JM_01
A guerra que não vimos: um projeto de memória histórica. Autor oculto. Pintura vinílica sobre MDF. 140 x 200 cm, 2007.

Juan Manuel Echavarría:
Biografias de múltiplas vozes na guerra que não vimos

Roberta Condeixa

Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade (…).”

Clarice Lispector1

Quando encontrar exige se perder

Ao ter em mãos o catálogo do projeto La guerra que no hemos visto: un proyecto de memoria histórica (A guerra que não vimos: um projeto de memória histórica), 2007–2009, do artista colombiano Juan Manuel Echavarría, durante uma reunião na Casa Daros2, em 2011, o desconhecido e o inominável me afetaram, como se eu estivesse em um ponto zero. Das imagens de pinturas, que a um primeiro olhar nos mostravam os tons de verde da selva, irrompiam repentinamente atos humanos, violentos, brutais, como se estivessem descolados do todo.

O encontro com o artista era para elaborar um projeto para o semestre inaugural da Casa Daros, em 2013. Estavam presentes também o diretor e a gerente de Arte é Educação da Casa Daros, Eugenio Valdés Figueroa e Bia Jabor. Nasceram algumas ideias, muitas com o propósito de um diálogo através da prática artística, sobre a complexidade da violência e da guerra. Echavarría refletia sobre a guerra do narcotráfico colombiano e nós sobre a guerra “‘particular”3 que assola o Rio de Janeiro e como existiam características similares entre ambas as guerras.

Variadas naturezas de atravessamentos perpassam o projeto de Echavarría: a história trágica de seu país; a prática artística como espaço potente de fala; a linguagem como espelho; a guerra e sua natureza mutante; a tragédia em discurso; os limites do circuito da arte para projetos como este que possuem sua potência além dos cubos brancos.

Juan Manuel Echavarría, ser artista em um país em guerra

Echavarría nasceu em Medelín, Colômbia, em 1947, um ano após o início de um período conhecido como La Violencia4, quando variadas guerras civis sanguinárias marcaram a história da Colômbia. Como acontece com a maioria dos artistas contemporâneos de seu país, não só a vida, mas a obra foi circunscrita pelos acontecimentos sociais e políticos nacionais. Muitos desses confrontos ainda perduram. A guerra colombiana é preponderantemente localizada na zona rural, mas, invariavelmente, atinge a órbita nacional.

Juan Manuel foi estudar ainda criança nos Estados Unidos, como tradicionalmente acontece na América Latina com famílias abastadas, perpetuando um estado vigente. A infância e adolescência longe de seu país gerou no artista a sensação de ter perdido parte de sua origem, de sua própria identidade. Echavarría é filho da “vergonha histórica que temos de nós mesmos”.5 Sua obra, em contrapartida, desde o princípio propõe colocar a memória, a literatura oral e a tradição colombiana em discurso.

Tramando um diálogo entre cultura e guerra, Juan Manuel encontra relações de resistências em espaços coletivos (comunidades) e nos indivíduos por meio de uma linguagem poética. Seus trabalhos expõem os limites da humanidade na guerra, tanto em voz, como em rastros e silêncios.

A escrita foi, por muitos anos, uma possibilidade de buscar uma identidade. Seus dois romances, La Gran Catarata (1981) e Moros en la Costa (1991), avaliados pelo próprio artista como ilegíveis, foram parte de exercícios e descobertas de palavras esquecidas do espanhol. Mas, às vésperas de completar 50 anos, Echavarría ousou encontrar outra linguagem para se expressar, a imagem começava a tomar o lugar da palavra.

Na década de 1990, sentindo–se em “estado de cegueira”, inicia pesquisa com fotografia: “Minha fotografia me levou a querer adentrar muito mais em meu país e a enfrentar o presente que estamos… me centrou na problemática social da Colômbia e me levou por um caminho muito mais consciente, em que já não há regresso a uma arte que prevalece a fantasia dos tempos míticos”.6

É quando empreende viagens, encontros e descobertas de comunidades ainda em guerra no território colombiano, registrando imagens-metáforas de um estado social, como também rastros e índices de povoados “desplazados”7 pela violência.

Juan Manuel Echavarría
Retratos, 1996. 35.4 x 27.9 cm. Impressão em gelatina de prata. Coleção Daros Latinamerica, Zurique.

A obra Retratos, de 1996, surge a partir da observação das ruas de Bogotá, onde surpreende manequins completamente destruídos exibindo roupas. Juan Manuel os vincula diretamente aos “sofrimentos” que a guerra impinge aos campesinos, aos moradores da zona urbana, aos cidadãos comuns; a toda mutilação física, mas principalmente simbólica que a violência provoca. Os manequins, com traços étnicos característicos de europeus ou norte-americanos, evidenciam e amplificam a contradição e complexidade extraterritorial da guerra colombiana, estamos aludindo ao envolvimento de uma rede de perpetuações da degradação que envolve outros países.


Orquis Negrilensis. 50.5 x 40.7 cm. Da série Corte de Florero, 1997.
Impressão em gelatina de prata. Coleção Daros Latinamerica, Zurique.  

