Cienega
Mediação, arte, ambiente e transformação social na floresta equatorial seca. Puerto El Morro, Golfo de Guayaquil, Cienega Grande, Equador. Recuperação de albarradas ancestrais. Residência Franja Arte Comunidad, 2013. Foto Alejando Meitin

Iniciativa Biorregional:
A redefinição dos espaços de criação e ação 

Ala Plástica

Comentaremos a seguir certas iniciativas transdisciplinares críticas que integram em sua constituição e desenvolvimento a forma artística de pensamento e ação que relaciona arte e ambiente. Essas iniciativas compreendem estratégias e ações comunicativas ligadas aos contextos sociais e que contrastam com a ideologia modernista da neutralidade da arte, visto que operam não só entre os pressupostos discursivos e os lugares institucionais do mundo artístico e de seus públicos, mas também entre os discursos da arte e os do ativismo, abrindo possibilidades para que a estética transcenda seus confins disciplinares e seus âmbitos operativos, e se reinstale em uma prática artística menos orientada a um espectador. Nas iniciativas que apresentaremos, a arte é parte integrante de um trabalho compartilhado, produzido em conjunto ou em negociações com grupos, ativistas, associações, etc. Tais negociações dão forma a comunidades experimentais em que o compromisso dos participantes se dá pela imersão nesse processo de sua criação e o pensamento e o debate público convertem-se em material central e núcleo constitutivo da obra, que envolve um coletivo social ou às vezes toda a população de uma região na encenação de microutopias de interação humana. Essas microutopias constituem um movimento cultural enfocado mais na criatividade social do que na autoexpressão. A obra constitui-se então como um ensemble de forças e efeitos que operam em numerosos registros de significação e interação discursiva.

Actualizando capacidades de analisis territorial. Iniciativa Rizoma
Atualizando capacidades de análise territorial: Iniciativa Rizoma, 2006. Foto: Alejando Meitin

Egosistema

Quando, no século XVI, o explorador espanhol Solís nomeou Mar Dulce o que hoje é o Rio da Prata, tornou evidente sua principal característica natural: sua dualidade. O rio-mar de Solís é um grande cadinho, onde os batimentos marítimos e fluviais se encontram e se misturam. O estuário é também a principal fonte de água doce para a concentração de mais de 17 milhões de pessoas estabelecidas em não mais de 60 km sobre a costa argentina na megaurbe da região metropolitana de Buenos Aires, área sobre a qual existe despreocupação quase generalizada diante do avanço descontrolado da metástase invasora que o processo de conurbanização suscita sobre ecossistemas vulneráveis e escassíssimos.

A cidade simplesmente amplia suas demandas exercendo enorme pressão sobre os ecossistemas costeiros, gerando situações socioambientais de toxicidade que têm graves efeitos sobre a qualidade de vida e a sanidade do conjunto e acarretando conflitos de natureza social, econômica e ambiental aos quais se presta escassa atenção, já que ocorrem fora da área urbana e não a afetam diretamente. O desenvolvimento urbano na região é de tal natureza que os centros metropolitanos em muitos casos são percebidos como sociedades isoladas ou autossuficientes, separadas das regiões que as rodeiam, o que poderíamos definir como um egosistema em que o planejamento enfrenta o homem, deixando como única opção a aceitação dessas transformações, por mais tóxicas e daninhas que sejam.

Data collection. Oil Spill
Coleta de evidência: Derrame de petróleo Shell em Magdalena. 1999. Foto: Marcelo Miranda

Pesquisas avançadas sobre imunodeficiência reconhecem que o corpo humano está conectado por uma rede de comunicações neuroquímicas com nosso entorno, que determina em grande medida nossa saúde e nosso bem-estar. As comunidades se identificam com os sistemas ambientalmente reconhecíveis por meio de uma totalidade compreensiva definível como a vocação do lugar. Essa integração do papel simbólico do lugar com a forma construída na paisagem natural foi representada pela arte na maioria das culturas.

Diversificación de usos del mimbre. Proyección en el espacio urbano. La Plata 2001
Semente: Diversificação de usos do vime. Projeção no espaço urbano. La Plata, 2001. Foto: Alejandro Meitin

Para isso, não é necessário desenvolver um sentimentalismo ou um misticismo, nem mesmo um vital e intenso sentido de conexão com a natureza. É necessário apenas compreender e dar valor a esse sentimento, reconhecendo que o ambiente, em suas manifestações culturais e naturais, é simplesmente uma extensão do que nós somos.

Derrame de petroleo por hundimiento de un buque cisterna. Magdalena. 2000
Coleta de Evidência: Derrame de petróleo Shell em Magdalena. 1999. Foto: Fernando Masobrio

Mas, fazendo frente a essa compreensão natural, a intervenção sobre o meio se estabelece com uma leitura de ocupação baseada na ideia de corredores de transporte dividindo áreas com base em interesses econômicos e com o imagético guiado por meios de comunicação comerciais e instituições financeiras, com apenas alguns espaços de brilhante modernidade.

