Nº6 VIDAS ESCONDIDAS
Cruzes de madeira em sepulturas sem lápide, Igreja de St. Thomas, Dugort, Ilha Achill, 2017. Foto: Jessica Gogan.

À margem: arte, comunidade e cura na Ilha Achill, Irlanda

Diálogo com Doutsje Nauta, Willem Van Goor e Reverendo Val Rogers

No entanto, quando chego ao outro extremo da ilha
E olho para o porto nas rochas abaixo,
O Oceano Atlântico criando nós brancos e brutos,
Embora eu esteja globalmente triste, estou localmente feliz
Por estar prestes a dirigir por aquela estrada sinuosa.

Paul Durcan, “The Far Side of the Island”1

O artista holandês Willem van Goor e sua esposa Doutsje Nauta emigraram da Holanda com sua filha para a Ilha Achill em 1997 e compraram a chácara Bleanáskill, com uma casa de um só andar e três hectares de jardins, localizada na magnificamente bela Atlantic Drive.  Remota e isolada, na costa oeste da Irlanda, a paisagem acidentada e árida de Achill é suscetível aos ventos e ao ar salgado dos limites vastos do Oceano Atlântico. Contudo, seu cenário dramático, luz selvagem e céus espetaculares atraíram muitos artistas e escritores para suas costas, incluindo o pintor americano Robert Henri (1865-1929), o escritor Graham Green (1904-1991), o escritor alemão Heinrich Böl (1917-1985), a pintora Camille Souter (1929-) e, mais recentemente, o poeta irlandês Paul Durcan.2 Apesar dos enormes desafios frente às condições climáticas adversas da ilha, vários proprietários da chácara Bleanáskill, ao longo de sua história centenária, em especial o artista/escritor Alexander Williams na virada do século XX, desafiaram a natureza e se empenharam em criar um jardim e um bosque protegidos. Van Goor e Nauta fizeram mais do que perpetuar essa tradição e transformaram os acres da chácara no Jardim Secreto de Achill, integrando restaurativamente esculturas, diversas espécies de plantas e jardins de ervas e vegetais com árvores e arbustos sobreviventes, em paralelo a várias iniciativas terapêuticas (curas)  comunitárias.

Uma iniciativa em particular, criada em colaboração com o Reverendo Val Rogers, promoveu uma cerimônia religiosa de reconciliação interdenominacional na Igreja de St. Thomas, em Dugort, no extremo norte da ilha. Tendo surgido da preocupação da Missão Protestante de Achill com o atraso e a pobreza na ilha na década de 1830, a Igreja de St. Thomas, finalmente concluída em 1855, fazia parte de um assentamento que incluía uma clínica médica, orfanato, escolas, habitação e várias igrejas. Presidida pela figura combativa do Reverendo Edward Nangle de 1833 a 1851 e abrangendo os anos da Grande Fome, o zelo evangélico das missões era um contraponto, não sem ironia, ao próprio “empobrecimento devido em grande parte às políticas coloniais de ascendência protestante.”3 O fervor da missão também enfrentou a oposição intransigente da Igreja Católica, cujo arcebispo John McHale condenou a missão com a frase amaldiçoadora: “Não há lugar fora do Inferno que enfureça mais o Todo-Poderoso do que a colônia protestante.”4 Contar a história da missão significa revisitar a história do conflito entre protestantes e católicos na Irlanda, que é longo e doloroso, enraizado na política colonial, pobreza, lutas contra o domínio britânico e guerra civil. Realizada em 24 de setembro de 2011, a cerimônia contou com leituras inter-religiosas, músicas tocadas por Van Goor no órgão da Igreja de St. Thomas e uma homenagem aos túmulos sem lápide de católicos e protestantes enterrados no terreno da igreja.

O diálogo a seguir foi extraído de conversas tidas na chácara Bleanáskill em julho de 2017, atualizado para esta publicação e intercalado com imagens da Ilha Achill, da cerimônia inter-religiosa, ensaios visuais das obras de arte de Van Goor e do Jardim Secreto do casal.

EditoresJessica Gogan e Luiz Guilherme Vergara

Ilha Achill, vista da chácara Bleanáskill, depois de uma pancada de chuva em abril, data e fotógrafo desconhecidos.

Cerimônia de Reconciliação

Willem Van Goor – A história da Igreja de St. Thomas começa antes de Nangle. Por que ele veio para a Ilha Achill? Teve um motivo. Ele conseguiu milhões na época nos Estados Unidos e na Inglaterra, todos investidos nesse assentamento em Dugort, na região norte da ilha. No início de 1800, entre o clero protestante na Grã-Bretanha, havia uma onda de interesse e uma nova consciência voltada para o trabalho missionário dentro de seus próprios mundos. Em vez da África e de outros países longínquos, eles foram em busca de pequenos cantos escondidos em seu próprio país, e havia muitos deles. Sob o domínio britânico na época, a Irlanda era uma delas, especialmente no oeste, e Nangle fazia parte desse movimento. Filho de uma pequena aristocracia cuja geração anterior era católica romana, ele era um protestante evangélico fanático. Visitou a ilha e se apaixonou por duas coisas – a paisagem, que achou deslumbrante, e a causa social. Havia de 8 a 9 mil pessoas vivendo aqui em uma pobreza terrível e em circunstâncias horríveis, sem escolas, sem igrejas e sem hospitais. Uma série de pequenas fomes já haviam devastado a ilha antes mesmo do que seria a grande fome em 1848. Não havia nada aqui. Apenas pedras, pântanos, algas marinhas… As pessoas aqui tiveram que batalhar para ganhar a vida. Esses instintos de sobrevivência são fundamentais para o DNA dessa população…

Retrato Willem Van Goor, 2017. Foto: Jessica Gogan.