Muitos de seus trabalhos posteriores lidariam com metáforas que exibem a tragédia e a barbárie da guerra. Corte de Florero, de 1999, expõe o lado trágico da carnificina elaborada como uma classificação científica de espécies da flora. O embate imprevisível de ossos com flores (vida latente) faz referência direta a mutilações nos cadáveres da guerra por meio de cortes, como documentados no livro da antropóloga Maria Victória Uribe.8

As obras dos anos 2000 que nascem das vozes de cidadãos colombianos – tanto cantantes da resistência da guerra (Bocas de Ceniza, 2003–2004) como autores9 da guerra (A guerra que não vimos: um projeto de memória histórica, 2007–2009) – viriam a ser o ponto máximo de uma virada discursiva, quando o artista “abre as paredes de seu ateliê”. É nesta década que Juan Manuel aproxima sua prática à de um editor, um coletor de enunciações, que reúne e constrói um discurso de múltiplas vozes.10

O que mais me interessa hoje em dia é o que eu vou encontrando e descobrindo no campo colombiano, na geografia da guerra, para poder mostrar nas cidades que estão tão longe da guerra.”11


Luzmila Palacio. Bocas de Ceniza, 2003–2004. Vídeo em um canal, 18:50 min, cor, som. Coleção Daros Latinamerica, Zurique.

      
Noel Gutiérrez | Nascer Hernández. Bocas de Ceniza, 2003–2004. Vídeo em um canal, 18:50 min, cor, som. Coleção Daros Latinamerica, Zurique.

Bocas de Ceniza, por meio da voz, gera uma mudança de paradigma para o próprio artista no que tange ao que é ser um criador. Os cantos de variados cantantes registrados por Juan Manuel em diversas regiões da Colômbia exaltam poeticamente a resistência, em planos em que os olhos dos cantantes apontam para além do visível, provocando o transbordamento de dores e alegrias sociais em rituais sonoros que nos invadem e ativam nossa intimidade e cumplicidade.

Bocas de Ceniza é obra inaugural na carreira de Juan Manuel, e fundamental para olharmos o projeto A guerra…, que também parte da polifonia, da linguagem como exercício poético em um corpo de múltiplas vozes. Se em Bocas de Ceniza o artista registra uma manifestação existente, em A guerra… ele é o propositor, passando a atuar não só como um editor, mas também como um ocasionador da polifonia que, paradoxalmente, nasce do silêncio histórico, de vozes inoperantes socialmente, mas que entram em ação na obra de arte, reverberando sua tessitura na zona de contato entre realidade e imaginário.

A guerra que não vimos – um projeto de memória histórica
Uma proposição do artista Juan Manuel Echavarría


A guerra que não vimos: um projeto de memória histórica. Autor oculto. Pintura vinílica sobre MDF, 70 x 300 cm, 2009.A guerra que não vimos: um projeto de memória histórica. Autor oculto. Pintura vinílica sobre MDF, 70 x 300 cm, 2009.


JM_02_Diptico 2  copy_590A guerra que não vimos: um projeto de memória histórica. Autor oculto. Pintura vinílica sobre MDF, 70 x 300 cm, 2009.


A guerra que não vimos: um projeto de memória histórica. Autor oculto. Pintura vinílica sobre MDF, 100 x 175 cm, 2009.A guerra que não vimos: um projeto de memória histórica. Autor oculto. Pintura vinílica sobre MDF, 100 x 175 cm, 2009.


A guerra que não vimos: um projeto de memória histórica. Autor oculto. Pintura vinílica sobre MDF, 100 x 140 cm. Circa 2007. A guerra que não vimos: um projeto de memória histórica. Autor oculto. Pintura vinílica sobre MDF, 100 x 140 cm. Circa 2007.

A guerra que não vimos: um projeto de memória histórica. Autor oculto. Pintura vinílica sobre MDF, 140 x 100cm, 2008.
A guerra que não vimos: um projeto de memória histórica. Autor oculto. Pintura vinílica sobre MDF, 140 x 100cm, 2008.

A guerra que não vimos: um projeto de memória histórica. Autor oculto. Pintura vinílica sobre MDF, 105 x 100cm, 2007.
A guerra que não vimos: um projeto de memória histórica. Autor oculto. Pintura vinílica sobre MDF, 105 x 100cm, 2007.

O projeto A guerra… envolveu 80 pessoas (mulheres e homens), entre ex-soldados rasos, ex-combatentes e desertores da guerra colombiana, tanto da guerrilha (FARC) quanto paramilitares desmobilizados pela lei de “Justiça e Paz”12. Eles foram convidados por Echavarría a contar suas memórias em oficinas de pintura entre os anos de 2007 e 2009, com o propósito de motivar relatos das experiências vividas no campo em meio à guerra do narcotráfico, em diversas zonas geográficas colombianas.

Dos 420 quadros resultantes dessas oficinas, 90 foram selecionados pela curadora uruguaia Ana Tiscornia para uma grande exposição no Museu de Arte Moderna de Bogotá, na Colômbia, em 2009, e compõem o catálogo La guerra que no hemos visto – Un proyecto de memoria histórica (A guerra que não vimos um projeto de memória histórica).

 

A proposta de visita-pesquisa, em Bogotá, ao acervo da Fundação Pontos de Encontro13, no ano de 2012, visou entrevistar Juan Manuel e conhecer o projeto A guerra que… com o objetivo de desenvolver um projeto para 2013 na Casa Daros, com curadoria do diretor de Arte é Educação, Eugenio Valdés Figueroa, e da gerente de Arte é Educação, Bia Jabor. Couberam a mim a pesquisa local, a concepção e a posterior realização dos Fóruns Desenterrar e Falar.

Conheci como são armazenadas as pinturas, em traineis como em uma reserva técnica de um museu de excelente qualidade arquivística; entrevistei Juan Manuel Echavarría e o participante-autor Jhon Jairo Camacho, que relatou sua experiência na guerra. A oportunidade de ver o processo de formação de algumas pinturas, retiradas parte por parte minuciosamente (as imagens são formadas por vários retângulos de Eucatex), por Noel Gutierrez e Fernando Grizales, que concebeu e realizou as oficinas com Juan Manuel, possibilitou uma percepção ampliada do projeto e impulsionou a proposta de incluir também a escuta como prioridade para a produção de diálogos sobre a violência vivida cotidianamente no Rio de Janeiro.

