Nº6 VIDAS ESCONDIDAS
Imagem do poço do elevador da GWL, 2019. Crédito: GWL.

Recusas, resistência e acolhimento alternativo: Artistas, práticas queer e Glasgow Women’s Library

Caroline Gausden

Não existe uma casa conceitual não ameaçada e não ameaçadora para o conceito da origem gay. Então, com ainda mais razão, temos que manter nossa compreensão da origem gay, da reprodução cultural e material gay, plural, multicapilarizada, vigilante, respeitosa e infinitamente valorizada.

Eve Kosofsky Sedgwick, Epistemology of the Closet1

Casas diferentes

Quando comecei a pensar a respeito deste artigo, imaginei que estaria escrevendo na Glasgow Women’s Library [Biblioteca de Mulheres] de Glasgow (GWL), onde trabalho atualmente como Agente de Desenvolvimento responsável por oferecer suporte a uma série de elementos de intersecção do trabalho da GWL relativos a programação, curadoria, parcerias e participação. Embora o edifício da GWL esteja situado em Glasgow, trabalhamos em toda a Escócia, realizando eventos com parceiros e em diversos locais rurais e urbanos, de festivais culturais a escolas e prisões. Muito mais do que uma biblioteca, a GWL é o único museu credenciado dedicado à história da mulher em todo o Reino Unido, com materiais arquivísticos e museológicos que fazem dela uma Coleção de Importância Nacional Reconhecida. Essas características e muitos outros prêmios e condecorações significam que o alcance da biblioteca é cada vez mais internacional, com pessoas de todo o mundo vindo visitar a coleção, além de exposições e eventos abertos a todos os interessados em aprender sobre a história e a criatividade das mulheres. 

  • Imagem de dentro do espaço da biblioteca principal, 2019.

Minha tarefa neste artigo será trazer algumas perspectivas a respeito de como a GWL, como um espaço híbrido, responde ao apelo da MESA para examinar o oculto na sociedade contemporânea.  Apresentando como uma casa nova e idiossincrática para práticas criativas múltiplas, espero que, ao explorar a GWL como uma casa alternativa, um conjunto de práticas feministas de acolhimento se revele, práticas que tornam visível o trabalho de hospitalidade, ao honrá-la enquanto reconhecem algumas de suas histórias violentas. 

Em vez de escrever de dentro do espaço da biblioteca e de suas exposições e coleções, tenho feito essa reflexão em momentos de pausa, longe de seus espaços físicos, enquanto todos nós experienciamos novas condições de vida em meio a uma pandemia. Vou aproveitar essa pausa como uma deixa para interromper minha escrita e, antes de mais nada, tentar reconhecer a mudança na minha própria relação com a GWL. Antes de fazer parte da equipe, fui uma pesquisadora e estudante de artes – tendo trabalhado em instituições de arte, escola de arte e universidade – que procurava intuitivamente conhecimentos que não tinha conseguido encontrar em instituições nas quais eu não me via nem me sentia vista, exceto pelas professoras com visão feminista, às quais sou muito grata. Foi preciso entrar no espaço alternativo da GWL para perceber e reposicionar essa invisibilidade como algo diferente de um modelo inevitável. Acima de tudo o que enumerei na introdução (eventos, exposições, materiais de acervo, livros etc.), a GWL proporcionou um espaço para a prática de uma escuta profunda. Devido a essa característica, a GWL passou a ser mais uma casa do que um local de trabalho. Nela, compartilho uma prática de acolhimento com muitas outras que, tendo chegado à GWL em diferentes momentos, passaram a se sentir igualmente conectadas. Por meio desse sentimento de estar em casa, pude começar a reconhecer e articular até que ponto me sentia desconfortável e desconsiderada em outros ambientes institucionais e a entender que se eu me sentia assim sendo uma mulher cis branca, privilegiada por ter acesso ao ensino superior, outras certamente sentiam o mesmo e de forma ainda mais intensa.

  • Antes de Women in Profile da GWL, 1987.

A história do espaço de escuta que é a Glasgow Women’s Library remonta a 1990, um momento em que Glasgow estava sendo reconhecida como Cidade Europeia da Cultura. Algumas artistas, incluindo Adele Patrick, cofundadora da biblioteca, estavam preocupadas com o fato de que essa visão de uma cidade criativa seria, sem uma intervenção significativa, uma história apenas dos homens de Glasgow, no “padrão branco e masculino”.2 Dessa preocupação surgiu a iniciativa Women in Profile, que teve como objetivo contar outras histórias, defendendo uma visão mais multifacetada da cultura. Women in Profile incluiu o projeto de arte inovador Castlemilk Womanhouse, que começou a criar um espaço separado para as mulheres locais explorarem sua criatividade de forma colaborativa, convidando mulheres artistas a morarem perto delas em uma casa vazia longe do centro da cidade em Castlemilk, o maior conjunto habitacional da Europa na época e uma área de grande privação. As artistas foram convidadas por meio de uma chamada aberta e selecionadas por mulheres locais de Castlemilk. Essa confiança na capacidade das comunidades periféricas de estarem no centro das decisões sobre cultura (em vez de serem simplesmente incluídas posteriormente) é importante. É uma das diversas características desse projeto que ainda são fundamentais para a GWL, ao lado do compromisso de proporcionar um espaço seguro, separado das tarefas domésticas e de cuidado, para as mulheres explorarem sua criatividade e se relacionarem. Esse compromisso envolve a compreensão das estruturas de suporte, muitas vezes invisíveis, necessárias para que as pessoas se sintam fortalecidas e encontrem sua voz. Paralelamente a isso, havia um entendimento de que a diversidade de perspectivas era vital (e uma confiança no que a diversidade tem a dizer). Castlemilk era um espaço de encontro heterogêneo para mulheres de diferentes classes sociais. Ao longo dos anos, esse anseio inicial por diversidade que buscou inicialmente trabalhar para além das divisões de classe e gênero se expandiu, constituindo um valor central – ao lado da igualdade – que molda não apenas o espaço da GWL, mas as ruas de sua cidade anfitriã (que foram criativamente remapeadas através de diversos tours sobre a história das mulheres), e chega a alcançar ainda mais na forma de um programa nacional de engajamento.