Doutsje Nauta – Isso ainda está presente, você ainda consegue sentir; uma espécie de anarquismo que as pessoas realmente carregam dentro de si. Aqui as pessoas aprenderam a fazer as coisas à sua maneira; está arraigado. Por muito tempo elas não receberam cuidado. Não havia razão para confiar em nenhuma autoridade, fosse da igreja ou do governo. Só se pode contar uns com os outros, com a sua família. Nada mais irlandês do que saber quem é seu primo de sétimo grau…

Retrato Doutsje Nauta, 2017. Foto: Jessica Gogan.

Willem – Você tem que saber quem são seus parentes porque eles são sua família e é com eles que você pode contar. Falei com uma senhora que me disse que em certo cemitério da ilha existem 36 lápides de 36 famílias diferentes, todas aparentadas dela. Então, quando você conta todos os filhos juntos, dá uma verdadeira cidade pequena, e você estava seguro dentro dessa estrutura.

Doutsje – Isso não significa um isolamento. Por exemplo, é muito interessante notar algo que li recentemente: 95% das crianças que vão à escola aqui acabam indo para a universidade ou faculdade. 95%! É incrível.

Willem – O fotógrafo holandês Con Mönnich veio aqui em 1974 e tirou cerca de 150 fotografias da Ilha Achill. Quase 40 anos depois, ao vasculhar suas coisas, ele encontrou todos aqueles negativos, e então decidiu voltar aqui e ver se alguém estava interessado neles. As fotos foram apresentadas em várias exposições e logo estarão expostas no National Museum of Country Life, em Castlebar. Nas fotos você vê uma Achill que não mudou e outra que mudou drasticamente. Curiosamente, há uma fotografia, tirada na estrada em frente ao nosso jardim, que retrata 7 meninos. Segundo um vizinho, cinco deles são hoje multimilionários que vivem na Inglaterra, nos EUA e em Dublin, todos desse pequeno grupo.

Ilha Achill, 1974. Foto: Con Mönnich.

Muitas das casas grandes construídas aqui nos últimos anos pertencem a pessoas como eles. Essa é apenas uma história que mostra o potencial enorme dos cérebros e do espírito empreendedor na ilha e, claro, força de vontade. Não sei se isso é específico de Achill, mas acho que em todos esses lugares periféricos há esse espírito – pessoas que tiveram que fugir da opressão e sobreviver.

Doutsje – Sobrevivência e espiritualidade – como quer que sejam entendidas nas diferentes épocas – estão profundamente entrelaçadas. Eu ouvi muitas histórias em nossas pequenas reuniões em torno de uma mesa. Por exemplo, minha amiga Maebh O’Herlihy, ex-católica romana, que agora está estudando para a ordenação [anglicana] da Igreja da Irlanda e que tem grande simpatia por todas as espiritualidades e buscas genuínas, conta histórias da família ter escondido a estátua da Santa Gobnait dos séculos V ou VI na época da invasão brutal da Irlanda no século XVI por Oliver Cromwell. Com o nome de uma das deusas celtas, Gobnait estava ligada a muitos comerciantes e artesãos que pediam sua proteção, bem como pescadores, mineiros, apicultores e fazendeiros. Recentemente, a pequena paróquia da Igreja de St. Thomas comprou a antiga escola de Nangle em Dugort, voltada para a espiritualidade inter-religiosa de todos os tipos, que estará sob responsabilidade de Maebh, com fortes ligações com a espiritualidade celta. Essas histórias vieram à tona por meio do trabalho ecumênico na ilha liderado especialmente pelos residentes (atuais e antigos) que buscam se reconectar às histórias celtas da terra e da espiritualidade, como Maebh e, anteriormente, Anne Tyrrell (que se mudou para Midlands anos atrás).

Willem – Há muita história aqui e muitas histórias para contar. Retornando a Nangle e à Missão de Achill, eles compraram um terreno em Dugort e deram início ao que foi chamado de Colônia. Incluiu a primeira escola no oeste da Irlanda para pessoas comuns, um moinho, uma prensa móvel (The Achill Herald e Missionary Times), correio, guarda costeira, padaria, orfanato para meninas e meninos, clínica e escola agrícola. A maioria dos edifícios ainda existe. Parece uma espécie de pequena aldeia inglesa. Existe até um relógio da aldeia. Foi extraordinário. A Missão adquiriu grandes propriedades de terra e empregou quem estava passando fome. Construíram estradas por toda a ilha e também os edifícios da própria Colônia. Uma paisagem desolada, escura e vazia foi totalmente transformada. Diante da fome, muitos se tornaram protestantes porque ali conseguiam sustento. O reverendo protestante Nangle estava presente e sustentando a comunidade, enquanto o padre católico morava em Newport, a dois dias de distância a cavalo.

Então, o arcebispo católico regente, John McHale de Tuam, ficou muito zangado ao ver parte da sua congregação se tornar protestante, e um debate teológico agressivo e um ataque verbal violento se seguiram entre Nangle e ele.

Há uma frase reveladora da época da fome que reflete esse conflito católico-protestante. Foi dito das pessoas que recorreram aos missionários protestantes em busca de comida e ajuda que elas “tomaram a sopa”.5 Você iria para o inferno se tomasse a sopa, de acordo com o bispo. Embora outros digam que as pessoas eram bem-vindas para chegar e tomar a sopa. No entanto, termos como “sopeiro”6 – aquele que dava comida aos famintos em troca da adesão à igreja [ou supostamente o fazia] – e “saltador”7 – aquele que mudou de denominação como algum tipo de traidor ou aceitou ajuda ou emprego da Missão – foram usados e ainda são, em alguns casos, para descrever as pessoas de uma maneira pejorativa.

Embora as coisas certamente tenham mudado, mesmo quando chegamos aqui e fizemos uma festa para o meu aniversário, as pessoas me disseram: “Willem, você não pode colocar todas essas pessoas na mesma sala”. Isso foi em 1999. Só mesmo com a nossa inocência! Estavam sugerindo que elas não se davam bem. Ainda assim, cantaram e bateram palmas! Como um amigo americano que criou em Belfast o programa Refeições pela Paz que reuniu jovens protestantes e católicos, é possível aproximar as pessoas – música e comida são boas maneiras de fazer isso.

