Museu de Arte do Rio foi inaugurado em 2013. É um museu, marcadamente de artes visuais, que busca novas cartografias urbanas e artísticas. Trabalha em linha direta com as escolas municipais, nas relações entre alunos e professores e no entorno com os moradores e trabalhadores, que o circunscreve com a tradição histórica e cultural riquíssima de toda região do cais do porto do Rio de Janeiro. É um museu tramado em parcerias – com universidades brasileiras e internacionais, museus nacionais e internacionais (Museum of Modern Art – MoMA, Fundação Calouste Gulbenkian), centros de produção cultural, moradores, movimentos locais de produção coletiva de saber e de arte e ações coletivas. Para mais informações: www.museudeartedorio.org.br

6 http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/20/em-dia-de-maior-mobilizacao-protestos-levam-centenas-de-milhares-as-ruas-no-brasil.htm

7 Amarildo Dias de Souza (1965/66–2013), pedreiro, que desapareceu depois de ser detido por policiais militares na sede da UPP da Rocinha no dia 14 de julho de 2013. http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/07/1480834-pm-do-rio-conclui-inquerito-militar-no-caso-amarildo.shtml

8 Sandra Portugal faz parte do projeto Educação e Implementação da Fundação Roberto Marinho e da equipe pedagógica da Universidade das Quebradas. Como fruto da parceria entre as duas instituições, ela é a professora do Laboratório de Linguagem e Expressão da Universidade das Quebradas.

9 Seguem alguns links dos mapas tradicionais do Rio de Janeiro:
http://www.praiasdoriodejaneiro.com.br/mapas-rio-de-janeiro/mapa-da-cidade-do-rio-de-janeiro/ ou http://www.colorfotos.com.br/mapa-hist.htm

10 Para ver o percurso das garrafas: http://www.lamce.coppe.ufrj.br/secao-portfolio/garrafas-ao-mar/aplicativo.html

11 PASSOS, Eduardo; BENEVIDES, Regina B. de Barros. Diário de Bordo de uma viagem – intervenção. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia, ESCÓSSIA, Liliana (Orgs.). Pistas do Método da Cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2011, p.173-202 e DELEUZE, Gilles E GUATTARI, Felix. Rizoma. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. Mil Platôs: v.1, p.11-38.

12 SANTOS, Boaventura de Sousa. “Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática”. 3ªed. São Paulo: Cortez, v.1: A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência, 2001 p.103-112

13 ESPINOZA, Baruch. Ética: Da Servidão Humana ou das Forças das Afecções, parte IV. Tradução de Antônio Simões. Os Pensadores, 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 p.238

14 OITICICA, Hélio. Encontros, apresentação César Oiticica Filho. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2009 p.234. A palavra declanchador é um neologismo do Oiticica pegando declanché=gatilho, disparador, que ele aportuguesou.