Para mim, esse detalhe específico em uma história de inovações é significativo, pois indica que o começo da GWL foi liderado por artistas. As artistas fundadoras do projeto Castlemilk – Rachel Harris, Julie Roberts e Cathy Wilkes – afirmaram que a criatividade existe além de um pequeno cânone de artistas e locais no centro da cidade. Elas trabalharam para desmistificar o processo criativo, revelando suas estruturas de suporte ocultas. Iniciar uma conversa franca a respeito do processo criativo foi um ato de coragem das artistas que participaram e que também estavam inseridas em um mundo artístico que não estava preparado para tratar a arte como um ato social. Uma das artistas fundadoras, Rachel Harris, colocou sua carreira em risco ao pedir a seus orientadores que considerassem Castlemilk como parte de seu trabalho de final de curso. Eles responderam que aquilo não era arte, mas trabalho social. Ações de artistas como Rachel Harris, Julie Roberts e Cathy Wilkes, bem como muitas outras que se juntaram a elas, abriram o caminho para uma compreensão mais ampla da arte que floresce na cena artística de Glasgow atualmente e para a conexão com práticas ativistas. Além desse projeto inovador, gostaria de mencionar mais um ato de coragem em relação à história da GWL. Esses dois momentos vão ajudar a estruturar uma reflexão sobre o nosso trabalho atualmente, 30 anos depois, com destaque para uma exposição recente que tratou dos atos pouco visíveis que tornam possíveis novas práticas de acolhimento.

  • Pôster do Manifesto Dyke do acervo lésbico.

Assumindo-se, apesar de tudo

Em 1995, embora ainda fosse uma organização totalmente voluntária, a GWL se tornou guardiã de uma coleção expressiva da história lésbica ao decidir abrigar o Centro de Informações e Acervo Lésbico nacional (LAIC), com sede em Londres, o qual estava correndo risco de fechar. Para o LAIC, era importante que a coleção permanecesse dentro de uma comunidade de pares para que as futuras usuárias pudessem acessar e tirar força de seus materiais sem enfrentar muitas das barreiras que outros ambientes institucionais apresentam. Sue John, integrante da equipe da administração sênior ao lado de Adele Patrick, descreve o processo de convencimento das organizadoras do LAIC de que havia lésbicas em Glasgow, e Adele também se lembra de que lésbicas voluntárias foram levadas às lágrimas ao desembalar os materiais que chegavam. Adele descreveu a ocasião como “um assumir-se institucional” e um “ato de coragem”3 em um momento em que os debates sobre a Seção 28, a lei que tornava ilegal a promoção de materiais homossexuais no Reino Unido, se acirravam. A Seção 28, parte da Lei do Governo Local de 1988, revogada pelo Parlamento Escocês apenas em 2000 e pelo resto do Reino Unido em 2003, fez com que muitos grupos LGBTQI fechassem ou limitassem suas atividades e gerou muita hostilidade contra essas vozes marginalizadas no público e na imprensa. Apesar dessas hostilidades, a GWL seguiu adiante não apenas abrigando essa coleção importante, que ainda hoje representa mais de um terço do acervo, mas também colocando-a no centro do seu primeiro projeto financiado, Lips (Lesbians in Peer Support), por entender, como observou Adele Patrick, que: “havia um trabalho a ser feito para garantir que esse recurso de importância nacional se tornasse próprio, fosse usado e passasse a ser uma fonte de orgulho para as mulheres jovens e para que as histórias empoderadoras encontradas em toda a coleção fossem libertadas”.4

O LAIC tinha a opção de abrigar sua coleção em um contexto acadêmico, muitas vezes tido como a escolha mais segura, mas a decisão pela GWL refletiu um desejo de que o acervo permanecesse continuamente ativo em vez de ser retirado para se tornar história no sentido linear; distante e separado das questões do presente. A diferença é, então, entre estar dentro do armário ou fora dele, no mundo.