Eu conheci a Igreja de St. Thomas pela primeira vez através da visita de um parente que é estudioso da literatura e liturgia cristã primitiva. Pouco depois de nos mudarmos para cá, ele veio nos visitar, e percorremos a ilha visitando igrejas. Eu me lembro de ele dizer: “Qual é aquela ali? Vamos dar uma olhada”. Estava aberta, e nós entramos.

Vistas externas/internas da Igreja de St. Thomas, 2017. Fotos: Jessica Gogan.

Havia uma harmônica lá, eu abri e comecei a tocar. Tinha sido construída em Rotterdam há mais de um século. Estava com caruncho por toda parte, mas surpreedentemente ainda estava afinada. Aí eu ofereci meus serviços dizendo que poderia tocar a harmônica em vez de ouvirem uma gravação. Eles ficaram muito entusiasmados e, daquele dia em diante, eu toquei todos os domingos. Lembro que meu tio e meu avô tocaram órgão todos os dias por 70 anos na mesma igreja na Holanda. De repente, percebi que eu era organista e estava mantendo a tradição. Tendo vindo da Holanda, eu não tinha me envolvido com a Igreja da Irlanda até aquele momento. Mas quando você vai a uma igreja e continua indo, eles consideram que você faz parte dela. Você é visto como um membro.

Além da harmônica, também conseguimos adquirir um órgão de tubos, que tinha sido construído originalmente para uma igreja em Newport e depois foi lindamente restaurado por um antigo bispo. Quando ele teve que se mudar para a Inglaterra, ele enviou um e-mail para a rede diocesana perguntando: “Alguém está interessado no meu órgão de tubos?”

Eu respondi imediatamente: “Você chegou a pensar em Achill?” Assim, conseguimos o órgão de tubos de graça, contanto que assumíssemos os custos de retirá-lo de onde ele estava em Crossmolina. A única coisa que tínhamos que fazer era encontrar um construtor de órgãos que pudesse desmontá-lo e reinstalá-lo. Só existem atualmente 7 construtores de órgãos no país. O custo foi de 2.800 euros. Fizemos uma arrecadação de fundos. Tanto católicos como protestantes contribuíram. Essa igreja faz parte do patrimônio da ilha para os católicos também. As pessoas disseram: “O que você precisar, seja um teto ou um órgão, nós vamos ajudar”. Autenticidade, qualidade e arte, o investimento foi palpável, entendendo a arte com um sentido fundamental de dom. A música cria e estimula um objetivo comum e aproxima as pessoas.

Willem Van Goor tocando o harmônio e o órgão de tubos, Igreja de St. Thomas, 2017. Fotos: Jessica Gogan.
Willem Van Goor tocando o harmônio e o órgão de tubos, Igreja de St. Thomas, 2017. Fotos: Jessica Gogan.

Essa possibilidade foi o que inspirou a cerimônia de reconciliação. Depois de Nangle, houve três igrejas protestantes na ilha – Inisbiggle, Achill Sound e Dugort – essa última a única ainda em atividade. Isso significa que, embora as antigas igrejas possam não estar sendo usadas para celebrações religiosas, seus cemitérios ainda precisam de cuidados. Portanto, a congregação de St. Thomas compartilha a responsabilidade de mantê-los. Uma vez, eu estava visitando o cemitério de Achill Sound coberto de vegetação com Tim [Stevenson], nosso guardião da igreja, e eu me lembro de ele dizer: 

Está vendo todos aqueles pequenos outeiros? Todos eles são túmulos. Existem centenas deles, sem nenhum registro. Datam da época da fome. Dadas as circunstâncias, ninguém sabe se eles se consideravam protestantes ou não, e como os católicos romanos só podem ser enterrados em um cemitério católico sagradamente ordenado, é bem possível que muitos deles estejam enterrados no lugar errado.

Falamos sobre o mal-estar relacionado a isso e sobre a história de Nangle na ilha e pensamos que seria uma boa ideia oferecer aos enterrados uma cerimônia de oração dirigida por um padre católico e um pastor protestante. Entramos em contato com nosso pastor, o Reverendo Val Rogers, que reconheceu que seria um evento muito grandioso para ele sozinho e seria uma oportunidade de criar um evento ainda maior e, então, ele sugeriu que falássemos com o nosso bispo, que por sua vez incluiu os bispos católicos romanos. No dia, havia 250 pessoas na igreja com 30 padres no altar, pessoas da ilha e vários representantes oficiais, incluindo do gabinete da Presidência da Irlanda e forças policiais. Ambos os bispos se dirigiram à congregação e, depois disso, colocamos 1000 cruzes de madeira sobre os túmulos. Naquele momento, senti que aquela pequena congregação havia aterrizado na comunidade depois de tantos anos.

  • Cerimônia de Reconciliação, 2011. Fotos: Willem Van Goor.

Doutsje – A Igreja de St. Thomas parece conseguir facilitar essas conexões. No entanto, em sua posição voltada para a natureza, à margem da ilha e da comunidade em geral, também está sempre à beira de desaparecer, por isso talvez o que intriga seja também essa luta, uma autenticidade que cativa e torna as coisas possível.

Willem – Onde mais você poderia encontrar uma igreja que, quando está tocando órgão, você consegue ver as ondas. A igreja me deu uma espécie de sustentação, que permite a adaptação, mas também dá a estrutura. Por meio dela, fui trazido de volta às minhas crenças. Igreja, religião, música fizeram parte da minha infância. Isso não aconteceu por causa das palavras de um pregador, mas porque eu estava tocando órgão lá. A Igreja de St. Thomas se tornou muito importante para mim na minha vida espiritual pessoal, por causa da igreja em si, não de qualquer ensinamento específico.

Cruzes, cemitério da Igreja de St. Thomas, Dugort, Ilha Achill, 2017. Foto: Jessica Gogan.