O artista como ouvinte | O Fórum como diálogo entre guerras, manifestações e arte

Em maio de 2013, uma pequena mostra contendo seleção de 11 pinturas do projeto A guerra… foi realizada na Casa Daros, quando pela primeira vez as imagens foram mostradas no Brasil, acompanhadas de áudios com depoimentos dos autores. Parte do programa de residência de pesquisa de Echavarría foi elaborado a partir dos Fóruns Desenterrar e Falar. Nesses encontros, após o processo de Echavarría ser compartilhado, armávamos uma arena de escutas, para que novas vozes pudessem expressar a experiência da violência da guerra particular vivida em nosso cotidiano no Rio de Janeiro.

 

Nosso propósito era convidar projetos ou grupos em que a arte e a coletividade gerassem respostas humanizadas e críticas a uma situação que atinge principalmente negros e pobres. O ponto de partida era as vozes dos guerrilheiros de A guerra… como espelhos de novas vozes.

Selecionamos seis grupos para encontros com Echavarría ao longo do período expositivo. Uma roda montada no centro da exposição tinha como proposta compartilhar projetos e ações, provocar vozes silenciadas, acionar novos discursos e autores que se utilizam de dispositivos, principalmente através da arte, em zonas e espaços da cidade onde o direito e o acesso a bens culturais são escassos. Foram eles:

 

O Grupo do Teatro do Oprimido, da Maré, que utiliza o método do teatrólogo Augusto Boal, que propõe a experiência real como cena teatral;

A ONG Observatório de Favelas, também da Maré, cujo Programa Imagens do Povo alia a técnica fotográfica às questões sociais, registrando o cotidiano das favelas através de uma percepção crítica;

A Cia. Completa Mente Solta, criada em 2006 pelo ator Márcio Januário, como projeto de arte e educação no Colégio Estadual André Maurois, que oferece a jovens formação educacional alternativa à da sala de aula, estimulando a leitura, a pesquisa, a escrita e a criatividade por meio da discussão de temas atuais ou históricos, depois transformados em esquetes teatrais, fotos, textos, músicas ou debates nas oficinas;

A ONG AMAR, do Vidigal, associação de mulheres que propõe, através de variados profissionais e da psicanálise, uma potencialização da mulher na comunidade;

A Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, que visa acompanhar e subsidiar a Comissão Nacional da Verdade no exame e no esclarecimento das violações de direitos humanos praticadas no período da ditadura militar, para efetivar o direito à memória e à verdade histórica.

Nesses encontros, Juan Manuel se colocava no processo de escuta e compartilhava a guerra colombiana através das pinturas de cada um. O que realmente estava em questão era entender o ser humano em estados de violência, suas reações, resistências e seu estado de reinvenção de si, de um devir. Esses encontros criaram um território, uma abertura por onde passa os discursos dos sujeitos desejosos de um devir.

Nenhum ser humano jamais viveu sem sonhos diurnos, mas o que importa é saber sempre mais sobre eles, e, desse modo, mantê-los direcionados de forma clara e solícita para o que é direito.”

Ernst Bloch14

Ao grupo era colocada uma pergunta sobre sua experiência particular com a violência, com a educação, com a comunidade, e como cada um e o grupo vivenciavam subversões e encarnações de falas. Posso dizer que operávamos na angústia frente à vida e contra as “maquinações do medo”15.

 

Na véspera do Fórum com o grupo do Observatório de Favelas – Imagens do Povo, a favela da Maré foi tomada por policiais, terminando com alguns mortos. Em conversa com integrantes da ONG pelo facebook, os relatos eram de guerra. Sabemos que são práticas normalizadas os abusos policiais na comunidade e nas próprias casas dos moradores, a violação aos direitos humanos é prática comum do Estado. Pensamos em cancelar o evento que seria no dia seguinte à brutalidade, mas os convidados ressaltaram que exatamente pelo ocorrido deveríamos falar, foi o Fórum mais efusivo.

Coincidentemente – ou por uma reverberação de conjunturas limites –, no mês em que a exposição era inaugurada iniciaram-se em todo o Brasil as manifestações que tomaram as ruas em junho de 2013. Primeiramente, anunciando um descontentamento com os transportes públicos, com o movimento do Passe Livre, e multiplicando-se em reivindicações pelo país, principalmente após a forte repressão policial. O país liberava sua voz. O descontentamento silencioso aparecia nas ruas em um corpo coletivo sonoro.

Os encontros com Juan Manuel, que eram abertos também à participação do público, em meio à exposição, colocaram em operação múltiplas vozes da guerra escondida vivida cotidianamente nas favelas do Rio de Janeiro e que não é estampada nas grandes mídias, não sendo nem mesmo consenso sua existência. Em contrapartida, a guerra colombiana na selva, uma das mais violentas do mundo, era revelada por relatos e depoimentos daqueles que nela estiveram.

Colômbia, nossa fronteira de fantasias
Uma guerra, uma imagética, uma arte de resistência

Como nos afirma o crítico de arte colombiano Miguel Gonzáles, estamos tratando de um país que viu nascer sua contemporaneidade não pela ruptura das linguagens, nem pela superposição de temporalidades, tampouco pela hegemonia econômica, mas por um novo período histórico singularizado por uma guerra civil.

Em realidade o acontecimento que dá início à contemporaneidade na Colômbia é o 9 de abril de 1948, quando o povo, sublevado, atacou o centro da capital do país mediante assalto, queima e destruição de edificações e meios de transporte. El Bogotazo16, como foi chamado, se produziu pelo assassinato de seu máximo líder de oposição ao governo, Jorge Eliécer Gaitán.”17

Países como a Colômbia, o Brasil e outros da América Latina não podem enriquecer suas leituras e pesquisa em arte sem antes olharem para suas próprias histórias particulares, povoadas de guerras civis, ditaduras e processos de lutas de libertação, em um contexto latente de repressão da fala. Que potências ou sintomas essas equações sociais provocam na arte?