Conhecimentos enrustidos

Essa saída (do armário) se coaduna com reflexões recentes da estudiosa feminista Claire Hemmings sobre o que uma abordagem queer pode significar, não apenas para as histórias lésbicas, mas também, de forma mais ampla, para as circunstâncias sociais e políticas em que nos encontramos. Em uma apresentação online na Escola de Verão de Sexualidade da Universidade de Manchester, Claire pondera que as práticas de cuidado e educação da comunidade queer oferecidas em resposta à crise do HIV devem ser reconsideradas à luz das novas ameaças virais que estão moldando o presente.5 Ela menciona as diversas configurações familiares formadas pelas pessoas queer à margem da sociedade com o intuito de tratar do vírus HIV em comunidades de cuidados em vez de fazê-lo por meio de restrições. Desafia, então, a associação do risco a pessoas e identidades no lugar de associá-lo ao comportamento. Essas famílias diversas são assim consideradas em comparação à família conservadora tida como um local de abrigo. Claire desconstrói o chamado “retorno à família” como uma solução que só funciona para uma minoria, excluindo muitas pessoas por raça, classe e gênero. Uma pequena lista de alguns dos excluídos torna as desigualdades que estruturam a vida muito claras: pessoas queer que podem ter sido hostilizadas em famílias tradicionais; comunidades de migrantes e refugiados; e mulheres e minorias étnicas cujo trabalho mal pago e desvalorizado as mantém no mundo e faz o mundo girar. Em resposta a essa situação, Claire cita a escritora e teórica queer Eve Kosofsky Sedgwick, que explora a metáfora do armário como uma espécie de segredo conhecido da desigualdade posto à vista de todos. Pelo armário, desequilíbrios de poder são negados por uma ignorância construída que possibilita a continuidade de pressupostos homofóbicos e racistas. Em oposição a isso, Eve nos encoraja a desafiar essas negações e a recusar-se a colocar o conhecimento sobre as desigualdades de volta no armário.

Protesto contra uma nova biblioteca de Lesbian Avengers, em The Pink Paper, 1995. Crédito da foto: GWL.

A Seção 28 é um exemplo de como essa ignorância construída foi aplicada por meio de políticas públicas. Como pode ser visto na história do Acervo Lésbico, é também um exemplo de como a GWL atuou para cultivar muitas recusas a colocar esse conhecimento no armário, não apenas priorizando o acesso com suporte à coleção, mas pelo trabalho ativista, incluindo a criação de uma filial em Glasgow de Lesbian Avengers, incluindo suas próprias vozes a esse acervo importante e indo contra a ideia de que um museu deveria ou poderia ser neutro.6

Junto com as recusas, Eve também exalta as formas pelas quais as comunidades excluídas criaram “conhecimentos virais” e “circuitos de intimidade” alternativos por meio do cultivo de histórias compartilhadas que emocionam de formas diferentes (Hemmings after Sedgwick, 2020).7 A coleção LAIC da GWL não é apenas valiosa objetivamente (o que ela é), mas ela não mantém distância. Na contramão das tradições ocidentais de pensamento que defendem a objetividade, Adele Patrick afirma que se sentir palpavelmente afetada pela história, ser levada às lágrimas por comoção, talvez seja o traço mais valioso de um acervo. Por ser pessoalmente importante, a história parece passar a ser propriedade coletiva, a ser estimada. Também se afasta de um senso de autoridade singular que outras coleções têm às vezes. Como o trabalho inicial em Castlemilk, que teve cocuradoria da comunidade, a coleção é uma colaboração em constante evolução, totalmente baseada em doações de inúmeras pessoas e diferentes grupos de interesse. Assim, não pretende ser definitiva, mas, em vez disso, por ser multifacetada, ela tem uma característica radicalmente aberta. As lacunas na representação são reconhecidas livremente e aquelas que trazem conhecimento experiencial dessas lacunas são valorizadas e apoiadas para desenvolver novas facetas da coleção. Essa abordagem não é apenas generativa, mas alinhada às ideias de Eve Sedgwick sobre a sensação de ameaça. Sentimentos fortes em relação a uma coleção e o cultivo de muitas vozes dentro dela são duas formas extremamente produtivas de evitar ameaças existenciais.   

O trabalho de Eve Sedgwick sobre abordagens queer a respeito do conhecimento também é extremamente útil, pois confere a conceitos como o armário um significado mais amplo além da referência à sexualidade. Revela a complexidade, afinidade e falta de igualdade que muitas vezes se escondem por trás de categorias binárias. A GWL usa essa abordagem queer além de seu trabalho como guardiã de partes importantes da história LGBTQI. A perspectiva de Adele sobre a inclusão traz isso. Considerando a narrativa dominante sobre a inclusão, no sentido de que há comunidades difíceis de alcançar, a GWL inverte isso ao sugerir que as comunidades chamadas marginais não são difíceis de alcançar, mas fáceis de ignorar. Além disso, quando a perspectiva dominante olha para elas, o que vê são categorias distintas de pessoas, mães solteiras, minorias étnicas, pessoas com deficiência, mas não indivíduos que têm necessidades complexas que se cruzam e um manancial de experiências que podem ser libertadas. Desde o início, a GWL foi concebida e construída em torno do aproveitamento dessas vozes diferentes e diversas. A facilidade de ignorar é o segredo conhecido da desigualdade no setor museológico e cultural, no qual as ofertas culturais supostamente universais só encontram eco em uma minoria de pessoas. O trabalho árduo de ouvir e abrir espaço para que diferentes vozes contribuam para os espaços culturais a partir de uma posição de igualdade tem sido falho.