Reverendo Val Rogers – É muito interessante ouvir Willem contar a história. Eu adoraria reivindicar algum crédito pela cerimônia inter-religiosa, mas não posso, o instinto já era positivo e forte nessa pequena congregação de colocar cruzes em túmulos sem lápide no cemitério da igreja. Eles tinham a certeza de que em uma época menos beligerante do que meados do século XIX essas pessoas teriam sido enterradas em cemitérios católicos se os tempos não fossem tão violentos.

Willem mencionou anteriormente que a relação entre o arcebispo católico de Tuam, John McHale, e Nangle, estava profundamente polarizada na época. Como Nangle, McHale era um homem de opiniões fortes, expressadas com franqueza. Ele se opôs à criação de escolas primárias na sua diocese e província por muitos anos. A educação – pensava ele – só daria noções às pessoas. Mas Nangle queria escolas para que as pessoas pudessem ler as escrituras – não aquelas escondidas ou corrompidas pelo clero – e foram feitos todos os esforços para alfabetizar as pessoas. Para conter a influência protestante de Nangle, McHale finalmente enviou um padre católico para a ilha e criou uma escola primária católica lá.

Aqueles que iam para a igreja de Nangle, fosse por convicção ou porque seus filhos estavam com fome, ou que aceitavam um emprego dele, todos pareciam ser englobados como pessoas a serem evitadas pelo clero católico. Portanto, com certeza havia pessoas enterradas no cemitério da nossa igreja que deveriam ter tido um enterro católico. Tínhamos uma lista com o nome de todas as pessoas que provavelmente haviam sido enterradas lá, mas nenhuma noção exata de quem estava em qual túmulo. E Willem, Doutsje, Tim e Dorrie [Darlington – Secretária da Igreja] tiveram a ideia de uma celebração que demonstrasse amor e respeito e fosse um símbolo de oração e reconhecimento das vidas daqueles túmulos sem lápide em sua existência passada e presente. Não fazia muito tempo que eu tinha chegado para presidir as paróquias da região na época, eu pensei sobre aquilo um pouco mais e disse, olha, temos que dar uma ênfase maior a isso.

Reverendo Val Rogers, 2017. Foto: Jessica Gogan.

Em Achill, você mergulha na história de cabeça e entra em um pântano a qualquer instante. Já era hora de reunir nossos bispos católicos e anglicanos/protestantes com todas as pessoas da ilha e não discriminar na expressão de amor e de arrependimento pela beligerância passada. Então, reunimos uma multidão razoável, conversamos e oramos dentro do prédio da igreja e no cemitério entre os restos mortais. Houve abraços e apertos de mão inconsequentes, generosos e curativos entre amigos e inimigos.

Em cerimônias louváveis, em todos os rituais úteis, acontecem coisas na psique e no espírito que causam mudanças e, se Deus quiser, encorajam e curam. É um dos principais propósitos da vida na igreja. Do ponto de vista do líder, o mais simples gesto ou palavra de amor, formal ou informal, facilita a magia, o desenvolvimento agraciado das pessoas. Não é apenas a toga ou a estola, mas a maneira como você veste seu coração e seu corpo, e o que eles dizem e fazem. Convida as pessoas a darem um passo à frente a partir de dentro ou da sua realidade presente para, se Deus quiser, uma realidade mais rica que as permita serem amadas, amar umas às outras e baixar a guarda, tornando-se assim mais inteiras. Acho que é exatamente disso que tratam todos os rituais da Igreja. Todos os ornamentos da Igreja deveriam se referir à mesma coisa – as obras de arte físicas, a configuração do edifício, as vestes ou o que quer que a pessoa lá na frente use. Tudo deveria operar para esse fim, para ajudar as pessoas a se tornarem mais reais, maduras, compassivas e afetuosas consigo mesmas e umas com as outras. Para mim, dava para ver e sentir a cura acontecendo naquele dia em especial. Fiquei grato pelo comparecimento e por ter funcionado tão bem.

Confiança, coragem, humildade e autoconhecimento são necessários quando fazemos essas coisas. Longe de ter todas as respostas, estou vivendo as perguntas eu mesmo. Quem estava lá naquele dia veio de muitas perspectivas diferentes. Frequentemente forçados pela pobreza a se tornarem migrantes, os ilhéus de Achill, no entanto, mantinham o amor pelo lar. Há uma história de um povo que abraça a experiência mundana, de mente aberta, mas também, que tem os pés no chão. Como a dona de casa honesta de Robert Grave, eles têm “um nariz para peixe e um olho para maçãs”.8 Mundanos, mas também bastante práticos e realistas, fizeram o melhor de si mesmos, muito além de qualquer dos velhos preconceitos. A educação foi e continua a ser valorizada como a chave para ganhar a vida, mas também vital para o seu ser, e há uma grande paixão pelas humanidades, música e arte. Eu não esperaria que qualquer pessoa em Achill se tornasse uma engrenagem em uma máquina tecnológica. Portanto, quando oramos, oramos em união com a fé, a esperança, o amor e o anseio de todos os homens. É crucial que isso se dirija a uma comunidade cristã no sentido amplo, nem sempre com uma fé alegre, explícita ou nítida, mas também em profunda necessidade ou inconsciente. Esse espaço para cada um nos leva a um terreno comum na fé, na confiança e no amor.

Eu estava absorto nessas questões enquanto me preparava para a cerimônia. Peguei emprestado e adaptei descaradamente livros da Igreja da Irlanda e da Igreja Católica Irlandesa, bem como de outras fontes. Compus várias das orações do discurso formal. Elas tinham que estar perfeitas; eu as refinei várias vezes. Tinham que se aventurar no que talvez fosse um terreno doloroso para alguns dos descendentes presentes e tinham que ter um contorno um tanto conservador porque há um grande respeito pelos melhores aspectos da ordem estabelecida aqui, assim como há um grande desrespeito pela ordem estabelecida que é opressiva ou moribunda. Foi um processo de descoberta.

