Nº6 VIDAS ESCONDIDAS
Memorial homenageando os desaparecidos da ditadura chilena (Museo de la Memoria, Chile). Foto: Aton Agency.

Trazendo à luz: testemunhos visuais de sobrevivência1

Carolina Pizarro Cortés

O objeto destas reflexões é um conjunto de trabalhos visuais produzidos no Chile e na Argentina que se baseiam numa fotografia que representa um/uma detido/a desaparecido/a, quer se trate de uma fotografia íntima, doméstica ou do tipo oficial, tal como uma cédula de identidade. São intervenções artísticas que não têm necessariamente como objetivo principal visibilizar a ausência, como foi o caso dos protestos públicos realizados pelos familiares das vítimas. Estas obras, argumentaremos, fazem um giro que reorienta o sentido do uso testemunhal da fotografia: instalam no aqui e agora aqueles que foram vítimas da repressão ditatorial em ambos os países, insistindo na sua presença. Nos três casos em que vamos fixar o nosso olhar, é possível observar a mesma operação básica, a que chamaremos relacional. Isto consiste em colocar a fotografia, através de uma imagem composta, numa ligação direta com as e os familiares. Desta forma, o vínculo afetivo funciona como centro da representação e como garantia da sobrevivência da pessoa desaparecida. Adicionalmente, observamos uma progressão na utilização de recursos técnico-visuais, bem como uma progressiva intensificação do diálogo intermedial.2

Tanto no Chile como na Argentina, a fotografia foi utilizada como forma de protesto pelos familiares das vítimas. Estes exibiam os seus/ as suas desaparecidos/as em espaços públicos, levando imagens dos seus rostos no peito ou em cartazes. Antes, era uma forma de sustentar visualmente a identidade daqueles que tinham perdido tanto os seus direitos de cidadania como a sua existência. Diante a realidade do corpo ausente, a fotografia.  Em vários casos, mesmo na fotografia da carteira de identidade: o rosto olhando de frente para a câmera sem muita expressividade, com o nome completo e o número de identificação na parte inferior da borda do documento. A imagem oficial assim se ressignifica, para indicar que esta pessoa existe, é legal e aparece nos registos. A tríade do nome-rosto-número é uma garantia do seu ser, negada pela prática nefasta do desaparecimento. A utilização performativa da fotografia nestes atos de denúncia pública testemunha e expõe a ausência do referente.3

Os três projetos discutidos a seguir baseiam-se na prática de protesto acima descrita, mas ao mesmo tempo a ressignificam. A ênfase nestes exercícios artísticos de projeção está na sobrevivência, no fato de que estas “vidas ocultas” – aquelas das vítimas e dos seus enlutados – continuem a existir. Assim, podemos ler o seu significado como um trazer à luz, no sentido literal e figurado. A representação é utilizada não só como vestígio ou pegada daqueles que já não estão presentes, mas como prova material da sua presença. A imagem também nos permite fundir tempos diferentes, abrindo uma alternativa de realidade que contraria o peso fatal da história. A relação entre a pessoa desaparecida e o seu parente é o núcleo que permite conectar o registo visual do passado com o registo visual do presente.

O primeiro destes exercícios é realizado pelo fotógrafo argentino Julio Pantoja, que dá origem ao ensaio fotográfico e exposição intitulado Los hijos. Tucumán veinte años después. Esta série de 38 imagens retrata os filhos e filhas dos/ das desaparecidos/as que foram vítimas do exercício repressivo da ditadura de Videla na província do norte do país. O trabalho foi levado a cabo entre 1997 e 2001.4 Consiste numa elaboração conjunta, em que o fotógrafo dialoga com as pessoas retratadas para dar forma à impressão que as representará. Significativamente, 15 deles escolhem ser fotografados ao lado de uma imagem de um ou de ambos os seus pais desaparecidos. Isto cria uma foto de família impossível, em que pais e filhos têm aproximadamente a mesma idade. Abre-se, assim, um abismo produzido pela inserção de uma foto dentro de outra foto implicando uma homologação de materialidades. Já não existe uma separação entre a imagem do parente perdido e a da pessoa sobrevivente, mas sim ambas são incluídas numa instantânea. A distância entre a realidade e a representação é assim quebrada.