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Exercício de deslocamento: Ilha de Santiago. 2002. Foto: Thomas Minich

Junco/Espécies Emergentes

Durante os anos 1990, a Argentina estava submersa em escandalosa corrupção política e em um modelo econômico que mantinha grande parte da população na miséria e que posteriormente levaria à explosão social ocorrida em 2001: o povo ocupou as ruas das cidades, confluindo com as múltiplas ações que vinham se desenvolvendo a partir das periferias, mas que até aquele momento não tinham alcance global e que mostrariam ao mundo a crise do capitalismo na Argentina, onde surgiu a frase que uniu um sujeito múltiplo heterogêneo: “Vão todos embora!”.1

Na busca de modos alternativos de produção artística que pudessem responder a tais turbulências políticas e sociais, começamos Ala Plástica em 1991, com foco especial na arte e ação ambiental. Em dezembro de 1995, a dualidade do rio-mar, as características particulares da costa do Rio da Prata e a idiossincrasia de seus habitantes constituíram a geografia de um fazer que ganhou forma a partir de uma experiência que relacionou a arte com o desenvolvimento de exercícios no âmbito social e ambiental.

 

Com o assessoramento da acadêmica Nuncia Tur, do Departamento de Botânica do Museu de Ciências Naturais da Universidad Nacional de La Plata, iniciamos na Ala Plástica um exercício de restauração ambiental que envolveu habitantes, produtores de junco da região, artesãos de cestos, cientistas, naturalistas, ambientalistas, representantes políticos, a partir de novas plantações, técnicas de crescimento induzido e instalações temporárias realizadas com fibras naturais. O objetivo era sustentar o ecossistema costeiro na região de Punta Lara, na faixa ocidental sul do Rio da Prata, utilizando um grupo de plantas semiaquáticas e emergentes, entre elas o junco. Essa iniciativa foi inspirada em íntima conexão com as circunstâncias locais: contaminação das águas, destruição de costas, pobreza, cultura ribeirinha açoitada por um modelo de desenvolvimento unidirecional, educação não referenciada pelo meio, infraestrutura precária, inundações etc. O trabalho também abrangeu a realização de uma mesa redonda de inspiração, na qual discutimos o ameaçado sistema natural costeiro e a relação homem-natureza. Também participaram como convidados internacionais Ian Hunter e Celia Larner, de Projects Environment, hoje Littoral Art2, do Reino Unido, que havíamos conhecido por ocasião da nossa participação no simpósio de arte internacional Littoral. O evento, organizado por eles na cidade de Manchester, foi dedicado à elaboração de “novas áreas para a prática da arte crítica”, e lá tivemos a sorte de conhecer Suzanne Lacy, Helen e Newton Harrison, Grant Kester, Bruce Barber, membros de Platform e WochenKlausur e tantos outros.3

Planting rhizomes
Plantando rizomas na costa do estuário do Rio de La Plata. Foz do córrego La Guardiã, Punta Lara, 1995. Foto: Silvina Babich

O junco cresce em zonas litorâneas, coloniza rapidamente o solo por meio de seus rizomas subterrâneos. Sua emergência provoca a criação de novos territórios por sedimentação, favorecendo o ingresso de outras espécies. A água, depois de sua passagem por essas áreas, mostra significativa redução de contaminantes de todo tipo.

O estudo do extraordinário sistema de propagação do junco, sua vocação de criação de novos territórios e sua capacidade depurativa levou à ativação da metáfora da expansão rizomática e da emergência, para a iniciação de uma série de exercícios interconectados no estuário do Rio da Prata, orientados a sustentar sistemas socionaturais ameaçados, cada um deles vinculado com a ecologia cultural e biofísica da área. Predominou uma visão ampliada sobre complexos ambientais, sociais e econômicos, sustentada em concepções naturalistas que ativam tanto individual como coletivamente outros modos humanos de nos enfocarmos.

Poster Especies Emergentes
Pôster Especies Emergentes (Espécies Emergentes), 1995

As espécies emergentes, que incluem o junco e sua expansão rizomática, nos ocuparam como modalidade criativa para começar um processo de deslocamento e de comunicação ao longo da costa do estuário do Rio da Prata, visando identificar grupos de atores locais e propiciar um resgate socioambiental autogerido, marcado pela metáfora da emergência e pelo modelo de expansão rizomática, relativo tanto ao comportamento dessas plantas, quanto ao caráter emergente de ideias e novas práticas diante do estado de decomposição das redes de relações, assim como ao posicionamento frente à sobrevivência.

Presa - New techniques of cultivation
Cativeiro: Novas técnicas de cultivo. 2006. Foto: Alejandro Meitin

Essa iniciativa deu lugar ao nascimento de uma vontade de resgate de remanescentes da cultura local, utilizando a ideia de rizoma como ferramenta conceitual que vai fundando um tecido de similitudes e reciprocidades, para explorar a possibilidade de desenvolvimento de exercícios criativos integrados. Dessa forma, começamos um trabalho de conexão dos remanescentes naturais e culturais ameaçados entre si a partir da reflexão e da percepção dos problemas que relacionam as estruturas urbanas e o ambiente natural, e propiciamos encontros em pontos de tensão socioambiental tais como escolas carentes, áreas de cultivo na faixa costeira do rio, assentamentos populacionais precários, comunidades aborígenes, cooperativas, e com setores das artes e do meio ambiente.