Adoro algumas frases, uma de Picasso, ao menos acho que é dele, “Se você sabe exatamente o que vai fazer, de que adianta fazer”, e a outra de Dorothy Parker, “Como posso saber o que eu penso até ouvir o que digo”. Às vezes as coisas acontecem no momento, a palavra certa surge no momento, o esclarecimento de questões e processos e a capacidade de articulá-los podem acontecer no momento. Também aprecio profundamente a estrutura geral dos rituais estabelecidos e não teria energia emocional para fazer coisas novas o tempo todo. Sou padre há 45 anos e não sei quantas eucaristias já celebrei. Embora você espere que seja nova a cada vez, você não muda uma palavra. Então, a eucaristia me conduz tanto quanto eu conduzo a eucaristia, e o mesmo acontece na oração da manhã e da noite. É um evento novo a cada vez. Agora, se eu ainda fosse um padre católico romano, talvez não pudesse dizer isso a você; ordenado há 45 anos, eu poderia ter perdido o fôlego. Mas tenho sorte de ter apenas de duas a três eucaristias por semana em comparação com um padre católico neste país, que pode ter que rezar uma missa por dia mais duas ou três vezes no fim de semana. Talvez minha psique tenha espaço e tempo para chegar renovada à eucaristia, de forma que ainda continua surpreendente para mim. Sou nutrido e espero nutrir meus irmãos e irmãs. Toda vez é um evento vibrante, emocional e psiquicamente.  Uma alegria especial para nós, nesta congregação inacreditavelmente pequena de Dugort, é que temos Willem, um músico fabuloso de quem a glória jorra. Ele certamente canaliza seus ancestrais.

Estar à margem: ponte, barcaças, hospitalidade e jardins

Willem – “Estar à margem” é uma expressão que uso para descrever os meus interesses e o que me move – literal e metaforicamente. Existe escapismo, sim, eu queria ficar longe da cidade grande, do continente. Antes de morar aqui, fazíamos parte de uma comunidade de mais de 400 famílias que viviam em barcaças e casas flutuantes na Holanda. Doutsje amava a vida na cidade; eu, não muito. Sou mais da natureza. Mas adoro estar com outras pessoas. Como tínhamos um bom conhecimento das leis, pediram que nos tornássemos representantes da “comunidade flutuante” no trato com o governo.

“Parcival”, a barcaça que era a casa de Willem Van Goor e Doutsje Nauta na Holanda.

Doutsje – Consegui aconselhá-los a respeito de estratégias. Minha profissão era organizar comunidades para trabalharem por mudanças que melhorassem suas vidas. Coordenei e desenvolvi iniciativas de trabalho social, incluindo trabalho com organizações religiosas, administração de centros comunitários e desenvolvimento e implementação de treinamento de sensibilização da força policial. Eu também tinha organizado conferências locais e nacionais e conhecia pessoas (hoje chamadas de influenciadores) do governo local.  Mas na época eu tinha um trabalho de tempo integral, então o Willem estava mais envolvido, eu só conseguia apoiar/facilitar quando necessário.

Willem – Junto com algumas outras pessoas, assumimos a responsabilidade de representar as vozes e opiniões do grupo perante as autoridades e apontar irregularidades e inconstitucionalidades. Saía em todos os jornais. Antes disso, quem vivia em barcaças e casas flutuantes era visto como atrasado, ilícito e intocável, à margem, no sentido mais negativo. Tentamos mudar isso, e muito rapidamente a opinião pública estava conosco.

Eu vivia assim, à margem, desde que saí de casa e fui para a faculdade de arte, em uma pequena casa-barco com 10 metros de comprimento e 3,5 metros de largura, uma casa flutuando no porto com muitos outros navios. As pessoas desprezavam quem morava lá. Eu tinha vindo de uma família muito privilegiada. Lembro que meu pai foi me visitar e me contou que, quando ele pediu para o taxista levá-lo ao porto, ele disse: “Tem certeza de que quer ir para lá?” Ele não queria levá-lo lá. Meu pai era um homem muito alto e elegante, usava terno, gravata e chapéu, e no dia em que chegou era dia de limpeza do dique. Lembro como se fosse hoje! Havia cobertores, lençóis, por todo lado! [Rindo]

Mas morar ali trouxe proximidade e um senso de experiência compartilhada, e você realmente conhecia seus vizinhos. Todos os tipos de pessoas, de todas as origens; pessoas maravilhosas à margem, então eu amo a margem, ainda amo. Você pode aproveitar o que há de melhor nos dois lados de uma fronteira e construir uma ponte entre os mundos.

William Van Goor e Doutsje Nauta. Fotos: Jessica Gogan.

Doutsje – Fazer a ponte nunca foi um objetivo, mas olhando para nossas vidas, fizemos muito isso, conectamos diferentes classes, diferentes religiões, diferentes partidos políticos, simplesmente acontece, é uma espécie de fio das nossas vidas…

Isso também serve de base para o nosso trabalho com os “Wwooferes”, principalmente jovens que vêm morar e trabalhar como voluntários conosco no verão como parte da rede World Wide Opportunities Organic Farming (Wwoof).9 Eles vêm de longe em busca de um significado, uma experiência mais ampla, quem sabe uma aventura. Com frequência, as pessoas que nos procuram estão em um momento decisivo na vida. Também parecem estar à beira de alguma coisa. Nós respondemos a isso com o máximo de conhecimento que temos.

Viver, trabalhar e conversar com esses jovens enriquece muito as nossas vidas. Fazemos isso principalmente durante as refeições, em torno da mesa. A mesa é um símbolo de união.

Willem – A mesa é a coisa mais importante, é onde a gente se encontra e come, às vezes é extremamente cansativo e eu gostaria de estar debaixo da mesa!