Na Colômbia, a guerra contra as oligarquias rumou historicamente para uma guerra do narcotráfico. As revoltas iniciadas com os desejos de revolução, que afloraram também em variados países da América Latina, impulsionadas pela Revolução Cubana, acabaram se subvertendo em uma guerra civil que perdura até hoje.

A consequência da morte do líder Gaitán, associada às repressões anticomunistas exercidas pelos Estados Unidos na década de 1960, desembocou no surgimento das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), grupo que se opunha à aliança entre liberais e conservadores. A esse tempo, a guerrilha era composta por comunistas que, após a radicalização da guerrilha camponesa, fugiram para a selva, região montanhosa.

As FARC são uma entre muitas guerrilhas e revoluções marxistas-leninistas que surgiram na América Latina naquele período, como a do Araguaia no Brasil, que tiveram a revolução cubana como máximo exemplo. Lutavam internamente, mas também contra a ameaça radical estrangeira, os Estados Unidos da América, que financiaram parcela das ditaduras na América Latina.

As FARC rumaram para uma atuação controversa, financiadas pelo mercado de drogas. São denominadas terroristas pelo próprio Estado colombiano e, principalmente, pela União Europeia; são consideradas como força insurgente por Cuba e países como o Brasil. Estão entre os maiores fornecedores de drogas para o comércio norte-americano, o que também ocasiona grande envolvimento de capital estrangeiro em sua estrutura.

Segundo texto publicado na revista Caros Amigos em 201118, a Colômbia possui um exército com a mesma quantidade de homens e mulheres das Forças Armadas do Brasil, país com população quatro vezes maior.

O desconhecimento da maioria dos brasileiros no que diz respeito à Colômbia, país com o qual temos fronteira, é fundamentalmente político. A cegueira perpetuada entre os países da América Latina nos foi implantada em “chips” conceituais da colonização. No caso brasileiro, é ainda mais séria pela questão linguística e por uma imposição cultural radical que remete nossos olhares diretamente a Europa e Estados Unidos.

A tomada de nossos territórios pela colonização não nos afetou somente nos campos econômico e político, mas também na nossa potência interna de voz. Parte dessa voz, que além de individual é histórica e coletiva, está refletida no projeto A guerra que não vimos: um projeto de memória histórica. Como diz o curador José Roca: “Os prejuízos derivados do olhar eurocêntrico (…) mascararam durante séculos uma compreensão adequada da realidade local.”19

A arte como fala particular: A guerra que não vimos – um projeto de memória histórica

A guerra que não vimos – um projeto de memória histórica revela o acionamento de dizeres da arte como falas de resistências e reinvenções de uma realidade dada. Afirma a crença na arte como acionadora de uma linguagem viva, que se constrói por estados de forças que se movem como fala para a vida, através da linguagem poética, que, segundo as palavras de Suely Rolnik, tem relação direta com o que nos é essencial: “o exercício poético é completamente essencial porque ele é exatamente essa recriação de pensamento que pode se dar tanto numa obra de arte como na existência (…), o poético é uma política de produção de pensamento, de produção da realidade.”20

A guerra… coloca em ação como os sujeitos se relacionam externa e internamente, em uma afetação da linguagem, a maneira como seus corpos se colocam frente aos estados de vida, metaforicamente expondo os nossos próprios corpos. Como proclamou Eduardo Galeano, nossa voz faz aparecer “os fantasmas de todas as revoluções estranguladas ou traídas ao longo da torturada história latino-americana, emergem nas novas experiências, assim como os tempos presentes, pressentidos e engendrados pelas contradições do passado.”21

O projeto A guerra que…, de Juan Manuel Echavarría, nos coloca frente à complexidade desse estado social em arte, ou mesmo, contrariamente, nos expõe a complexidade da arte em contato com seus meios (institucionais) limítrofes.

Quando o desconhecido nos é apresentado em imagens
Voltemos às pinturas

Ser é além do humano. Ser homem não dá certo, ser homem tem sido constrangimento. O desconhecido nos aguarda, mas sinto que esse desconhecido é uma totalização e será a verdadeira humanização pela qual ansiamos. Estou falando da morte? Não, da vida. Não é um estado de felicidade, é um estado de contato.”22

Clarice Lispector

As pinturas de natureza naïf, feitas por pessoas que não possuem prática em desenho – muitas são analfabetas –, exibem planos com perspectivas peculiares. Algumas pinturas retratam grandes paisagens, vistas aéreas, outras, em primeiro plano, destacam o ato narrado; às vezes, o homem é maior que a natureza, em outras o corpo é quase invisível em meio ao todo.


 A guerra que não vimos: um projeto de memória histórica. Autor oculto. Detalhe de pintura.
Pintura vinílica sobre MDF, 100 x 140cm, 2007.

Os detalhes em cada parte (retângulos de Eucatex), ou mesmo, contrariamente, na complementação de um retângulo com outro, nos colocavam diante da parte e do todo, em um diálogo em que ora um (retângulo da pintura) é protagonista, ora mais de um retângulo dialogam para a elaboração de uma narrativa. A margem de cada parte, o limite de suas bordas é um espaço de passagem, quanto de interrupção, quanto simbólico.

JM_01_detalhe
A guerra que não vimos: um projeto de memória histórica. Autor oculto. Detalhe de pintura. Pintura vinílica sobre MDF, 100 x 140cm, 2007.

