Nº6 VIDAS ESCONDIDAS
Adesivo produzido para uma campanha de antimachista na escola.

Leituras e reflexões em voz alta: exercícios de uma cidadania plena das “vozes do sul”

Renata Targino

O ato de ouvir coletivamente uns aos outros afirma o valor e a unicidade de cada voz.

bell hooks1

[…] não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão.

Paulo Freire2

A escola pública, em tempos de normalidade, é um espaço de intenso convívio entre pessoas com múltiplas diferenças, algumas causam incômodos, geram atitudes discriminatórias e provocam conflitos que, espera-se, a própria escola irá enfrentar e resolver. Esse ambiente plural, composto por diferentes vozes – frequentemente ignoradas –, é também uma instituição que reproduz antigos pensamentos, hábitos e práticas que vêm mantendo firmes as estruturas de poder às quais todas e todos estamos sujeitos no modelo de sociedade em que vivemos.

A comunidade onde atuo como professora da educação básica fica na periferia da periferia, construída em uma área de São Gonçalo que corresponde às fazendas que pertenceram aos colonos de séculos atrás. Experimentando recentemente o crescimento desordenado e a violência urbana, essa região nos remete a um passado de desigualdade social ainda não superado. Embora a sociedade seja dinâmica e valores sejam modificados com celeridade em tempos de modernidade líquida – caracterizada pela velocidade das mudanças e desintegração social –, ainda é comum encontrarmos famílias que criam suas filhas para a submissão e seus filhos para a dominação.

  • Estudante explica a produção de um vídeo sobre desigualdade de gênero.

Esse perfil de educação patriarcal é revelado por estudantes em sala de aula a todo o momento, basta criar um ambiente propício à escuta atenta e respeitosa e permitir que eles/elas falem. Nas rodas de conversa e nas atividades de produção de textos, essas vozes surgem e se chocam com outras vindas de pessoas consideradas não-padrão, com quem dividem o mesmo espaço. Notamos, então, que a estrutura está posta, mas não é facilmente aceita por todas e todos. Romper com o tradicional, portanto, pode fazer questionar não só velhos estereótipos como também a própria família.

  • As percepções de um menino e uma menina sobre estereótipos de gênero (atividade de produção de texto do 9° ano do E.F.).

Para contextualizar a gravidade da questão de gênero, em 2016 ocorreu o estupro coletivo de uma mulher em um bar nas proximidades do nosso colégio – câmeras de segurança flagraram homens, portando fuzis, praticando o crime. O caso ganhou a atenção da imprensa e causou perplexidade e espanto. No entanto, entre os nossos, constatei um silêncio ensurdecedor. Incomodada, conversei com algumas turmas que, de forma generalizada, culparam a vítima pela violência sofrida, naturalizando a cultura do estupro.

As expectativas da sociedade a respeito do trabalho que as/os profissionais da educação desenvolvem são inúmeras, sendo comum ultrapassarem os limites das orientações curriculares. No entanto, essa desejada expertise docente nem sempre abarca a dinâmica das relações sociais em uma comunidade escolar. Talvez não seja do interesse de alguns setores que professoras e professores tratem de temas como o sexismo e a lgbtfobia, por exemplo. Mesmo assim, surpreendentemente, em inúmeras entrevistas que repercutem crimes de violência de gênero, ouvimos as vozes de populares e de autoridades reverberando: “a escola tem um papel fundamental na resolução do problema”.

Em meio a outros tipos de desigualdades, sob condições precárias de recursos e carência de formação, como a escola aprende/ensina empatia, solidariedade e respeito às diferenças? Qual é o papel das equipes pedagógicas, da gestão pública, das universidades? Se observarmos os dados que apontam para o aumento da violência de gênero no Brasil, podemos imaginar que as ações realizadas sejam tímidas e de efeitos inexpressivos no âmbito nacional.

É nesse cenário que o programa de mestrado profissional Profletras surge como possibilidade de mudança das perspectivas, pelo impacto que provoca, ao mesmo tempo, na escola e na universidade, fomentando pesquisas que descortinam a educação pública brasileira, valorizando o saber científico formal e informal de quem faz parte dela.

Ao me tornar uma professora-pesquisadora, passou a ser urgente investigar as relações de gênero e poder que se dão no ambiente escolar e, a partir daí, mobilizar as/os estudantes para se engajarem em um movimento político-pedagógico por mudanças estruturais, promovendo igualdade de gênero a partir do chão da escola. Assim como discursou Malala Yousafzai, na ONU, também creio que “um livro, uma caneta, uma criança e um professor podem mudar o mundo”. Trazer a voz da ativista paquistanesa reforçou nosso ideal de mudança por meio da ação-reflexão, pois mostrou à turma que vozes de estudantes podem ter muito poder.

A leitura das obras das autoras que são expoentes do feminismo interseccional3 foi inspiradora – em especial, as brasileiras Lélia Gonzalez, Djamila Ribeiro e Marcia Tiburi, e as estadunidenses Angela Davis e bell hooks. Ler e interpretar, em voz alta, trechos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Lei Maria da Penha e de outros dispositivos legais que dão suporte à promoção da igualdade de gênero e da justiça social reforçaram que as vozes de todas/todos e de cada uma/um têm o mesmo peso e importância.