Doutsje – Aqui em Achill estamos sempre nos conectando – todos, desde os Wwoofers, visitantes do jardim, aqueles que ficam na pousada que administramos em casa, a comunidade…

Willem – Quando viemos morar aqui, eu queria ter um jardim. Mas não tínhamos dinheiro para mantê-lo, então abrimos o jardim para visitação. Foi o mesmo com a nossa pousada. Não foi ideia minha. Eu não queria, mas comecei a ver o prazer em dar às pessoas a oportunidade de vivenciar a casa e o jardim. A hospitalidade passou a se tratar de coisas simples, lavar a louça, limpar o chão, fazer a cama…

  • Chácara Bleanáskill e hospitalidade. Fotos: Jessica Gogan.

A paisagem aqui é muito agreste, mas quando você se confronta com a sua beleza, abre possibilidades que você nunca sonhou serem possíveis ou até mesmo agradáveis. Então, vejo que dá para superar e até mesmo valorizar esses desafios. Quando você vai à margem, descobre que há muitas outras pessoas vivendo à margem e que existem muitas  possibilidades nas quais você nunca tinha pensado. Muitas pessoas aqui escaparam de algum lugar…

Pôr do sol em Derreen, Ilha Achill, data e fotógrafo desconhecidos.

Guilherme Vergara – A metáfora de ir à margem se refere a encontrar o outro…

Doutsje – Sim, mas viver à margem também exige um tipo diferente de sobrevivência. Não é fácil. Entre outras coisas, tentamos administrar um viveiro de plantas e arbustos. Já fiz produtos alimentares caseiros para vender em um mercado local. Nada dava dinheiro suficiente. Willem disse que não queria todos esses estranhos na casa. Mas chegamos ao ponto em que administrar uma pousada era a única possibilidade que restava, então eu disse, bem, ou vendemos ou abrimos uma pousada.

Jessica Gogan – Essa questão de sobrevivência e de como permanecer fiel ao espírito das margens é fundamental. Há uma passagem oportuna no livro clássico Walden, do naturalista e filósofo americano Henry David Thoreau, baseado em sua experiência de viver isolado em uma cabana na natureza por vários anos no século XIX, em que ele fala sobre como os meios de sobrevivência, por exemplo, fazer cestas de ervas daninhas, são transformados com frequência em propostas supostamente lucrativas. Para ele, o desafio era não vender as cestas.10

Doutsje – Acho que a palavra-chave é amor. Estar à margem é fazer cestas, principalmente encontrar o outro, “fazer uma ponte” e se conectar. A única maneira de fazer isso é pelo amor. Como podemos entrar mais em contato com nossa humanidade, seja por meio de tarefas simples de hospitalidade ou trabalho comunitário? Estar aberto é fundamental, bem como não ter preconceitos. Por exemplo, nossa filha é gay, ela frequentava a escola em Castlebar quando ela se assumiu, o que foi muito revolucionário na época. Participei de uma conferência organizada pela igreja e havia pequenos grupos de pessoas falando sobre o assunto. Em um grupo, ouvi uma mãe que era contra a homossexualidade muitíssimo preocupada e arrasada por ter um filho gay. Você não pode dizer: “ah, fala sério…”. Não é por aí. A dor e a sinceridade daquela mulher eram reais e não inventadas. Eram por causa do medo dela; medo pelo filho nessas comunidades pequenas, onde todos sabem como é difícil. Então, você tem que aceitar quem eles são, mesmo que você não concorde com eles, você tem que aceitar. Um amor que vê as pessoas como elas são e aceita.

O jardim secreto

Os 3 hectares de jardins que pertencem à chácara Bleanáskill foram criados por volta de 1870. Em um oásis de paz na Ilha Achill, na Atlantic Drive, a chácara se localiza em um vilarejo tranquilo, a três quilômetros de Achill Sound. Daqui você tem uma vista da Península de Curraun e das águas de Sound. Apesar do desafio constante dos ventos fortes e do ar salgado, mais de um século de vários proprietários resultou em uma mistura de árvores maduras e fronteiras coloridas, elementos de arte e uma vida selvagem vibrante. Willem e Doutsje, moradores da chácara e cuidadores do jardim há mais de duas décadas, transformaram os jardins no que é conhecido como Jardim Secreto de Achill. A apresentação de slides acompanha Doutsje enquanto ela caminha pelos jardins onde vemos bosques de árvores, esculturas, hortas ornamentais e vegetais, pontes, espaços de meditação.11

  • Jardim Secreto de Achill, 2017. Fotos: Jessica Gogan.

Willem Van Goor: o artista e a margem

Sempre me interessei pela natureza, principalmente por insetos e plantas. Entre os 15 e os 17 anos, fiquei meio incomodado com a forma como as plantas eram apresentadas em guias gerais que ilustravam toda a flora dos Países Baixos. As ilustrações eram todas feitas em preto e branco. Então, comecei a fazer desenhos botânicos de plantas e fiz trabalhos microscópicos porque na época eu queria ser biólogo, não achava que me tornaria pintor. Mas aí acabei na escola de arte. Você é formado em um ambiente e nada nele como um peixe. Havia peças abstratas, esculturas, trabalhos em madeira e metal, e eu fazia cerâmica. Fiz esse trabalho por anos e anos, depois de um tempo, temas reconhecíveis começaram a surgir, imagens influenciadas pela natureza – grama, nuvens, mundos visuais – cintilando através do trabalho abstrato. Também fiz uma série de retratos de mulheres. Depois da minha última exposição na Holanda, emigramos e logo depois comecei a me reconectar com a natureza. Comecei a olhar para a paisagem novamente, e é uma das razões pelas quais estou aqui. Motivado por um interesse no que está por trás da paisagem, comecei a mergulhar no nosso entorno. Fiz toda uma série de casas e de sistemas climáticos abordando, não fotos românticas da vila rústica, mas sim as fotos estéreis, as cores estranhas de Achill e do Condado de Mayo, principalmente no inverno, quando não há turistas.

Willem Van Goor, The Other Side, 2001.