Os autores da guerra colombiana pintaram vidas coabitando no limite da contradição da tragédia: assassinatos, estrangulamentos, atos bárbaros com utilização de instrumentos como serra elétrica em meio à exuberância de cores e luzes da selva colombiana, muito bem mapeada e exibida como uma estratégia de guerra – a selva é próxima dessas pessoas.

É a sensação de estranhamento inquietante (unheimilicht), de que nos fala Freud23, que irrompe das imagens bucólicas. As pinturas nos confrontam com a possibilidade de olhar o “horror” de perto. A estratégia utilizada por Echavarría vincula-se ao mito de Perseu, que utiliza um escudo como reflexo capaz de matar a Medusa.

A grandiosidade da selva em tom sobre tom suaviza o olhar, ameniza a violência relatada por pincéis, pelas mãos daqueles que tanto sofreram quanto atacaram na guerra do narcotráfico colombiano. Civilização e barbárie demonstram um limite fronteiriço revelado em cores e tinta.

O sujeito imerso em uma guerra representa-se. Em muitas pinturas vemos e revemos, através de formas e cores, subjetivações inconscientes do traço. Alguns dos autores se colocam imensos diante de um outro submetido a violência. Outros se escondem em meio ao ato que não podem ou não querem ver, pintando a si mesmos pequeninos como em sua quase ausência de voz.

Na selva, escondidos pelo verde, os sujeitos se inserem na paisagem de algum espaço-tempo de suas memórias, em casas rurais, na vida cotidiana do campo. Algumas imagens quase nos solicitam a ligação com um espaço ideal; às vezes, esse espaço é um pedaço de pintura, onde um outro lugar pode vir a ser possível, outras vezes a construção de um arco-íris, ou de uma luz viva, irrompe do céu, iluminando a vida comum.

Echavarría compartilhou conosco variadas leituras e simbologias sobre algumas das 420 pinturas do acervo da Fundación Puntos de Encuentro. Sobre a obra La Massacre del Naya (O Massacre de Naya), por exemplo, nos contou que o vermelho na pintura não é apenas uma cor escolhida por sua tonalidade, mas resultado de associações e referentes inconscientes que tomam corpo.

O díptico O Massacre de Naya, executado por dois autores, é extraordinário, é impressionante, foi feito por dois pintores. Um deles era um ex-guerrilheiro. Ele nos dá o detalhe, marca o território (…) Aqui está o céu ensanguentado. Ele divide o quadro em dois: na parte de cima, tudo está perfeito e as pessoas seguem seus trabalhos cotidianos; na parte de baixo está o massacre. É bem fascinante a linha divisória, pois neste país muitos vivem do ‘outro lado’. Quando eles se pintam nas suas obras, se pintam pequenos (…).”24

Pintar-se / rever-se / fronteiras de espelhos

As estratégias da prática artística compartilhada por Echavarría são potências de falas. O ato de fazer pintura aciona o sujeito autor da guerra, em um jogo de significados e significantes que vão além da memória histórica (nome do projeto). Na verdade, o sujeito e o jogo são parte de uma negociação entre memória, consciente e inconsciente, que os autores potencializam para poderem ver-se e reler-se via linguagem.

A revelação não descobre algo exterior, que estava aí, alheio; o ato de descobrir entranha a criação do que vai ser descoberto: nosso próprio ser. Nesse sentido, pode-se dizer, sem temor de incorrer em contradição, que o poeta cria o ser. Porque o ser não é algo dado, sobre o qual se apoia nosso existir, mas algo que é feito. O ser não pode se apoiar em nada porque o nada é seu fundamento. Assim, não lhe resta outro recurso senão segurar-se em si, criar-se a cada instante.”

Octavio Paz25

É em um estado zero que o sujeito é colocado em A guerra…, como ressalta Paz, “criar-se a cada instante”. Ver-se no fazer poético. Não é um espaço de conscientização de um ato bárbaro que está em questão, senão um processo de construção e desconstrução de si.

Podemos dizer que o que está em operação são dispositivos para acionamentos de uma “autopoética26. As pinturas são imagens experiências: o fazer, o pensar, o parar, o não falar, o ato falho estão em jogo. “Quando eu escolho desenhar eu me lembro de outras coisas que eu não escolhi memorizar”. O depoimento do artista brasileiro Eduardo Berliner27 é extremamente próximo ao que acontece com os desertores da guerra, guerrilheiros, paramilitares e ex-soldados do exército colombiano. Como nos revelou Jhon Jairo, participante do projeto entrevistado por nós:

Creio que fazer esta obra foi como descarregar toda a recordação. Um morre, e quem fica com as recordações? Ninguém. Eu creio que aqui nós pudemos mostrar o que estava guardado conosco, a pintura colabora com contar cada vez mais.”28

O trabalho realizado pelo artista Almir Mavignier (1925) no Ateliê de Pintura e Modelagem da Seção de Terapêutica Ocupacional do Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro (atual Museu de Imagens do Inconsciente), entre os anos de 1946 e 1951, no Rio de Janeiro, aproxima-se da atenção ao processo, ao ato, que constatamos na proposição de Echavarría.

Mavignier, que à época era responsável pelo ateliê de pintura, a convite da psiquiatra Nise da Silveira, então diretora do hospital, atentamente utilizou para Emygdio – paciente do hospital e participante do ateliê, que pintava obsessivamente – a estratégia de trocar a tela, para que ele continuasse, em série, um pensamento. Similarmente, Juan Manuel possibilitou em retângulos de Eucatex um espaço de contato – na mesma pintura era possível fazer coabitar mundos e ampliar uma inserção de si no todo.

Ambos, Mavignier e Juan Manuel, distantes mais de 50 anos na história, estão atentos à espera do encontro, elaboram estratégias, práticas, para o contato do outro com a realidade transmutada em “nova forma e cor”, não idealizada pelo artista, mas criada por um outro, que rebate o espelho em uma zona de contato imprevisível. Dois artistas aproximam estados de agenciamentos e terapêuticas da loucura e alienação mental.