No contexto da série, o retrato de Pablo Gargiulo é especialmente significativo.

Fotografia de Pablo Gargiulo em Los hijos. Tucumán 20 años después de Julio Pantoja.

O jovem posa com a fotografia da sua mãe na mão direita e a do seu pai na esquerda. O enquadramento compõe uma foto de família a partir da conjunção de duas fotografias antigas que são integradas na nova imagem. Nenhum artifício técnico é utilizado nesta fotografia: o jovem simplesmente segura dois retratos à altura do peito, permitindo que o seu rosto seja visto acima dos de seus pais. Nada é feito para esconder o corte e a descontinuidade. A fotografia obtida é, nesse sentido, totalmente realista. Os detalhes estéticos que chamam a atenção têm a ver com procedimentos simples. Os fundos das fotografias dos pais são claros, em contraste com o fundo mais escuro da imagem que contém o filho, e há um equilíbrio triangular na disposição das figuras. Os pais, especialmente iluminados, atuam como a base de um triângulo, que suporta o vértice superior que onde se encontra o filho. A foto mostra assim a importância do vínculo, a natureza fundacional da paternidade e da maternidade. As vidas foram truncadas, mas não a sua significação. Este sentido é notavelmente reforçado pela pose: o filho, segurando os retratos nas suas mãos, gera uma espécie de abraço. Desta forma, a imagem devolve as vítimas à presença através de uma operação relacional.

Outra variante da opção do retrato de família (re)composto é a de Laura Romero.

Fotografia de Laura Romero em Los hijos. Tucumán 20 años después de Julio Pantoja.

Trata-se de uma fotografia de uma jovem mulher segurando duas fotografias ligeiramente sobrepostas: uma mostra-a quando era bebê, com os seus pais, e a outra mostra-a quando criança, segurando a fotografia anterior. Sintomaticamente, o foco está nas fotografias anteriores, de modo que estas aparecem nítidas, enquanto o rosto de Laura aparece desfocado. O conjunto aponta para a sobreposição contraditória de planos temporais. Transmite a mensagem de acompanhamento constante, a ideia de uma viagem de vida marcada pela memória, mas é também uma expressão de cortes e descontinuidades. O fato de Laura estar contida nas três imagens,5 em diferentes momentos da sua vida, aponta para a permanência da ligação. As fotos que ela tem nas mãos são, no entanto, uma espécie de cápsula de tempo delimitada pelo seu próprio enquadramento. A ausência de um artifício simulador de coexistência leva-nos de novo à observação de que o processo é construtivo: consiste em juntar fragmentos. O próprio eu do fotografado é afetado pela qualidade de um mosaico. Ser filha de detidos/as desaparecidos/as implica ter de insistir na manutenção dos laços familiares.

O segundo exercício criativo que gostaria de comentar, baseado em fotografias dos desaparecidos, é o projeto Arqueología de la ausencia da artista Lucila Quieto. Num esforço para completar o seu álbum de família truncado, resultado do desaparecimento do seu pai alguns meses após o seu nascimento, Lucila concebeu um procedimento para gerar as imagens que nunca teve. Projetou fotografias antigas numa parede e depois fotografou a si própria participando nas cenas, integrando o seu perfil nas estampas de outro tempo. Depois de avaliar o resultado, fez um convite aberto a outros filhos e filhas das vítimas. O conjunto das suas próprias imagens e as das pessoas que aderiram à sua iniciativa corresponde às 35 fotografias da Arqueología de la ausencia (1999-2001).

Como em Hijos…, em Arqueología… a representação do elo perdido é gerada através de uma sobreposição de registos. Neste caso, no entanto, esta operação implica uma etapa intermedial. Uma fotografia não é incluída noutra fotografia – uma pequena parte posta em abismo ou num jogo de caixas chinesas -, mas sim uma fotografia mais complexa é composta através de projeção. Como num teatro de sombras, intervém o reflexo do slide, de modo que o/a filho/a se possa intrometer na vida dos seus pais, integrando-se numa cena. Os tempos, mais uma vez, são alterados, mas em sentido inverso. Se o ensaio fotográfico de Pantoja trouxe os pais para o presente dos filhos, Quieto leva os filhos para o passado dos seus pais. O efeito do impossível repete-se: a coincidência de idades entre os dois capturados na mesma imagem.