Depois de algum tempo, percebi que meu enfoque estava se ampliando. A superfície das coisas e seus padrões ocultos despertaram meu interesse – o solo, as algas marinhas e a miríade de plantas no jardim. Essas superfícies me levaram de volta a uma espécie de abstração. Por exemplo, você pode redefinir a grama de uma maneira abstrata ou ver que a alga marinha tem uma certa estrutura que se repete de um modo particular. Isso, por sua vez, me levou de volta aos desenhos botânicos.

Esse tipo de trabalho gera encomendas com frequência. Por exemplo, o sobrinho-bisneto de Alexander Williams, o artista e escritor que já foi proprietário da chácara Bleanáskill, que fundou a Water Lily Society, especializada em jardins aquáticos, e é membro fundador da Gardening and Landscape Society of Ireland (GDLA), me perguntou se eu poderia fazer um desenho de um lírio d’água específico.

Willem Van Goor. Waterlily, 2012.
Willem Van Goor. Waterlily, 2012 (detalhe).

Também fiz um de algas marinhas que vendi para um biólogo. Eu faço sob encomenda. Adoro fazer esses trabalhos porque eles me relembram do meu amor pela natureza.

Willem Van Goor. Seaweed (desenho botânico), 2013.

Estou mais interessado em explorar o que a paisagem está fazendo, estar à margem da paisagem, onde o oceano encontra a terra, onde as algas marinhas são levadas para a costa e o que acontece quando um rio destrói um vale. Por exemplo, no Marrocos, onde no inverno a corrente traz plástico e lixo das aldeias e cidades e os deixa pendurados nos salgueiros e quando o rio seca no verão faz uma espécie de borda de plástico a uma certa altitude em meio à floração e árvores florescentes.

As pessoas não olham para as algas, são escorregadias, você se desvia delas se não quiser comê-las, e não queremos ver o plástico nas árvores de um vale de um rio no Marrocos. Para mim, é uma coisa especial, a interferência humana.  À margem do que é bom e do que não é bom está o meu interesse mais profundo. O que é visível e não visível, como torná-lo visível e ver a beleza dele, efetivamente você está de volta à estrutura, de volta à abstração, e pode ir a qualquer lugar.

O mesmo vale para a neve. Sempre fui encantado pela neve, por ver o que ela faz na grama, nas pedras, na praia, nas algas. É um processo. Procuro um ponto focal, que pare, que se amplie, ambos no mesmo quadro de desenvolvimento. São zonas liminares em que o pensamento abstrato e o concreto se encontram. Está na música, nos ritmos, na matemática…

Ilha Achill com neve, inverno de 2010. Fotos: Willem Van Goor.
Willem Van Goor, I Thought I Saw a Hoopoo, 2013

Quando você olha para a grama, o que vê é um monte de folhas verdes, uma espécie quase sempre ereta e baixa, mas examinando com mais atenção você consegue ver uma diversidade de formas. Quando você faz isso, você tem que encontrar a semelhança, o padrão, talvez seja o vento que está criando esse padrão. Existem milhares de espécies de grama. Cada uma delas tem formas – ligadas à folha de uma certa maneira –, cada espécie é diferente. Elas têm padrões genéticos fortes. Quando você junta 20 delas, dá para ver que há uma estrutura arquitetônica e matemática, que é abstrata e pode ser relacionada com a música.

Willem Van Goor, Storm Grass, 2007.

Tenho um grande interesse por essas sequências matemáticas, por ritmo e rima, por semelhanças. Muitas vezes, o que há em comum não é o que as pessoas esperam. Estar em um determinado lugar desperta minha curiosidade. Tento sempre descobrir as estruturas subjacentes, de novo, o ritmo, profundamente, sejam pedras, plantas ou seres humanos, as camadas da biologia, geologia e história. No entanto, sempre há um grande porém: se você se aprofundar demais, pode se perder e acabar de mãos vazias… Seja um artista ou empresário, você precisa se concentrar, conhecer os meandros, os detalhes das coisas. Quero saber os mínimos detalhes, como são, o que as pessoas fazem com eles.

Willem Van Goor. Bent grass, 2005.

Posso mergulhar no mundo das folhas de grama por semanas a fio e fiz isso durante toda a minha vida. Eu não retrato pessoas. Eu converso, convido e posso estar com as pessoas desde manhã cedo até tarde da noite, mas não as pinto.

Willem Van Goor. Rhododendron Grove / Mud, Stones and Seaweed, 2008.

Jessica – Quando vejo suas paisagens, elas me parecem “povoadas”.

Willem – Não sei. Sei que elas têm suas próprias características e eu adoro. Por exemplo, Kingdom of the Wren [reino da corruíra], o passarinho marrom muito irlandês que vive em arbustos ou uma cabana coberta de hera, uma trepadeira com folhas verdes brilhantes que cobre, sobe por toda parte, cujos caules conseguem esmagar pedras, como o mundo da corruíra. Ao retratar esse mundo específico, vejo como a hera vai se prendendo; essa massa de estrutura – a estrutura da hera –, só a hera faz isso. Desenhar, pintar, esse processo é como um quebra-cabeça, uma espécie de relaxamento, ou ritmo musical, e uma repetição abstrata de formas. É isso que me atrai, a estrutura da hera, os padrões formais do gelo e da neve, da grama ou das algas marinhas, sempre há algo acontecendo…

Willem Van Goor, Kingdom of the Wren, 2012.

Jessica – Um encontro.

Guilherme – O rizomático se espalha. É horizontal. Não cria profundidade, em vez disso, sua estrutura se agarra a superfícies em constante movimento, mudança e multiplicação. Como fractais. É um processo matemático e totalmente aleatório.

Willem – Veja este exemplo de alga marinha. Eu também coleciono algas marinhas. Aqui está mais uma. Veja a estrutura e a aleatoriedade juntas…

Willem Van Goor, Seaweed study, 2015.

Jessica – Nossa, é tão lindo!