Sei que precisarei tomar cuidado para não usar superficialmente uma nova terceira perna que em mim renasce fácil como capim, e a essa perna protetora chamar de uma verdade. Mas é que também não sei que forma dar ao que me aconteceu. E sem dar forma, nada me existe. E – e se a realidade é mesmo que nada existiu!? Quem sabe me aconteceu apenas uma lenta e grande dissolução? E que minha luta contra essa desintegração está sendo esta: a de tentar agora dar-lhe uma forma? Uma forma contorna o caos, uma forma dá construção à substância amorfa – a visão de uma carne infinita é a visão dos loucos, mas se eu cortar a carne e distribuir em pedaços e distribuí-los pelos dias e pelas fomes – então ela não será mais a perdição e a loucura: será de novo a vida humanizada.”

Clarice Lispector29

Talvez o contato, para uma experiência

Como, pois, inaugurar agora em mim um pensamento?”

Clarice Lispector30

Em Cartografia Sentimental, Suely Rolnik nos convida à perspectiva de uma linguagem que ousa com os limites da vida, da potência que não se atrela a uma questão moral, mas a uma ética social que propõe reinvenções de mundos. Tal possibilidade se dá no desejo do corpo (corpo vibrátil), que se coloca em cada singularidade de uma situação, na linguagem. O cartógrafo seria aquele que inventaria pontes de travessia, que se dar-se-iam na linguagem: “Vê-se que a linguagem, para o cartógrafo, não é um veículo de mensagens-e-salvação. Ela é, em si mesma, criação de mundos. Tapete voador… Veículo que promove a transcrição para novos mundos; novas formas de história”.31

Na guerra, o que cabe é a dominação do corpo, a supressão da invenção de mundos. A guerra é o símbolo maior de um estado de anulação, seu objetivo sendo a paralisação do que existe, “anulação dos tapetes voadores”. Assim, o ato maior da conquista de um espaço simbólico seria deter o movimento dos corpos. O impacto mais brutal disso nos foi mostrado após o aprimoramento das tecnologias de imagens, que permitiu circular fotografias de amontoados de corpos de judeus, mortos em câmara de gás, durante a segunda guerra (1939 a 1945). Os corpos como um amontoado de roupas: a contenção simbólica do corpo e a imagem dessa contenção são o caráter máximo de uma ideologia de contenção.

A imposição radical de anulação de um ciclo de pulsão de vida é provocadora de vários sintomas sociais, abafando a potência de fala. Suely Rolnik nos aponta que a supressão política aciona radicalmente nossas subjetividades. O que ainda podem nos contar esses corpos abafados, como podem falar? E se falam, como e por onde falam?

Em “Experiência e pobreza”, Walter Benjamin diz que a experiência é o que cala.32 Com isso quer dizer que a fala, o depoimento após a vivência da guerra não seria possível, somente o silêncio. Há algo que emudece em processos de traumas profundos, dilaceradores.

Se migramos nosso olhar para algumas pinturas de A guerra…, encontramos nelas também essa impossibilidade da fala, como colocada por Benjamin, ou mesmo, em alguns casos, uma busca de um contato que não se estabelece. Há algo mais complexo do que proporcionar a alguém a capacidade de falar de seus traumas por pincéis. Trata-se de um projeto em que o artista provoca linguagem (através da técnica da pintura) por imagens; entretanto, um sistema de negociação comunicativa é posto em ação, e silêncios, negações, imprevisibilidade, inventividade e vazios fazem parte da prática, e as imagens também são rastros.

As chamadas autobiografias seriam indiferenciáveis da ficção em primeira pessoa, desde que se aceite ser impossível estabelecer um pacto referencial que não seja ilusório (quer dizer: os leitores podem acreditar nele, até mesmo o escritor pode escrever com essa ilusão, mas nada garante que isso estabeleça uma relação verificável entre um eu textual e um eu da experiência vivida), como na ficção em primeira pessoa, tudo o que uma “autobiografia” consegue mostrar é a estrutura especular em que alguém, que se diz chamar eu, toma-se como objeto. Isso quer dizer que esse eu textual põe em cena um eu ausente, e cobre seu rosto com essa máscara.”

Beatriz Sarlo33

Múltiplas biografias de afetos
Ou sinais de telégrafos, a orquestra de sons

Um ato de nossa atividade, de nossa real experiência, é como um Jano bifronte: ele olha em duas direções opostas, ele olha para uma unidade objetiva de domínio da cultura e para a unidade irrepetível da vida realmente vivida e experimentada.”

Mikhail Bakhtin34

Estou adiando. Sei que tudo o que estou falando é só para adiar – adiar o momento em que terei que começar a dizer, sabendo que nada mais me resta a dizer. Estou adiando o meu silêncio. A vida toda adiei o silêncio? Mas agora, por desprezo pela palavra, talvez enfim eu possa começar a falar.

Os sinais de telégrafo. O mundo eriçado de antenas, e eu captando o sinal. Só poderei fazer a transcrição fonética. Há três mil anos desvairei-me, e o que restaram foram fragmentos fonéticos de mim. Estou mais cega do que antes. Vi, sim. Vi, e me assustei com a verdade bruta de um mundo cujo maior horror é que ele é tão vivo que, para admitir que estou tão viva quanto ele – e minha pior descoberta é que estou tão viva quanto ele – terei que alçar minha consciência de vida exterior a um ponto de crime contra a minha vida pessoal.”