Interdependências

Espera-se que, a partir dessa breve história, esteja claro que a GWL foi concebida de forma contracultural em torno da missão de tirar do armário perspectivas diferentes e fáceis de ignorar, e que a natureza inovadora da abordagem curatorial e arquivística da GWL está ligada à sua história como um espaço queer liderado por artistas. Nesse caso, o posicionamento queer da GWL se revela não apenas ao defender a sexualidade lésbica em um momento repressivo, mas ao ir contra a corrente do conhecimento convencional sobre para quem é a cultura e quem é difícil de alcançar de uma forma que revela as desigualdades ocultas nas quais se baseiam essas suposições. Seguindo Eve e Claire, gostaria de analisar como essa abordagem queer é uma perspectiva útil para, a partir dela, observar os experimentos artísticos contínuos no espaço da biblioteca e na coleção. Ao olhar dessa forma para as origens e práticas contemporâneas da GWL, também estou replicando uma metodologia central da GWL. Isso compreende, em primeiro lugar, ver a história como tendo relevância e impacto contínuos no momento presente e, em segundo lugar, estar determinada a moldar qual seria o impacto dessa história por meio da prática coletiva, iterativa e evolutiva.

Quero examinar essa ideia de casas diferentes, que encontram tanto eco no momento atual, e modos relacionais praticados na GWL analisando uma exposição recente chamada Spoon is the Safest Vessel, que convidou três artistas, Juliane Foronda, Kirsty Russell e Tako Taal para fazerem obras novas como reação à exploração feita por elas da coleção. Como se vê nas descrições de Castlemilk, esse convite, feito de forma aberta por um espaço liderado por artistas para outras artistas, é uma prática que é própria da GWL, sendo uma das formas de atuação da sua natureza iterativa, evolutiva e coletiva.

  • Livro de visitas do acervo da GWL, foto de Juliane Foronda, 2019.

Spoon is the Safest Vessel foi uma exposição sobre acolhimento que teve como objetivo explorar as relações de poder nos atos de hospitalidade, questionando acerca do trabalho de acolhimento, tantas vezes escondido, e seus limites dentro de um contexto feminista. O trabalho também foi realizado com a intenção de se deslocar para o espaço do projeto Look Again em Aberdeen. Portanto, desde o início, equilibrou reflexões sobre acolhimento com considerações em torno do movimento de pessoas e objetos. A exposição começou com a artista, organizadora e escritora filipina-canadense Juliane Foronda. Enquanto se dedicava a um longo período de pesquisa no acervo da GWL, Juliane foi atraída pelos diários manuscritos e pelos livros de receitas idiossincráticos que temos nas seções de nutrição e culinária da nossa coleção, lembranças que costumam ser chamadas de “papéis de mulheres” na linguagem arquivística convencional, que também diz que não vale a pena guardar esses papéis. Baseando-se em testemunhos de arquivistas profissionais no contexto escocês, Sue John vê esse menosprezo como “prova da natureza institucional do expurgo das vidas, conquistas e contribuições históricas das mulheres”, com os papéis das mulheres sendo parte de um processo explícito de apagamento e “remoção” de gênero incorporado nas profissões relativas a coleções que trabalham na Escócia.8

Desses “papéis de mulheres”, catalogados e valorizados na GWL, Juliane me mostrou uma série de cadernos intrincadamente remendados com receitas e recortes, que se expandiam para os lados e chegavam a ser poéticos em alguns momentos – embora provavelmente não tenham sido concebidos dessa forma. Discutimos juntas os traços artesanais evocados por eles, desde a caligrafia lindamente desenhada, até as mãos como uma forma de medir ingredientes, por exemplo, um punhado de farinha. Aprendendo por meio dos materiais, em relação às experiências pessoais, Juliane falou do hábito da sua mãe de dar receitas com descrições como um punhado de arroz ou da prática de usar garfo e colher – em vez de faca – para comer nas Filipinas. Pensei na expressão spoon-fed, ser alimentado de colher, e em como ela transmite o desprezo da nossa cultura pelo tipo de atividades básicas como o ato de amamentar, que nos mantêm vivos quando somos bebês. Isso não demonstraria o ressentimento para com aqueles que nos apoiam por inadvertidamente indicar nossa falta de independência? Essa teia de interdependência, revelada pelos restos materiais de acolhimento, incluindo esses livros de receitas intrincadamente montados, foi tida como algo a se esconder, assim como nossas instituições culturais optam por jogar fora “papéis de mulheres” que poderiam revelar seus vestígios.

Juliane também compartilhou as lembranças de livros de visitas e convites do acervo de Dorothy Dick, que foi motorista de ambulância na Segunda Guerra Mundial. Dorothy viajou pela Europa e deixou fotos e outros objetos fascinantes para sua filha, que acabou por doá-los para nossa coleção pública. Apesar de sua carreira como uma visitante que cuidava de pessoas em circunstâncias traumáticas, Dorothy é representada no acervo também como anfitriã, que cria livros de visitas, selos de cera e convites – elementos que podem ser vistos como as estruturas que possibilitam reunir as pessoas. À medida que se iniciou o isolamento social necessário, com a retórica da mídia em torno do vírus repleta de metáforas de guerra, lembrei-me dessa coleção que documenta muitos aspectos do trabalho de cuidado em uma situação marcada pelo conflito. Num momento em que o toque foi obrigatoriamente retirado e substituído, para alguns, por superfícies digitais lisas que privilegiam a visão e a voz, comecei a pensar em como um acervo poderia evocar o toque e nos lembrar das mãos que ainda trabalham a um alto custo para nos ajudar.

