Poster Especies Emergentes
Ala Plástica. Pôster Especies Emergentes (Espécies Emergentes), 1995

Espaços poéticos = linguagens éticas:
Diversas Práticas na América Latina

Jessica Gogan e Luiz Guilherme Vergara

Espaço poético – qualquer linguagem a serviço do ético.”

Lygia Pape1

Foi através deste “depoimento” da Lygia Pape para a obra EAT Me: a gula ou luxúria? que identificamos da artista a ideia de “teia” das derivas entre ética e estética em jogo nesta edição2. Porém, é na indagação ou indignação entre o “estético e o ético” que a ambivalência é assumida como conceito plástico que “recusa trabalhar com qualquer noção de hierarquia na arte”3. Ao falar do seu interesse pela “Forma”, Pape comenta: “Acho que a estética funda a ética. Cresci dentro dessa visão”.4 Ao mesmo tempo, é na sua trajetória e na cumplicidade com Hélio Oiticica que se desvia da arte dos museus e galerias e se lança pela cidade em “Delírios Ambulatórios”5. Daí declara sua vocação pela ambivalência da forma, pelo “outro lado. É ver pelas frestas e fazer descobertas.”6

O que se aproxima, se distingue e se expande desses delírios e exílios artísticos da Pape-Oiticica nos casos reunidos nesta edição? Quais são os desdobramentos contemporâneos dos movimentos nômades de deriva-delírios diurnos desta geração para descobrir outros “espaços imantados” por encontros sem hierarquias, heróis anônimos, parangolés e quebradas “fora do contexto chamado artístico”?7

Este é o ponto de inspiração e riscos que se cruzam nesta revista. Pode-se traçar uma teia de atrações ou antecipações éticas de lá para cá, como se expressam os engajamentos ambientais e biorregionais do coletivo Ala Plástica e suas metáforas de novas espécies emergentes. O que vale como impulso ético para Pape se atualiza nas palavras do Ala Plástica: “compreendem estratégias e ações comunicativas ligadas aos contextos sociais e que contrastam com a ideologia modernista da neutralidade da arte”.8

Pode-se dizer, invocando Milton Santos, que “o acontecer solidário”9 seria então o diferencial de uma ética da criação artística contemporânea que se desloca de uma centralidade criativa individual para as poéticas do encontro com os habitantes do outro lado das frestas, das realidades marginais na “obscuridade das coisas”.10

Reúnem-se nesta edição formas de estar juntos. Fred Coelho, no seu “think piece” provocador, aponta para o “como viver juntos” vivenciado por artistas e não artistas no Brasil e na América Latina como exercícios de linguagem, construção e habitar que têm no comum o ponto ético que funda o espaço poético. Com certeza, o que coube a esses textos são pequenas “frações do infinito” desses processos que atravessam diferentes territórios e práticas solidárias da arte, ativismo e pedagogia. Ressaltamos a seguir as ressonâncias conceituais desta edição como parte de uma conversa crítica inacabada e aberta para o transbordamento atual do estético a serviço do ético.

Habitar, Contato e Andarilhagem

Habitar exige uma abertura para o tempo e lugar.11 E para a vida que Clarice Lispector observa “como um estado de contato”.12 Esse contato significa mover-se para fora do ateliê, do museu ou da sala de aula, conhecer as pessoas onde elas vivem, rompendo hierarquias de conhecimento e formas de saber, desafiando as injustiças, e viver nas fronteiras e nas brechas do mundo.

Esse tipo de atitude é semelhante ao que Paulo Freire chamou de “andarilhagem” – uma espécie de andar por aí, como um habitar nômade com o outro e consigo mesmo, uma escuta ativa que envolve e responde a pessoas, contextos e situações.13 Pedagogia, para Freire, é movimento – uma peregrinação vivenciada constante. É também no mundo das ideias que desafiam pressupostos e escolas de pensamento, um ato político e deliberado de deslocamento e abertura para o tempo e o outro.