Clarice Lispector35

O projeto A guerra… opera com falas complexas, que se entrelaçam, se somam, se multiplicam e se individualizam. Echavarría sempre trouxe à tona, em entrevistas, a sua não influência no processo das oficinas de pintura, seu trabalho sendo um convite à expressão do outro, a oferta de um espaço para os participantes, sem nenhuma influência da história da arte e da pintura, para expor a memória histórica de uma guerra por seus autores e afetos.

Todavia, é imperioso notar que todo ato provocador de fala está imbuído também de uma intenção de escuta. Echavarría é o propositor de uma “estética da existência”36, entretanto sua fala, sua biografia também faz-se presente, seja como artista, seja em em seu existir, como homem, cidadão colombiano, seja na junção desses papéis que não são margeados de forma rígida. Como um orquestrador desse processo, sua escuta é afetada. Sua voz é parte tanto do encontro com suas próprias perguntas neste país em guerra, como também do que fala por dentro de um circuito da arte, não pertencente ao mundo dos participantes protagonistas da barbárie, atuantes do mundo da sobrevivência e distantes das assepsias das galerias.

Para Bakhtin, todo signo é ideológico, ele reflete o campo das estruturas sociais, com um discurso interior, visualizado na enunciação. Há um complexo de vozes em atuação em A guerra…: a proposição aciona vozes biográficas particulares, que se inauguram no ato, mas que se inserem em um todo social, em um mesmo dado de temporalidade, do singular e do cultural, como enunciações múltiplas.

O projeto de Echavarría provoca a geração existencial da linguagem com um complexo social em jogo, a guerra e o “assassino”, o artista e os circuitos da arte, a autoria: artista ou participantes? Como aponta Deleuze, “A arte é o que resiste: ela resiste à morte, à servidão, à infâmia, à vergonha”37, assim ela é capaz de transgredir as “organizações sociais” pela potência da linguagem poética, que seja em um momento fundante. A visualização de paradoxos na circulação das vozes, por onde elas passam, para quem falam, não abafam suas reverberações, operando subjetivações em um corpo sonoro, que se dá na parte e no todo, que não podem ser apartados uns dos outros.

A guerra… é um corpo de grafias vividas de múltiplas vozes, que inseridas em sistemas das artes contemporâneas colocam em questão as reverberações dessas falas. Elas se dariam nas pinturas colocadas nos museus? Nas vozes dos processos compartilhados de oficinas que tiveram mais de dois anos de duração? Quais vozes estão operando no Projeto? A voz do arquivo de 420 pinturas? A voz da organização de legados pessoais? Ideias sobre uma guerra? A exposição e seleção como falas?

Como a complexidade envolvida se dá na prática? O artista como pertencente a esta sociedade em guerra, de qual lugar da guerra ele fala? Onde ela afeta seu corpo e sua subjetividade? Como, além de propositor, ele pode ser olhado, enquanto olha?

O projeto La guerra perpassa uma linha tênue de contato limite entre a potência da prática, da experiência e sua posterior inserção no circuito institucional de arte contemporânea. Mas, como arte, extrapola a condição social, são as reminiscências, os estados poéticos, os pequenos gestos de fôlegos de sobrevivência que ficam como falas para o infinito.

Agradecimento especial ao artista Juan Manuel Echavarría, por compartilhar materiais e reflexões generosamente; à Casa Daros, pela cessão das imagens e por possibilitar o desenvolvimento desta pesquisa; à Revista Mesa, pelo convite.

_

1 LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998. p.12

2 A Casa Daros é uma instituição da Daros Latinamerica, uma das mais abrangentes coleções dedicadas à arte contemporânea latino-americana, com sede em Zurique, Suíça. A Daros Latinamerica conta com mais de 1.200 obras, entre pinturas, fotografias, vídeos, esculturas e instalações, de mais de 117 artistas, e segue em expansão. Além de expor mostras da coleção, a Casa Daros é um espaço de arte, educação e comunicação, que ocupa um casarão neoclássico do século XIX, preservado pelo Patrimônio da cidade do Rio de Janeiro. Realiza variadas propostas em que o artista e seu processo criativo são partilhados em exposições, workshops e palestras de Arte é Educação. Projetado pelo arquiteto Francisco Joaquim Bethencourt da Silva (1831-1912), encontra-se em um terreno de mais de 12 mil metros quadrados, em Botafogo, Rio de Janeiro.

3 O termo “guerra particular” foi usado por Rodrigo Pimentel, ex-capitão do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais), e utilizado por João Moreira Salles no documentário que retrata o cotidiano de traficantes e moradores da favela Santa Marta, no Rio de Janeiro (1997–1998). No filme, Moreira Salles aborda, por meio de entrevistas, as falas de policiais, traficantes e moradores e demonstra uma trama de envolvimentos que geram uma guerra em que o Estado é cúmplice e promove um apartheid social propagado nas estatísticas que escondem o rosto e a vida da exclusão, impulsionada pela perpetuação da pobreza e pela histórica escravatura, em que negros e pobres são duplamente vítimas de um Estado não acolhedor. Agora, no momento que escrevo este texto, temos uma nova realidade com as UPPs, ainda bem complexa. Santa Marta é considerada uma favela pacificada, mas o panorama atual demonstra a perpetuação de violências escondidas, por meio da não atuação na complexidade da pobreza, e a continuidade da falta de acesso aos serviços públicos.

4 Este período ficou caracterizado pelas disputas pela propriedade de terra no campo colombiano – o motivo principal que desencadeou o conflito entre camponeses, conservadores e liberais. O marco dessa guerra para muitos historiadores foi a morte, em 1948, de Eliécer Gaitán, líder do partido liberal que era contrário ao monopólio de terras.