A sobreposição é o procedimento básico. O artista faz uma espécie de fotomontagem, mas de natureza intermedial. Ao utilizar a projeção gera efeitos, na medida em que os corpos dos filhos fazem ao mesmo tempo parte da cena reconstruída e um pano de fundo contra o qual a imagem dos pais é projetada.6 Em alguns casos, o resultado é verossímil; na maioria são criadas imagens fantasmagóricas ou surrealistas de difícil interpretação visual. 

No primeiro caso é a fotografia de Diego e da sua mãe, Manuela Santucho, uma advogada que desapareceu em 1976.

Fotografia de Manuela Santucho e seu filho Diego en Arqueología de la ausencia de Lucila Quieto. Folleto de la exposición. Fototeca UByD –UNGS, 8, marzo de 2014.

Na fotografia antiga, Manuela aparece à direita da imagem, no que poderia ser uma reunião de amigos ou uma festa. Ela não está olhando diretamente para a câmera. O seu rosto está numa posição de três quartos. Diego junta-se à projeção do lado esquerdo, num plano que é percebido ligeiramente mais próximo da lente. Algumas sombras são projetadas no seu peito, o que poderia fazer parte da foto original. O seu rosto, no entanto, aparece claramente definido. Ele também não está olhando para a câmera, mas para um ponto próximo do olhar da sua mãe. Num relance, ambos fazem parte da mesma cena. A sobreposição deixa traços muito sutis, gerando a ilusão de co-presença.  A composição da fotografia de segundo grau (fotomontagem)  colabora com a realização do efeito. Manuela passa então para o centro da imagem e o seu filho Diego completa a moldura, reforçando a centralidade da mãe. As luzes e as sombras também conspiram: Manuela é especialmente iluminada, enquanto o rosto de Diego é visto como mais sombrio. A presença da mulher desaparecida é assim reforçada, uma vez que se torna mais nítida do que a sua sobrevivente.

Dentro da mesma série de Arqueología… existem outras imagens, tais como algumas da própria Lucila, que expõem os vestígios do artifício de forma mais clara. Estes não enfatizam necessariamente o processo reconstrutivo, mas o efeito alcançado, como mencionado acima, é bastante surrealista.

Fotografia de Carlos Quieto e sua filha Lucila em Arqueología de la ausencia de Lucila Quieto. Folleto de la exposición. Fototeca UByD –UNGS, 8, marzo de 2014.

A projeção que dá origem a esta fotografia permite que a autora se integre parcialmente num espaço já ocupado, sobrepondo a sua figura de um grupo de pessoas que parecem ser transeuntes numa rua movimentada. À esquerda da imagem está o seu pai, Carlos Quieto, a olhar para a câmera. Ela ergue-se para a direita e olha para ele. Como no caso anterior, a qualidade atual da pessoa desaparecida é realçada, e de uma forma ainda mais notória. Ele é percebido com os seus contornos definidos. Ela, por outro lado, está desfocada. A roupa branca do fotógrafo serve de ecrã em que parte da cena passada é projetada. Graças a este recurso, a aura fantasmagórica em toda a imagem é formada em torno de Lucila.7 O seu corpo é atravessado pelos restos da cena original, enquanto a sua imagem contém e enquadra a de um casal de mulheres caminhando de braço dado em direção à lente. O recurso produz um efeito de irrealidade: Lucila está lá e ela não está; ela infiltra-se, mas não está totalmente incorporada. A operação relacional, neste exemplo, parece estar meio preenchida.

Um terceiro exercício artístico que coloca em tensão as relações entre fotografia e (des)aparição é o trabalho encomendado pelo Partido Socialista do Chile, que toma a forma da exposição Vivos recuerdos (Vivid Memories). Este consiste num conjunto de retratos em que, com base numa fotografia do detido desaparecido, a pessoa é representada com a aparência que possivelmente teria se estivesse viva 45 anos mais tarde. Para a elaboração das imagens, são utilizadas diferentes técnicas digitais para intervir nas fotografias, gerando o efeito do envelhecimento. O resultado é mais uma vez uma imagem impossível, o que traz ao presente não a estampa em si, que é guardada como uma memória, mas um retrato atualizado, um “como se” o detido desaparecido ainda estivesse presente.