Como Felipe Moreno ressalta, esse movimento pode inventar uma nova forma “híbrida de arte e pedagogia”, tal qual acontece com René Francisco, que leva seus alunos a participar no “mundo real”, fora do ateliê e das salas de aula; ele radicaliza com “pragmáticas pedagógicas”, criando com seus alunos ações coletivas “ditadas pelas circunstâncias e demandas do outro”.14 Essa necessidade e solidariedade do encontro com o outro realiza a estética a serviço do ético. É nesse sentido que Roberta Condeixa nos oferece as microutopias realizadas por Juan Manuel Echavarría no seu laboratório terapêutico de resgates existenciais com os ex-guerrilheiros do narcotráfico na Colômbia.15

O que aproxima essas práticas artísticas em seus transbordamentos diferenciais é a condição de coabitar pela construção de territórios de afetos sem hierarquias. Carlos Vergara, na sua prática constante de se deslocar e viajar pelos cantos e mundos, realiza um gesto criativo único de reverência e (in)vocação pelas singularidades que habitam cada lugar reconhecendo a potência do artista como “um coadjuvante”.16

Para realizar esse estado de co-criação e de contato, é vital inaugurar um tempo e espaço sem hierarquias “centrífugas”17 , como as falas comoventes reunidas no manifesto dos “quebradeiros” – artistas, produtores, educadores da periferia do Rio de Janeiro e estudantes da Universidade das Quebradas – conclamam. Assim Angela Carneiro aponta para um fluxo vital de afeto que mobiliza e constrói a criação de uma cartografia vivenciada de encontros, derivas e travessias.18

Solidariedade e práticas descoloniais

Um olhar sobre a natureza é também parte do comprometimento com outras margens, com os povos indígenas, culturas e consciência ambiental. Guilherme Vaz propõe uma performance sonora com maracás na mata atlântica em Niterói percorrida por Charles Darwin, fundando uma simbologia cerimonial do acontecer solidário entre sons indígenas e ritos contemporâneos que se produz simultaneamente com a experiência.

Esse ato potente de silêncio verbal reverbera, assim como todos os projetos aqui apresentados, um pensamento emergente das práticas descoloniais que buscam desvincular o seu trabalho, tanto em conteúdo como formas de fazer, das macro-narrativas e pontos de referência tradicionais ocidentais, interagindo com o que o crítico Walter Mignolo nomina “desobediência epistêmica”19. Com a colaboração de 30 artistas e pesquisadores de diversas regiões do Brasil, Cristina Ribas nos oferece uma rede também de desobediência dessa epistêmica emergente – novos vocabulários transversais, rigorosos e profundamente enraizados, para navegar e reinventar nosso lugar no mundo, informados pelas possibilidades do local, da afetividade e da subjetividade.

Identifica-se então uma espécie de indissociabilidade entre linguagens e práticas, formas de pensar e de fazer, que não somente mudam o conteúdo da produção artística e do ativismo, como também os termos de seus diálogos.

Ainda revisitando Lygia Pape, indaga-se: não seria o ético o elo de vínculos solidários que funda a potência do outro lado da fresta para o estético?

“Espacio Poético”
Donde vivo:
– yo y
– los otros
– Todos
– Planeta Poluttio
– Mi tierra (…)20

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1 Lygia Pape. Depoimento. EAT Me: a gula ou a luxúria? 21 de abril de 1976. In. BORJAS-VILLEL, Manuel J. VELÁZQUEZ, Teresa (curadores). Lygia Pape: Espaço Imantado. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2012, p. 372

2 “O projeto “TEIA” propõe-se a ocupar áreas da cidade do Rio (zona sul) e principalmente na zona norte […] com um movimento coletivo onde a instalação estrutural se completa na participação do público.” Depoimento. Lygia Pape. Ttéis, Área abierta, 1979. Ibid pp. 369-370, p.369

3 Declarações de Lygia Pape. In. Marcio Doctors. “A arte de ver pelas frestas”. Ibid p. 374

4 Ibid p.373

5 Delirium Ambulatorium é um texto de Oiticica e uma performance com som de Rolling Stones realizada para o evento “Mitos Vadios” organizado por Ivald Granto, em São Paulo em 1978. In: Hélio Oiticica. Orgs. Guy Brett, Catherine David, Chris Dercon, Luciano Figueiredo, Lygia Pape. Rio de Janeiro: Projeto Hélio Oiticica, 1992, p.215; Lembrando o espírito de deriva de Guy Debord os delírios ambulatórios eram andanças de madrugada na cidade. Pape anota: “Hélio e eu saíamos muito para andar de madrugada pela cidade. Ele me dizia: vamos curtir. O delírio ambulatório era isso: você saía pela cidade toda, que não tinha perigo nenhuma, e ia descobrindo as coisas, vendo e vivendo.” In: Denise Mattar. Lygia Pape. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003, p.75