  • Method; Foronda (2019). Foto Suzanne Heffron.

Esses “acessórios” de hospitalidade, como Juliane chama os livros de visitas, convites e receitas que chamaram sua atenção, se situam entre categorias. Os cadernos, em particular, são uma forma pessoal de preservar um sistema de conhecimento difícil de rastrear, repleto de pequenos gestos difíceis de mensurar. Juliane examinou a etimologia de palavras como comprimir e preservar,que aparecem nesses sistemas e notou uma tensão. No ato de cuidar, a força é também necessária. É preciso aplicar peso e gastar tempo com previsão e planejamento, processo e gestação. O trabalho que ela produziu passou a existir fora desses sistemas, de modo que o acervo se infiltrou em outros espaços da biblioteca. O trabalho Method (2019) homenageou o trabalho contínuo através da confecção de diferentes conservas que eram consumidas no espaço de evento da GWL, às vezes por visitantes da exposição, mas em geral por funcionárias e voluntárias cujo trabalho de manutenção da GWL também foi reconhecido no processo. Outros espaços de bastidores essenciais para o acolhimento, incluindo a cozinha e os banheiros, receberam uma série de murais (Supporting Gestures), diagramas ampliados e simplificados de dobras de lençóis e guardanapos, aderindo às paredes em cores fracas. 

O que os murais expressavam era a natureza intermediária da hospitalidade, que acontece nas margens de tudo e como seus atos quase desaparecem, talvez por revelarem dependências e confortos a respeito dos quais achamos desconfortável falar. Juliane representou esses cruzamentos de formas diferentes. Em Slow Pressure, Wild Survival (2019), um cruzamento entre o exterior e o interior ocorreu através de uma coleção de flores selvagens e caídas de toda a Escócia que foram cuidadosamente prensadas em livros emprestados das prateleiras da GWL e, em seguida, transformadas em 94 broches e exibidos em uma caixa de objetos de museu. As flores se referiam a ecossistemas não cultivados e conhecimentos negligenciados que, no entanto, prosperaram e são agora homenageados na GWL. Os broches imitam uma forma que percorre todos os aspectos da biblioteca, desde coleções cheias de exemplos de ativistas até a prática de fazer broches com nome para todas que trabalham e são voluntárias no espaço. O broche é algo que fica muito perto da pele, declarando uma lealdade silenciosa a uma causa, e essa declaração silenciosa conecta você a outras pessoas por meio de vários pequenos atos de reconhecimento que constroem movimentos.9

  • compress(ed memory foam) Trechos de cartas, Juliane Foronda (2019). Foto Juliane Foronda.

O anjo da casa

A escrita de Juliane Foronda também fugiu do espaço expositivo na forma de uma série de cartas online (ou newsletters), que, inspirando-se em muitas cartas do acervo, compartilharam sugestões em relação aos ambientes construídos e cuidado, bem como às práticas de preservação e acompanhamento. Os leitores tinham que assinar as cartas que eram entregues nas caixas de entrada todas as sextas-feiras durante a exposição. Essa disciplina de compartilhamento ia na contramão de outras obras que corroboravam a maneira como os atos de acolhimento tendem a se esconder. Em vez disso, as cartas tinham um toque confessional já que Juliane expunha paixões impossíveis que a levaram a tentar “ser tudo inteiramente o tempo todo”.10 A escrita deu visibilidade aos sentimentos complicados, cansativos, desconfortáveis e francos suscitados por um estilo de vida cheio de mudanças, em que ela é muitas vezes a artista visitante e anfitriã que luta para “ocupar o espaço”.11Em alguns momentos, essa escrita íntima me lembrou de um texto que compartilhamos, escrito por Jan Verwoert, que trata dos fluxos de tempo social que entram na organização como uma temporalidade “de bastidores”. A escrita de Jan Verwoert é apresentada em uma compilação de práticas de arte contemporânea organizadas em torno do oferecimento de alimento, reunidas por Stephanie Smith e pelo Smart Museum of Art, em Chicago, intitulada Feast: Radical Hospitality in Contemporary Art.12 Apesar do enfoque da exposição nas práticas alimentares, o que Jan Verwoert comenta é algo que muitas vezes anda ao lado de corpos que nutrem, o que é, talvez, ainda mais difícil de identificar, uma espécie de diplomacia crítica que coloca as pessoas em relação umas com as outras de forma criativa. Esse é um tipo de trabalho cada vez mais realizado por artistas engajados em práticas sociais e certamente pioneiro das artistas que criaram as bases da biblioteca.13 No ensaio, Jan Verwoert descreve um “horizonte temporal” que é um trabalho de “cuidado constante” que envolve “comunicação social prolongada, preparação, administração e manutenção”, que é de longo prazo, contínuo e nada espetacular. Ele usa a ficção de Virginia Woolf como um foco, descrevendo como, por meio da figura da Sra. Ramsey e em sua própria escrita, a autora apresenta “um cenário para uma hospitalidade exemplar” em Ao Farol. Na ficção de Virginia Woolf, a Sra. Ramsey é o anjo da casa que mantém o próprio tecido social unido por meio de um “trabalho invisível constante” que “torna possível o convívio agradável”.14 O enredo revela um paradoxo significativo. Estando em toda parte, levando seu cuidado incessantemente a cada detalhe social, a Sra. Ramsey não está em lugar nenhum. A hospitalidade, ao que parece, é como a anfitriã, invisível para quem a recebe. Ausente por estar presente em todos os aspectos, engana, mascarando seu próprio trabalho na engenharia social para que a interação pareça fácil. É nesse aspecto, retratado como altruísmo abnegado, que Jan Verwoert percebe a ambivalência de Virginia Woolf, que reverencia o coração pulsante da dona da casa, mãe e anfitriã, e ao mesmo tempo a trai, tornando visível seu trabalho. Em um discurso na London and National Society for Women’s Service em 1931, posteriormente transformado no ensaio “Profissões para Mulheres”, Virginia Woolf, estando no limite entre um mundo tradicional e moderno – uma transição que provavelmente ainda estamos vivenciando – torna essa traição aparente:

Naqueles dias – os últimos da Rainha Vitória – cada casa tinha seu Anjo. E quando comecei a escrever, encontrei-a nas primeiras palavras. A sombra de suas asas caiu sobre minha página; ouvi o farfalhar de suas saias no quarto… Virei-me para ela e agarrei-a pelo pescoço. Fiz de tudo para matá-la. Se eu fosse parar na justiça, alegaria que agi em legítima defesa. Se eu não a tivesse matado, ela teria me matado. Ela teria arrancado o coração da minha escrita. Pois, como descobri diretamente ao começar a escrever, você não pode revisar nem mesmo um romance sem ter opinião própria.15

Nesse ponto, vemos a natureza transgressora da ação de Virginia Woolf: ao matar a Sra. Ramsey em uma reviravolta na história, ela revela seu papel em tudo, mas também a impossibilidade de tentar “ser tudo inteiramente o tempo todo”, como observou Juliane, e manter uma vida criativa. O movimento inteligente de Virginia Woolf entre valorizar esses trabalhos ocultos e traí-los, tornando-os visíveis, é um ato de sobrevivência, mas também sem dúvida uma prática central para as formas de hospitalidade feminista. É parte de sua afirmação que, para a criatividade, as mulheres precisariam de Um Teto Todo Seu, algo que é tanto uma ocupação prática de espaço e tempo para estimular a criatividade quanto uma entrada simbólica na visibilidade.

Esse espaço independente de criação é algo que a professora Jane Goldman, uma especialista na escrita de Virginia Woolf da Universidade de Glasgow, viu na Biblioteca Feminina de Glasgow. Ao falar sobre a biblioteca, a cofundadora da GWL Adele Patrick escreveu: “O espaço que criamos é sem dúvida um local onde as mulheres podem criar, aprender (mas – o que é mais importante – [não] o espaço acadêmico [tradicional]) e se sentirem inspiradas, qualquer que seja sua história.”16 Quando Adele fala sobre esse processo de criação de tetos separados, um processo que possivelmente começou com o projeto de arte social em Castlemilk, é possível ver o movimento de Virginia Woolf entre a valorização da ingenuidade criativa das artistas originais e o reconhecimento do esgotamento e da exaustão inerentes a esses atos de acolhimento. 

Por fim, Juliane também escreve sobre bibliotecas:

Há algo nos livros de biblioteca que faz com que pareçam imediatamente familiar para mim… Gosto de como dá para rastrear os leitores anteriores através das páginas dobradas e com orelhas e diversos objetos deixados para trás como marcadores de lugar do passado. As páginas usadas parecem formar uma comunidade e me lembram que, quando nos reunimos, somos capazes de criar algo muito maior do que conseguimos individualmente, abrindo caminho para a nossa individualidade brilhar de uma nova forma.17

  • Padrão de costura do acervo, Kirsty Russell (2019) Foto Kirsty Russell.

Novos circuitos de intimidade e atenção

A ideia de livros como um meio de suporte é algo que eu já tinha explorado antes com a artista e organizadora Kirsty Russell, de Aberdeen. Antes de começar a trabalhar na GWL, dirigimos juntas um grupo de leitura porque estávamos ambas interessadas em como os livros, compartilhados entre as pessoas, poderiam ser um sistema de suporte, mas também queríamos saber o que eles tinham a dizer sobre suporte. Começando com a leitura de Support Structures (2009), de Céline Condorelli e Gavin Wade, aprendemos que as práticas de suporte são algo fora dos sistemas de conhecimento formais, não são de fato reconhecidas e não se escreve a seu respeito.18 Isso me fez pensar nas origens da GWL como um coletivo de vozes alheias, mas também, da artista como visitante/pessoa alheia que é continuamente mobilizada a mostrar os objetos da biblioteca sob um olhar diferente. Em um ensaio introdutório sobre o assunto, Céline Condorelli escreve por meio da metáfora de um andaime, que se posiciona necessariamente próximo ao que ele suporta e transita entre as categorias para sustentar os materiais de forma imperceptível.