Exposición Vivos recuerdos. Página oficial del PPD (Partido por la Democracia).

Para além de ser apresentado como uma exposição, Vivos recuerdos está disponível num website com o mesmo nome8 e levou à criação de um vídeo.9 Ambas as iniciativas envolvem as empresas de produção Wolf BCPP, Ojo de Buey e SalaMágica, bem como o fotógrafo Renato del Valle e o músico Darío Segui. A transposição intermedial nos dois “exercícios de continuidade” gera efeitos de ressonância: a exposição física é projetada e ampliada noutros meios e suportes. A base é a mesma, mas camadas de significação são adicionadas em cima dela.

Site a https://vivosrecuerdos.cl

O website é muito simples. Sobre um fundo preto, as fotos originais dos rostos de 10 militantes desaparecidos/as são exibidas. Ao clicar num deles, o retrato envelhecido aparece, ocupando a tela inteira. Tal como nas imagens expostas na exposição, a fotografia básica aparece à esquerda, juntamente com uma breve biografia que diz quem é a pessoa retratada e relata sucintamente os detalhes do seu desaparecimento. O contacto entre o website e o utilizador da interface, ao contrário da exposição, gera uma narrativa. O/a destinatário/a entra através da fotografia real e pode apreciar a transformação, a “passagem do tempo”. A nova imagem, além disso, destaca o texto de âncora – nas palavras de Roland Barthes10 – que, como se faz sucintamente em Hijos… e de forma mais detalhada em Arqueologia…, permite-nos conhecer alguns detalhes biográficos que singularizam ao/à detido/a desaparecido/a.

As fotografias intervencionadas em Vivos recuerdos não contêm em si uma dimensão relacional, uma vez que não mostram qualquer ligação afetiva, mas concentram-se na vítima. O website promove uma certa interação, mas esta, embora sem dúvida mais dinâmica, é análoga à experiência de visitar a exposição física. Também envolve um espectador que pode não ter qualquer ligação com a pessoa retratada. O registo audiovisual, por outro lado, incorpora a dimensão relacional no resgate da imagem, conferindo-lhe centralidade.

O tema do vídeo é o primeiro encontro dos familiares das vítimas – cônjuges, irmãos/ irmãs, filhos/as, sobrinhos/as e netos/as – com os retratos, exibidos para este fim nas galerias do Estadio Nacional11. Antes de verem a imagem, as e os familiares recordam a personalidade do seu parente e trazem à tona detalhes da sua vida íntima. A biografia de cada pessoa aparece em retalhos numa conversa que parece muito espontânea. Através da linguagem, as famílias contribuem com pinceladas que humanizam a pessoa ausente e começam a delimitá-la.

Numa destas intervenções, uma jovem mulher diz: “A primeira abordagem ao meu pai é a imagem: o cartaz, a foto. Assim, o meu pai tem sido uma imagem fragmentada, mas feliz”.12 A filha testemunha do lugar de alguém que apenas manteve uma ligação com a sua imagem paterna através da fotografia, recordando a forma de protesto visual que denunciou a sua ausência. O vídeo incorpora assim um diálogo entre a fotografia da vítima que os membros da família carregaram durante anos no peito ou nas mãos e a reconstituição da mesma imagem que reivindica a sua presença.

Após os segundos de recordação, os/as entrevistados/as falam sobre como acham que os seus parentes se pareceriam agora. À medida que as suas vozes são ouvidas, partes do procedimento pelo qual os retratos envelhecidos das vítimas foram gerados são brevemente mostrados. O vídeo segue então as famílias para as galerias do estádio. Estas galerias representam metonimicamente os locais de detenção, tortura e extermínio dos quais os seus familiares desapareceram.  A viagem através das galerias escuras termina em frente ao retrato. O vídeo mostra primeiro as reações dos familiares ao verem a imagem do seu parente e finalmente foca os rostos dos/as desaparecidos/as. Uns choram, outros sorriem, outros ficam atordoados. Todos eles estão profundamente comovidos. Na gravação de segunda ordem – o vídeo que reúne a imagem atual da vítima e dos seus familiares diretos – a operação relacional é medular. Os detidos desaparecidos tornam-se presentes na medida em que se produz o reconhecimento. As pessoas aproximam-se e tocam nos retratos gigantes; exprimem o seu desejo de os abraçar; também os beijam. A narrativa, neste caso, é a história de um (im)possível encontro.