5 Depoimento de Juan Manuel, entrevista concedida em 03/04/2012 no ateliê do artista em Bogotá, Colômbia.

6 REUTER, Laurel. Una conversación: Juan Manuel Echavarría y Laurel Reuter. In: JUAN Manuel Echavarría: mouth of ash = bocas de ceniza. Milano: Edizione Charta, 2005. p.72

7 A palavra “desplazado” foi utilizada intencionalmente, por não existir no português sinônimo que confira a mesma intensidade. “Desplazado”, neste caso, seria quem muda de lugar sem escolhas, caso de famílias que são forçadas a se retirarem de suas terras devido à guerra.

8 Em Matar, Rematar y Contramatar, a antropóloga colombiana Maria Victória Uribe faz uma análise sociológica dos processos violentos desencadeados a partir do período La Violencia e descreve os cortes e mutilações utilizados nos cadáveres como simbólicos e estratégicos para desaparecer com os corpos. Ver: URIBE, Victoria. Matar, rematar y contramatar. Bogotá, D.E: Centro de Investigación y Educación Popular, 1990.

9 A utilização da palavra autor para os participantes do projeto foi reiterada ao longo do artigo intencionalmente, primeiro para colocar em questão a autoria, segundo para não classificar os participantes como assassinos da guerra, nem tampouco como artistas; a proposição de A guerra… cria uma suspensão para classificações rígidas socialmente.

10 O termo “corpo de múltiplas vozes” foi elaborado por Bakhtin principalmente no livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, que, do ponto de vista da construção dos sentidos, visualiza todo texto – discurso – perpassado por vozes de diferentes enunciadores, ora concordantes, ora dissonantes, o que faz com que se caracterize o fenômeno da linguagem humana como essencialmente dialógico e, portanto, polifônico. Ver: BAKHTIN, Mikhail (VOLOCHÍNOV, Valentin Nikolaiévitch) [1929], Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 13. ed. São Paulo, Hucitec, 1995.

11 Juan Manuel Echavarría em conversa com Hans-Michael Herzog. In: HERZOG, Hans-Michael. Cantos cuentos colombianos: arte contemporânea colombiana. Rio de Janeiro: Cobogó, 2013. p. 10 – 11.

12 A Lei de Justiça e Paz (Lei 975, de 2005) foi impulsionada pelo governo de Álvaro Uribe Vélez e aprovada pelo Congresso colombiano como marco jurídico para regular o processo de desmobilização de paramilitares na Colômbia. Eventualmente podia ser utilizada no processo de desmobilização de grupos guerrilheiros, porém até agora as FARC não chegaram a um acordo para deixar as armas.

13 A Fundación Puntos de Encuentro (Fundação Pontos de Encontro) é uma entidade sem fins lucrativos criada por Juan Manuel Echavarría em maio de 2006. Seu objetivo é impulsionar, apoiar e gerar alianças para exibir projetos artísticos que preservem a memória histórica da guerra na Colômbia.

14 BLOCH. Ernest. O Princípio Esperança. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005. p.14.

15 Ibid p.13

16 O auge de La Violencia foi El Bogotazo, revolta urbana de grandes proporções que culminou com a ocupação do Palácio Presidencial e a destruição do Centro de Bogotá.

17 GONZÁLEZ, Miguel. Colombia: visiones y miradas. Cali: Feriva, 2010. p.161.

18 Ver Revista Caros Amigos, nº 177/2011, p. 40 a 45: O Estado avança mas não ganha a luta, Fania Rodriguez, enviada especial à Colômbia.

19 ROCA, José Ignacio. Transhistorias: mito y historia en la obra de José Alejandro Restrepo. Bogotá: Biblioteca Luis Angel Arango; Banco de la República, 2001.p.58.

20 Transcrição da conferência de Suely Rolnik no Encontro Internacional de Antropofagia. Sesc Pompéia, São Paulo, dezembro de 2005. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vil8cWpGsIc (Acesso em: 3 de abril de 2014.)

21 GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina, 1976. p.24.

22 LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998. p.172.

23 FREUD, S. La inquietante étrangeté, art. Cit, p.216, segundo Didi Huberman. In: O que vemos o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.

24 Na entrevista concedida em 03/04/2012 no ateliê em Bogotá, Colômbia, Juan Manuel narrou e mostrou a obra em cada detalhe: os elementos do quadro, os mortos, a cruz vermelha.

25 PAZ, Otavio. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p.187

26 O conceito de autopoieses foi utilizado em princípios da década de 1970 na biologia por dois biólogos chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela, e trazia uma visão que não pensava o ser vivo como uma máquina dada, mas como em constante processo de produção de si, em incessante engendramento de sua própria estrutura. Tal conceito foi logo utilizado por muitos campos de conhecimentos de humanas, e na filosofia teve muitas reverberações, como em Deleuze, Guattari, Foucault e outros.

27 Eduardo Berliner é um pintor carioca de 35 anos. Seu trabalho nasce de variados desenhos em cadernetas e fotografias do cotidiano, além de montagens com objetos que ele cria como referência para as pinturas.

28 Depoimento de Jhon Jairo Camacho, concedido em 03/04/2012 no ateliê do artista em Bogotá, Colômbia.

29 LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998. p.6-7.

30 Ibid. p.7

31 ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental. Editora Estação Liberdade, São Paulo, 1989. p.18

32 WALTER, Benjamin. Magia e técnica, arte e política: Obras escolhidas I. 10. ed. São Paulo: Brasiliense, 1996.

33 SARLO, Beatriz. Tempo passado, cultura de memória e guinada subjetiva, UFMG, 2007, p. 31.

34 BAKHTIN, M.M. Toward a Philosophy of the act. Austin: University of Texas Press, 1993. p.2

35 LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998, p.13.

36 FOUCAULT, Michel. Une esthétique de l’existence (entretien avec A. Fontana), Le monde, 15 – 16 juilet 1984, p.XI.

37 DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo. Editora 34, 1992, p.211.