Willem – Sim, é lindo. Eu tenho muitos outros estudos. Você precisa de todos esses estudos para fazer uma peça em escala real. Outro exemplo, aqui está um salgueiro, dá para ver a estrutura do salgueiro, tem uma determinada linguagem. Opto por trabalhar com verdes e verdes-oliva, com branco e azul cintilante. Eu desenho enquanto estudo e classifico formas, trabalhando em diferentes direções e cores. As tulipas são tão brancas e brilhantes que as deixo intocadas para ressaltar. Isso não são fotos. Como desenhar ou pintar a neve? A neve é branca, então, para simplificar, vocês deixa a neve branca e faz o resto. É uma escolha que você faz, você cria a claridade da imagem de uma forma gráfica, brincando com a neve e as sombras, depois com a tinta, e você descobre maneiras de representar a neve na grama, com diferentes ênfases. 

Willem Van Goor, Tulips, 2006.

Guilherme – A compreensão da estrutura é fundamental.

Willem – Sim, mas você só descobre fazendo. Formas, cores, estudos…

Guilherme – Um universo de diferença e estrutura.

Willem – Você tem que se concentrar primeiro em uma coisa, depois em outra. Quando eu era jovem, estudava piano e órgão cerca de 2 horas por dia. Depois disso, fazia minha lição de casa. Aí eu desenhava plantas. Em seguida, alimentava meu aquário de água do mar.

Jessica – A música parece embasar tudo para você, ser uma força geradora.

Willem – A música chegou primeiro, eu tocava qualquer coisa no órgão quando tinha uns 3 anos e consegui começar a fazer melodias com uns 4 anos. A música veio primeiro, depois os insetos, depois a pintura e o desenho.

Guilherme – Estrutura musical e pensamento abstrato vêm juntos. Talvez esse seja um pensamento à margem. A complexidade da convivência de diferentes espécies em suas pinturas, você consegue capturar esse encontro, de fazermos parte da grama.

Willem Van Goor. Cross point, 2013.

Sim, somos feitos da mesma “poeira estelar”. Quero me concentrar em coisas para as quais as pessoas nunca olham, mas deveriam olhar.

Jessica – A margem talvez seja manter essa consciência, ver algo normalmente não visto, manter essa percepção.

Willem – Talvez seja uma sensação de margem… Lama, tenda e pedras não estão muito na moda, mas você precisa pintar antes que as pessoas reconheçam que há beleza nisso. Não sou um pregador. Só faço isso porque eu mesmo adoro. Estou interessado e conectado a isso, e é por isso que eu pinto.

Guilherme – A arte oferece novas abordagens para a vida cotidiana.

Willem – Margens com um “s”.

  • Imagens do estúdio de Willem Van Goor, 2017. Fotos: Jessica Gogan.

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Doutsje Nauta
Nasceu em uma noite tempestuosa em 31 de janeiro de 1953 em IJsbrechtum, Países Baixos, sendo o segundo bebê, mas a primeira menina.  Revendo sua vida profissional, ela passou a maior parte do tempo organizando e escrevendo em institutos (semi)governamentais. A inovação tem sido o fio condutor do seu trabalho. Ela mora na Ilha Achill desde 1997, um lugar que, embora isolado dos grandes eventos mundiais, é parte integrante deles. Esse posicionamento parece característico de como ela se vê na sociedade. Ela faz parte há muito tempo do Grupo de Escritores de Achill e estuda violoncelo desde o outono de 2017.

Willem van Goor
Nasceu em 4 de novembro de 1948 em Zwolle, Países Baixos. Após o ensino médio, ele estudou por cinco anos na Academia de Arte de Groningen e se especializou em pintura lírica abstrata. Desde então, seu trabalho se desenvolveu e se tornou mais diversificado, abrangendo tanto a arte botânica quanto a pintura de paisagem.  Seu trabalho botânico se baseia em um amor ao longo de toda a vida pela natureza. O trabalho paisagístico, com foco em estruturas ocultas, acompanha o ritmo e os acordes da música, outra paixão que sempre existiu na sua vida, improvisando e tocando piano e órgão.

Reverendo Val Rogers
É de Sligo, no oeste da Irlanda, e se tornou um padre católico romano em 1972, tendo atuado em Fiji e Sydney até 1984. Casou-se com Josie em 1985 e retomou seu chamado como padre na comunidade anglicana em Melbourne até voltar à Irlanda em 2009 como Reitor de quatro paróquias da Igreja da Irlanda [isto é, anglicana] no oeste de Mayo, incluindo a St. Thomas em Dugort, na Ilha Achill. Ele e Josie se aposentaram localmente em 2019.


1 DURCAN, Paul. “The Far Side of the Island”. The Art of Life (Londres: Harvill Secker, 2012 (publicado pela primeira vez em 2004) p. 11

2 Conversas com Willem e Doutjse, registradas também em COMERFORD, Patrick. “Under Blue Skies Achill is Like an Aegean Island in the Sun,” Igreja de St. Thomas:Dugort, Ilha Achill, Condado de Mayo, Irlanda (Dublin: Society for Irish Church Missions c.2012) p.13-16, p.15-16.

3 GILLESPIE, Tom. “Starving Achill Families renounced the Catholic faith for food handouts” Connaught Telegraph, 09/01/2021, Disponível em: https://www.con-telegraph.ie/2021/01/09/starving-achill-families-renounced-the-catholic-faith-for-food-handouts/

4 Ibid.

5 No original, take the soup. (N.T.)

6 No original, souper. (N.T.)

7 No original, jumper. (N.T.)

8 No original, “a nose for fish and an eye for apples”. (N.T.)

9 Para obter mais informações, acesse https://wwoof.net/about-2/

10 THOREAU, Henry David. Walden; or Life in the Woods (Primeira publicação em 1854) (Nova York: Dover Publications, 1995) p.11

11 Para obter mais informações sobre o Jardim e uma seleção de fotos e vídeos, consulte: http://www.achillsecretgarden.com/