Há pouca intervenção textual no vídeo. As legendas escritas funcionam como uma voz-off que fornece apenas detalhes essenciais do processo de criação das imagens e dos eventos registados. Entre estes textos, destaca-se a frase final: “a única maneira de não repetir a história é manter viva a memória”. Num sentido literal, a sentença reafirma a convicção sobre a importância de não esquecer para evitar situações históricas desastrosas como as do passado recente do Chile. Numa segunda leitura complementar, “manter viva a memória” significa não deixar morrer a memória e, ao fazê-lo, preservar os/as desaparecidos/as da morte ou mesmo resgatá-los/las da imobilidade. Devolvê-los ao fluxo do tempo, como fazem os retratos intervencionados.

Os três grupos aqui apresentados, que estão em diálogo direto com a prática da exposição pública da fotografia do/a desaparecido/a, mostram não só a assimilação de um recurso testemunhal de protesto, mas também o tornam mais complexo e amplificam-no. Tiram as fotografias do seu lugar de registo de um sujeito, derivando-as para uma representação das suas relações afetivas. A imagem de primeiro grau é integrada numa imagem de segundo grau, que produz a sensação – e talvez também o sentimento de encontro. Neste processo, como dissemos no início, é possível observar a intervenção cúmplice da própria fotografia e depois também de outros meios de comunicação, que juntamente com ela constituem uma proposta visual ou audiovisual que desafia a realidade material do desaparecimento e a questiona, insistindo na sobrevivência.

Estas três obras não são casos excepcionais, mas estão relacionadas com um importante grupo de representações que têm como núcleo a utilização testemunhal da fotografia.13 Interessava destacar nelas a particularidade que as distingue: o enfoque na relação entre aqueles que já não estão presentes e aqueles que sobrevivem. Desde este ponto de vista, poderia argumentar-se que se trata de uma linha específica, que também motiva as iniciativas subsequentes.

Fotografia de Claudia Amengual e Erique Lucas López em Imágenes del silencio.

Um exercício muito semelhante ao realizado por Pantoja e pelos filhos e filhas das vítimas, por exemplo, é o proposto por Imágenes del silencio, um projeto coletivo uruguaio realizado entre novembro de 2019 e maio de 2020.14 Consiste em fotografias a preto e branco em que uma figura pública segura ou abraça um cartaz com uma fotografia de um/uma detido/a desaparecido/a impresso no mesmo. De acordo com o tempo, é carregado nas redes sociais, especificamente Instagram, Twitter e Facebook. Todos os dias, como contagem regressiva, é incluída uma nova imagem. Neste caso, a intermedialidade reforça a operação relacional: coloca a pessoa desaparecida num novo espaço de sociabilidade, o das plataformas virtuais, contribuindo assim para intensificar a sua presença, quase à maneira de uma divulgação. Se é verdade que a era da Internet tornou possível desvendar o oculto, esquivando-se às lógicas de controle da informação dos canais oficiais, é possível que as trajetórias vitais truncadas, destinadas através da repressão extrema ao desaparecimento, surjam insistentemente. O apelo ao vínculo, à empatia, também tem um alcance muito maior, na medida em que não depende de fatores condicionantes materiais, tais como a compra de um livro ou a presença numa exposição. A imagem de alguém que continua a estar na memória e nos afetos dos seus familiares pode tornar-se viral. A sua existência, desta forma, não só se mantém, como se multiplica.

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Carolina Pizarro Cortés
Licenciada em Literatura pela Universidad Católica de Chile, Mestra em Literatura pela mesma universidade e Doutora em Filosofia pela Universidade de Konstanz, Alemanha. Fez um pós-doutorado no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Santiago do Chile. Hoje trabalha como acadêmica jornada completa naquela instituição. Entre as suas principais publicações estão os livros Nuevos cronistas de Indias. Historia y liberación en la narrativa latinoamericana contemporánea (autor, Colección IDEA, 2015), Revisitar la catástrofe: la prisión política en el Chile dictatorial (editor, Pehuén editores, 2016) e Nuevas formas del testimonio (editor, Colección IDEA – Editorial USACH, 2020, no prelo), assim como numerosos artigos em revistas acadêmicas.