A prática de Kirsty também transita entre categorias que produzem intervenções esculturais, projetos pedagógicos alternativos e colaborações participativas de longo prazo em ambientes de saúde e locais de democracia cultural que transbordam os limites das categorias descritivas discretas de arte e organização. Como um fio condutor desses diferentes modos de prática, a atenção de Kirsty está centrada no que ela chamou de “sustentações” que suportam a criatividade, levando seu trabalho para espaços formais e informais.19 De maneira semelhante a muitas artistas feministas, ela vê a cozinha como um lugar com potencial gerador. Foi lá que conheci Juliane quando Kirsty abriu as portas do seu apartamento em um projeto colaborativo que elas criaram juntas chamado How to be Closer (2018). Esse convite, juntamente com o acervo ativamente aberto da GWL, lançou as bases para aquelas primeiras conversas entre mim e Juliane. Além disso, a prática de compartilhar textos foi algo que Kirsty explorou com Tako Taal na exposição Palm (2017) exibida em Peacock Visual Arts no contexto de Aberdeen, uma cidade onde as estruturas de suporte para a criatividade são relativamente escassas. Essas conexões informais que criam um terreno familiar para conversas são deixadas de fora muitas vezes na descrição das raízes conceituais dos projetos. Com a ajuda de Kirsty, porém, comecei a ver isso como a estrutura para o trabalho; um conhecimento compartilhado que foi particularmente nutrido pelas intervenções criativas e convites de Kirsty. No contexto da prática de Kirsty, a criação de redes informais tem sido uma técnica de sobrevivência em um contexto onde as artistas enfrentam a marginalização por uma economia local que prioriza outros modos de produção (Aberdeen é a capital do petróleo da Escócia) e estão geograficamente distantes dos centros de trabalho artístico em Glasgow e Edimburgo. Enquanto a teórica cultural Eve Sedgwick aponta a fofoca como uma forma negligenciada de conhecimento usada por aquelas com acesso limitado a recursos, a prática de Kirsty também levanta a questão da amizade como um outro método informal de conhecimento e organização.

No acervo da GWL, Kirsty gravitou em torno das seções onde estão os padrões de costura e tricô e encontrou os jornais, recortes e esboços amarelados que ajudaram a criar formas finais – as partes normalmente descartadas de um processo criativo. Essas partes da coleção estão lado a lado com trabalhos de impressão contemporâneos, zines e materiais de ativistas que valorizam a costura como um dos muitos processos criativos subestimados. Além das lembranças de costura, Kirsty também estava ciente dos muitos momentos na organização quando as facilitadoras qualificadas da GWL se reúnem com grupos de mulheres para ler em voz alta, compartilhar experiências entre culturas, apoiar umas às outras para aprender coisas novas e planejar intervenções futuras. A resposta de Kirsty a esse trabalho foi apresentar Buffer (2019), um tapete circular tufado à mão que poderia ser movido pela biblioteca e usado por qualquer pessoa que precisasse de um espaço de descanso ou de reunião. Era importante para Kirsty que, quando não estivesse em uso, o Buffer fosse guardado enrolado de modo que fosse possível ver a parte inferior e as costuras que sustentam a peça. Da mesma forma que Juliane enxergou mãos no acervo, elas também aparecem no trabalho de Kirsty por meio de uma exposição desses sinais de trabalho. Elas também dão a medida para os tipos de trabalho de suporte, aparecendo em vídeos em que vão tateando as superfícies e em imagens que indicam espaços.20

  • Threshold, aço, Kirsty Russell (2019). Foto Suzanne Heffron.

Por mais que a exposição de trabalhos reverencie diferentes tipos de trabalho criativo, é também uma recusa similar àquela de Virginia Woolf: permitir que o trabalho de suporte permaneça oculto. Assim, a prática de Kirsty atua de forma a redesenhar os limites, bem como cruzá-los. O recusar e redesenhar talvez estejam melhor representados na obra Threshold (2019), um pequeno portão de aço que ela instalou na biblioteca ao lado do Buffer (2019). O título dessa obra apela ao meu imaginário de que a hospitalidade ocupa uma zona fronteiriça, sendo um encontro entre o interior e o exterior que estabelece relações de poder entre quem convida e quem é convidado. Além de oferecer aconchego e conforto, a hospitalidade também se destaca por sua proximidade com a palavra hostilidade. Pode-se considerar que os hóspedes fazem os anfitriões de refém. Threshold se situa entre o impulso de acolher e de estabelecer limites, evocando as barreiras que são criadas quando as relações de poder são desiguais. Pelo trabalho na GWL, consigo enxergar como há uma negociação contínua entre essas considerações concorrentes – oferecer uma recepção calorosa que quebra barreiras, mas também estar ciente da nossa capacidade de acolher de maneiras significativas.

Um pouco mais longe do Buffer, Kirsty também instalou uma terceira peça, Rug Beater (2019), que indica outro aspecto da hospitalidade que agora é de extrema importância: a limpeza. A ferramenta improvisada de Kirsty se refere a um batedor de tapete semelhante que faz parte da coleção do museu. No passado, exibimos esse batedor de tapetes mais antigo em relação a campanhas de tolerância zero, protestando contra a violência às mulheres, a fim de levantar questões em torno da história dos objetos e trazer à tona preocupações sobre os museus que mantêm essas histórias escondidas ao reivindicar uma postura neutra em relação à sua coleção. Por meio dessas conexões, Rug Beater, consequentemente, coloca a questão da violência em relação à prática do acolhimento.