6 Op cit., BORJAS-VILLEL, p 373

7 Entre 1968 e 2011 Pape criou uma série de fotografias chamada Espaços imantados. “Espaços imantados” refere-se aos espaços públicos vivos que Pape descreve como “um espaço que eu identifico assim que o encontro. Eu chego lá e sinto toda aquela força, entende?” Op. cit Borjas-Villel, p. 285; Pape descreve seu interesse em trabalhar “fora do contexto do chamado artístico” Ibid., p.373

8 Ala Plástica. “Iniciativa Biorregional. A redefinição dos espaços de criação e ação”. In:
“Espaço poético = linguagens éticas: Diversas práticas na América Latina”. Revista MESA nº2, abril 2015 http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/2/iniciativa-biorregional-a-redefinicao-dos-espacos-de-criacao-e-acao/

9 SANTOS, Milton. “O Processo Espacial: O Acontecer Solidário.” A Natureza do Espaço. São Paulo: Edusp, 2002, p. 165

10 Lygia Pape. Op cit. BORJAS-VILLEL, p 373

11 Em seu ensaio “Construir, habitar, pensar”, Martin Heidegger sugere as origens simultâneas da poética e da ética quando observa que só quando formos capazes de habitar, poderemos construir. Martin Heidegger. Poetry, Language, Thought. “Building Dwelling Thinking.” (Em português, “Construir, Habitar, Pensar”). New York: Perennial Classics/Harper Collins, 2001 (publicado em 1971), pp.141 – 159, p, 158; Merleau-Ponty também enfatiza habitar quando ele critica: “a ciência manipula as coisas e renuncia a habitá-las”. In MERLEAU-PONTY, Maurice. O Olho e o Espírito. São Paulo: Cosac-Naify, 2004, p.13; e mais recentemente Irit Rogoff sublinha a importância de “habitar” e “proximidade” como uma maneira de reimaginar as práticas e formas críticas contemporâneas. ROGOFF, Irit. “Smuggling – an embodied criticality” http://transform.eipcp.net p.1

12 LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998, p.172

13 Danilo R. Streck, Telmo Adams, Cheron Zanini Moretti. “Pensamento pedagógico em nossa América: uma introdução.” In STRECK R. ed. Fontes da Pedagogia Latino-Americana: Uma antologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, pp. 19 – 35, p.28

14 Felipe Moreno. “René Francisco e as pragmáticas pedagógicas.” In Revista MESA op cit http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/2/rene-francisco-e-as-pragmaticas-pedagogicas/

15 Roberta Condeixa. “Juan Manuel Echavarría: Biografias de múltiplas vozes na guerra que não vimos.” Ibid http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/2/juan-manuel-echavarria/

16 Carlos Vergara. “Entrevista Carlos Vergara. Um artista viajante”. Ibid. http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/2/um-artista-viajante/

17 SANTOS op cit. (p.165). Santos argumenta, contrapondo com as hierarquias dos acontecimentos conduzidos por “ forças centrífugas”, a solidariedade das “forças centrípetas” não se dá por experiências impostas de fora para dentro, de cima para baixo, como projetos normativos ou assistencialistas em comunidades, lugar ou região.

18 Angela Carneiro. “Encontros e derivas: Cartografias afetivas da Universidade das Quebradas”. Revista MESA op cit. http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/2/encontros-e-derivas-cartografias-afetivas-da-universidade-das-quebradas/

19 Walter Mignolo. “Geopolitics of Sensing and Knowing: On (De) Coloniality, Border Thinking, and Epistemic Disobedience.” European Institute for Progressive Cultural Practices. Journal, September, 2011 http://eipcp.net/transversal/0112/mignolo/enNo

20 Lygia Pape. “Espaço Poético”. Poema escrito integralmente em castelhano. Op cit., B BORJAS-VILLEL, p. 188