1 Este trabalho foi realizado no marco do projeto Fondecyt regular Nº 1180001, “Tortura: experiencia y concepto”.

2 O conceito de intermedialidade que usamos neste artigo é o cunhado por Irina Rajewsky (2005): “‘Intermedial’ (…) designates those configurations which have to do with a crossing of borders between media, and which thereby can be differentiated from intramedial phenomena as well as from transmedial phenomena (i.e., the appearance of a certain motif, aesthetic, or discourse across a variety of different media)” (46). A autora reconhece três formas de intermedialidade: (1) transposição medial, relacionada com a forma como um produto medial se torna tal, quer com a transformação de um determinado produto medial (um texto, um filme, etc.) ou do seu substrato noutro. ) ou o seu substrato noutro meio; (2) combinação medial, na qual a qualidade medial é dada pela constelação medial que constitui um determinado produto, que é o resultado de um processo de combinação de pelo menos dois meios diferentes; e (3) referências mediais, na qual o produto medial utiliza os seus próprios modos mediais específicos, quer para se referir a um trabalho individual produzido noutro meio, quer para se referir a um subsistema medial específico ou a outro meio como um sistema. Mais que combinar diferentes formas de articulação medial, o produto medialmatiza, evoca ou imita elementos ou estruturas de outro meio convencional (Irina Rajewsky, “Intermediality, Intertextuality, and Remediation: A Literary Perspective on Intermediality- Intermédialités, 6, 2005, pp. 43-64). Nos casos que serão analisados abaixo, o que é mais notável do ponto de vista técnico é a combinação medial, mas existem também componentes importantes de referência medial.

3 Ludmila da Silva explica o uso e significado destas fotografias utilizadas por familiares durante a ditadura argentina. No início, ““La foto con el rostro del desaparecido pasó a ser (…) una herramienta de búsqueda, una esperanza frente a la incertidumbre. (…) [E]ra una estrategia para individualizar al ser querido de cuyo destino nada se sabía”. Depois, no contexto dos julgamentos, torna-se um recurso indicativo na busca da verdade. Finalmente, torna-se parte do protesto ativo no espaço público: “A medida que pasaron los años, la creación de símbolos y rituales acompañaron esta nueva forma de hacer política instituida por los familiares de desaparecidos y específicamente por las Madres de la Plaza de Mayo” (DA SILVA, Ludmila. “Re-velar el horror. Fotografía y memoria frente a la desaparición de personas”. Memorias, historia y derechos humanos. Isabel Piper y Belén Rojas (eds.). Santiago de Chile: Universidad de Chile, 2012. pp. 160 y 162). Un recorrido análogo es el que puede apreciarse en el caso de Chile.

4 A obra pode ser vista completa na página web do fotógrafo: https://www.juliopantoja.com.ar/obra_hijos.html

5 O abismo que observamos em várias das fotografias do conjunto é especialmente complexo nesta imagem, uma vez que, ao incluir uma fotografia anterior que faz uso do mesmo recurso, ela é revelada como uma operação de segundo grau.  A propósito, num excelente artigo em que comenta este trabalho de Pantoja, comparando-o com o de Ulanovsky, Natalia Fortuny comenta: “También el juego de cajas chinas que se adivinaba en las fotos de luto y en la obra de Ulanovsky se reitera –profundizado– aquí en una foto triple. En la Fig. 16 se ve a una chica que sostiene dos fotos: en una de ellas una pareja sujeta a un bebé, en la otra (de tamaño mayor) una pequeña nena muestra la foto de la pareja con el bebé. Claramente, se trata de sus padres y de ella, y esta segunda foto suma un escalón temporal –intermedio–, agravando el efecto de ausencia: convierte a esa niña ya en hija, mostrando tempranamente la forma del retrato ‘hijo de desaparecido con foto del/los ausente/s en la mano’ y evidenciando la falta a lo largo del tiempo de una vida”. (FORTUNY, Natalia. “Cajas chinas: la foto dentro de la foto como cosa”. Revista chilena de antropología visual [online], 17, 2011. p. 14). É importante salientar que Fortuny interpreta o recurso da fotografia dentro da fotografia em linha com a tradição de retratos comuns em famílias de luto no início do século XX, em que os familiares posam com uma imagem do seu falecido. Na nossa leitura específica, gostaríamos de destacar não a dimensão associada à morte, mas, pelo contrário, a interpretação do gesto como uma insistência na vida.