Cativeiro: Jovens vimeiros. Novas formas de trabalho com o vime. 2006. Foto: Alejandro Meitin

A proposta de trabalho conjunto baseava-se no fortalecimento de capacidades para avançar em direção a novos e criativos modos de interpretar, desenvolver e aplicar, pública e ativamente, perfis socioambientais alternativos a partir da compilação sistemática de informações territoriais sustentáveis (microexperiências, histórias de vida, atividades produtivas, projetos em funcionamento, fluxos de ideias, criação artística, etc.), visando construir um novo âmbito gerador de ideias e interpretações.

satellite delta del Rio de la Plata
Rio de La Plata pelo Satélite Delta. Landsat 7

Esta é a atividade que continuamos realizando até hoje e que gerou uma urdidura de intercomunicação praticamente indescritível, resultando em quantidade inumerável de ações que se desenvolvem e crescem através da reciprocidade. Tratamos de problemas socioambientais, explorando modelos não institucionais e interculturais na esfera social, interagindo, intercambiando experiências e conhecimentos com produtores de cultura e cultivo, de arte e artesanato, de ideias e de objetos.

Solar panel project Isla Paulino
Projeto de painel solar para a Ilha Paulino, 1999. Foto: Alejandro Meitin

O desafio de nosso fazer está centrado em articular forças coletivas para catalisar as possibilidades regenerativas do fazer comunitário, examinando, a partir da arte como forma de conhecimento, as mutações urbanas, os ecossistemas e perguntando sobre o que nós humanos somos capazes de construir ou destruir, e para que o fazemos. Por meio do diálogo, narrativas fotográficas, cartografia, imagens de satélite, desenhos, textos e mapeamentos que incluem os insights dos residentes diante de ações que lesam o ambiente ou o tecido social, mobilizamos novos procedimentos de ação coletiva e de criatividade, gerando intervenções diretas, assim como a participação em pesquisas, exposições, residências e colaborações, tanto nacionais como internacionais.

Territorio y radialidad - Mesa con actores locales
Território e radialidade: Mesa com atores locais. 2013. Foto: Alejandro Meitin

Nessa aprendizagem reconhecemos certos elementos básicos para a regeneração socioambiental, tais como a comunicação e a recuperação do poder fazer; ali encontramos o maior valor da experiência que entre os múltiplos níveis de significado se traduz em um plano tão concreto como a vida das pessoas, e que chega a tornar-se um painel solar, um viveiro, um módulo de comunicação, uma sala de aula ou um galpão, muitas vezes incidindo na mudança de rumo dos acontecimentos, mas que fundamentalmente propicia o acesso a visões mais sensíveis de nossa própria situação.

Esse tipo de aproximação foi despertando interesse e permitiu propagar os termos de referência do trabalho e dar vigor à autogestão organizacional a partir de formas associativas de base solta e empatia mútua na área da Bacia do Prata4 onde atualmente desenvolvemos nossa atividade integrados a várias redes.

Transformación
Transformação. Composição de imagens. Fotos: Alejandro Meitin

Não é uma simples mudança de escala ou perspectiva; é a possibilidade de desenvolver outra objetividade. Desta forma, o olhar da vocação do lugar se fortalece para integrar um movimento emergente como uma área de autonomia na qual o antipoder dos remanescentes culturais e naturais cresce e assume sua corporeidade na cooperação, no fluxo da vida, na consideração de um movimento que se desdobra como um fato social. A obra instalada neste acontecimento emerge na experiência da vida coletiva e cria mundo.

Who desings territories - For Wom
Quem desenha territórios? Para quem? Ateliê de cartografia no Centro Cultural da España em Rosário. 2012. Foto Alejandro Meitin

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1 O que tornou única a rebelião argentina de 2001-2002, que forçou a renúncia de quatro presidentes em menos de três semanas, foi o fato de não se dirigir contra nenhum partido político, de forma concreta, e tampouco contra a corrupção, de forma abstrata. Seu alvo era o modelo econômico dominante: foi a primeira revolta de uma nação contra o capitalismo desregulado de nossos dias. Naomi Klein. “All Of Them Must Go”. The Nation, Fevereiro, 2009 http://www.naomiklein.org/articles/2009/02/all-them-must-go (acessado em agosto de 2014)

2 http://www.littoral.org.uk/littoralteam.html

3 www.suzannelacy.com; http://theharrisonstudio.net/; http://visarts.ucsd.edu/faculty/grant-kester; http://www.brucebarber.ca/; http://www.platform.org.au/; http://www.wochenklausur.at/

4 A Bacia do Rio da Prata tem uma superfície de 3.200.000 km², aproximadamente um terço da área total dos Estados Unidos e quase a mesma área de todos os países que compõem a União Europeia. A partir de seu divisor de águas, abrange parte da Argentina, Brasil, Bolívia, Paraguai e Uruguai.