  • Paródia do texto “Pelos direitos dos meninos”, de Silvia Amélia de Araújo.

É preciso demonstrar que a fala de estudantes está tão autorizada quanto a fala de docentes. Praticar uma pedagogia crítica é desenhar formas de comunicação não hierárquicas, mas dialógicas. A pedagogia crítica feminista – que construímos coletivamente em sala de aula – consiste na problematização das relações desiguais de acesso e poder que há entre meninas e meninos, homens e mulheres, tanto na nossa sociedade como na realidade criada nas obras de ficção que lemos, interpretamos e discutimos.5

Nas aulas de leitura e produção textual, em que a grande estrela é o próprio texto, sua leitura compartilhada cria momentos geradores de oportunidades. Ler em voz alta faz parte desse processo de se apropriar do que foi lido, das suas impressões mais particulares, do seu lugar de fala e de escuta das versões do outro, enfim, de si mesmo. Lendo e comentando sobre o que leram, as/os estudantes compõem os sentidos possíveis que emergem do texto.

Nessa proposta participativa, todas e todos têm direito à voz. Teoricamente, esse exercício de educação democrática e libertadora de múltiplas opressões, encharcado das reflexões de Paulo Freire e bell hooks, é poderoso e transformador, porém, para se chegar ao par conscientização-engajamento e provocar mudanças efetivas, é uma luta. Conforme as palavras da filósofa Marcia Tiburi: “Luta é a ação do desejo que nos politiza”.6 A palavra luta pressupõe uma espécie de diálogo, ou seja, comunica e marca posições. No nosso contexto de sala de aula, a palavra luta deixa explícito o teor político do ensino-aprendizagem.

Segundo bell hooks, a prática do diálogo é uma das formas pelas quais podemos “cruzar as fronteiras, as barreiras que podem ser ou não erguidas pela raça, pelo gênero, pela classe social”7 e outras diferenças. Somente um diálogo franco e democrático é capaz de transformar conflitos em aprendizado, para que alcancemos enfim um mundo mais equilibrado e justo para meninas e meninos, onde possam ser livres para serem quem são e possam contribuir com todas as suas potências para a construção de uma sociedade mais  empática, solidária e que respeite as diferenças.

  • A turma levou suas reflexões sobre desigualdades de gênero para outras salas e para o pátio da escola.

Conscientizar-se, empoderar-se, educar-se a si mesmo – com autonomia, mas jamais sozinho. A leitura e a reflexão somadas à ação, ao ir à luta, transformaram nosso modelo de ensino e a rotina de aprendizagem desse grupo, que passou a multiplicar o conhecimento adquirido com outros coletivos, demonstrando que nesse campo todas e todos podem ser ouvidos. E quem registra o som dessas vozes invisíveis? Quem assina a formulação desses currículos escondidos em práticas singulares, profundamente engajadas no exercício de uma cidadania plena das “vozes do sul”9? A professora e o professor formados para a justiça social em diálogo com seus estudantes.9

Comemoração pelo recebimento do Prêmio Paulo Freire com a turma, no auditório da escola.

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Renata Targino
Professora de Língua Portuguesa e Produção Textual da rede estadual do Rio de Janeiro. Mestre em Letras pela Faculdade de Formação de Professores (FFP/UERJ). Membra do grupo de pesquisa “Formação de professores, Linguagens e Justiça social” (PROFJUS). Em 2019 recebeu o Prêmio Paulo Freire de iniciativas inovadoras na categoria “Experiência Pedagógica no Ensino Fundamental”, oferecido pela Comissão de Educação da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ).


1 HOOKS, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2018.

2 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

3 Feminismo interseccional: emerso dos escritos de Kimberlé Williams Crenshaw, professora de direito, especialista nas questões de raça e gênero consideradas de forma interrelacional.

4 Disponível em: https://jornalggn.com.br/direitos/pelo-direito-dos-meninos-de-silvia-amelia-de-araujo/.  Acesso em: 7 out. 2019.

5 Dentre as quais “Procurando firme”, livro infanto-juvenil de Ruth Rocha, publicado pela primeira vez em1984 (ed. Nova Fronteira) e “A moça tecelã”, conto de Marina Colasanti.

6 TIBURI, Marcia. Feminismo em comum. 7. ed. Rosa dos tempos: Rio de Janeiro, 2018.

7 HOOKS, op. cit. p. 1.

8 Referência ao “sulear” em Paulo Freire (no lugar de “nortear”), à “perspectiva do Sul global” de Raewin Connell e às “epistemologias do sul” de Boaventura de Sousa Santos. 

9 A questão da igualdade de gênero é uma questão de justiça social (importante categoria para o teórico Paulo Freire, que envolve também as questões raciais, de classe, de segurança alimentar etc.). Professoras e professores conscientes do seu contexto social, que visam à sua transformação, estão comprometidas/os com esse tema. Ver mais em: ZEICHNER, Kenneth M. Justiça Social: desafio para a formação de professores. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.