6 Anna Forné qualifica estas fotomontagens com toda a propiedade como palimpsestos: “En el palimpsesto, la escritura del presente se sobrepone a las letras del pasado pero sin borrarlas totalmente. Es de esta manera que trabaja Quieto en sus fotomontajes, en los que las fotografías captan la puesta en escena de un encuentro entre un desaparecido y su familiar, realizado mediante la proyección en una pared de la diapositiva de un familiar desaparecido, donde después se introduce el hijo/a para que su cuerpo-imagen parcialmente se integre con el del familiar proyectado. De esta manera se escenifica y se perpetúa en forma de una foto-palimpsesto un encuentro imposible, en el que los rastros del pasado se perciben en la capa textual del presente” (FORNÉ, Anna, “El arte de la reversibilidad en cuatro relatos de familiares de desaparecidos”, Alternativas [online], 5, 2015. p. 5).

7 A propósito, comenta Mónica Alonso: “La artista recurre abiertamente a una ficción que no pretende ser ocultada y que deja su huella en la materia: como en las fotografías espiritistas, distintas materialidades pueden identificarse con distintos significados y tiempos. La foto original se transforma en una diapositiva, en luz de nuevo, que al ser proyectada puede confundirse con la materia (la pared pero, también, el cuerpo del hijo) y, juntos, volver a impresionar la película. Se crea un nuevo espacio entre lo material y lo inmaterial (el cuerpo y la luz), entre la realidad y la ficción, entre el presente y el pasado. Un nuevo tiempo y un nuevo espacio imposibles, que no son ni del mundo indiferente del objeto material ni el sueño alucinado del fantasma” (ALONSO, Mónica, “Arqueología de la ausencia de Lucila Quieto: un viaje hacia la imagen imposible”. Espacio, tiempo y forma, 4, 2016. pp.183-184).

8 https://vivosrecuerdos.cl

9 https://www.youtube.com/watch?v=GHnwxftJwPA

10 BARTHES, Roland. “Retórica de la imagen”. Lo obvio y lo obtuso. Barcelona: Paidós, 2009.

11 O Estádio Nacional foi um dos primeiros centros de detenção, tortura e extermínio implementados pela ditadura de Pinochet. Foi utilizado para estes fins de setembro a dezembro de 1973.

12 https://www.youtube.com/watch?v=GHnwxftJwPA, segs. 36-38.

13 No contexto argentino, as obras de Pantoja e Quieto Edoardo Balleta soma a serie ¿Dónde están? (1989) do fotógrafo cordobés Res, Treintamil (1996) de Fernando González, Buena memoria (1996) de Marcelo Brodsky, Fotos tuyas (2006) de Inés Ulanovsky, El viaje de papá (2005) de Camilo Pérez del Cerro, Cómo miran tus ojos (2007) de María Soledad Nivoli, Recuerdos inventados (2002-03) de G. Bettini e Ausencias (2006) de Gustavo Germano, entre outros (BALLETA, Edoardo, “Ausencia, resto, objeto: una propuesta de lectura de la fotografía argentina post-dictadura”. Kamchatka [online], 6, 2015. pp. 741-764). No caso chileno, destacan-se as obras Retratos (1996) de Carlos Altamirano, Paine 1973-2006 (2006) de Cesar Scotti, El amor ante el olvido (2007-2008) de Claudio Pérez, Layelewün (2017) de Danilo Espinoza e Retratos de la memoria (2017) de Fernando Lavoz.

14 A iniciativa foi proposta como complemento à 25ª versão da “Marcha del silencio” e foi realizada por uma equipe conformada por Pablo Porciúncula, Annabella Balduvino, Ricardo Gómez, Cecilia Vidal, Elena Boffetta e Federico Panizza. Foi publicada na conta de Twitter @img_delsilencio, na conta de Facebook https://www.facebook.com/imagenesdelsilencio/ e no Instagram @imagenes.del.silencio.