  • Spit-breath-scan, impressão digital, Tako Taal (2019). Crédito fotográfico Suzanne Heffron.

Histórias violentas

Desde a minha primeira conversa com Juliane, onde ela mencionou as colheres como a melhor forma de levar comida à boca sem deixar cair, percebi que não se tratava apenas de objetos, mas da relação deles com nossos corpos. Estávamos nos questionando sobre a nossa proximidade com os objetos, como Kirsty faz em seu trabalho. Isso me fez lembrar muito claramente de um vídeo chamado Table d’hôte (2017), feito por Tako Taal, que foi produzido enquanto ela estava na residência na Escola de Hotelaria e Turismo de Gâmbia, quando juntou as pistas e registros da sua história pessoal em um processo silencioso de testemunho (o pai de Tako é da Gâmbia, e sua mãe é do País de Gales, onde ela nasceu) com implicações políticas. Nessa obra, vemos mãos pretas organizando meticulosamente talheres em hierarquia sobre uma mesa em configurações familiares. Convidei Tako para falar com Juliane sobre a possibilidade de exibirem as obras juntas e com Kirsty, que as havia apresentado. Falamos sobre a residência de Tako na Escola de Hotelaria e Turismo de Gâmbia e as tradições de hospitalidade europeia ensinadas nessa instituição da África Ocidental, levantando questões sobre a continuação do colonialismo em diferentes formas, bem como o seu fascínio e experiência vivida de como as pessoas passam a compreender culturas que não vivenciaram diretamente por meio de seus objetos. Tal como acontece com as narrativas de hospitalidade, a obra de Tako aponta para histórias do imperialismo que não são visíveis sem um estudo cuidadoso da maneira como as pessoas se deslocam ao redor do mundo, deixando diferentes marcas.

Tako recomendou um livro que temos na coleção da GWL chamado Imperial Leather (1995), de Anne McClintock, que traça uma forte conexão entre as histórias de servidão doméstica no Reino Unido e o colonialismo.21 Percebi um interesse comum de Tako Taal e Anne McClintock nas mãos que realizam esse trabalho. Enquanto Anne McClintock escreve sobre mulheres da classe trabalhadora que fizeram da realização visível do trabalho manual parte das estratégias de resistência, Tako Taal menciona que, no Gabão, mãos macias foram desprezadas por não terem enfrentado trabalho suficiente. Tako manifestou interesse em como isso se traduz em toque, sendo o áspero e o liso “superfícies que denotam uma posição”.22 Além de tratar da política de resistência, o livro aborda os rituais de limpeza que foram realizados para marcar as fronteiras na Grã-Bretanha vitoriana, concebidos, em parte, para tentar reafirmar a hierarquia enquanto o mundo estava se abrindo para uma infinidade de diferenças. Anne McClintock traça a história da publicidade e seus primórdios por meio do sabão – que foi um dos primeiros produtos a ter marca e ser comercializado em massa – apresentando narrativas racistas de uma Grã-Bretanha que limpava as colônias. Essa história, que liga o trabalho de limpeza intimamente à violência colonial, encontrou eco em nós naquela época e encontra agora, como observou Claire Hemmings, quando as desigualdades negadas que estruturam nossa consciência foram trazidas à tona pelo novo coronavírus, mais um visitante hostil. E que símbolo poderia ser melhor para pensar a respeito da desigualdade atualmente do que a superfície lisa do sabão?

  • A body, texto em vinil na janela, Tako Taal (2019). Crédito da foto Juliane Foronda.

Além da migração e limpeza, falamos sobre remédios caseiros e saúde pública – com suas práticas de inspeção e policiamento de fronteiras. De uma forma estranha, a imaginação de Tako traçou momentos em que as coisas se derramam ou são contidas, preocupações que se mostraram pertinentes para além dos limites da exposição. Complementando as explorações feitas por Kirsty e Juliane de objetos como suportes materiais, Tako trouxe o corpo humano para o espaço de exposição de maneira visceral e poética por meio de uma série de litografias intituladas Spit-breath-scan (2019) e do texto em vinil A Body (2019). Instalado em uma das grandes janelas do espaço principal de eventos da GWL, sobre uma grade que remete a um medo residual da violência nas margens de um espaço acolhedor e convidativo, A Body (2019) trata de questões muito reais como a linguagem, a respiração e as lágrimas que ultrapassam os limites dos objetos e das pessoas à medida que existimos no mundo, encontrando uns aos outros e deixando coisas para trás. Posicionada em frente à luz em constante alteração de Glasgow, a obra me parecia uma espécie de negociação contínua com condições que estão além de si mesma. Essa intervenção poética no espaço da GWL me fez lembrar que a improvisação trabalha com o que está à mão, mas também me remeteu a alguns escritos sobre o tema da hospitalidade da filósofa francesa Anne Dufourmantelle.23 Essa filósofa descreve o visitante como alguém que navega por um território no escuro, tateando um ambiente desconhecido.   

Tako Taal ressaltou para mim que os escritos de Anne Dufourmantelle sobre hospitalidade também mencionam que, nas sociedades primitivas, os rituais, textos e artefatos muitas vezes compartilhados, e talvez como preocupação principal, tratam da morte e da hospitalidade. Gosto da maneira como Anne dá ao tema uma seriedade que normalmente ele não recebe devido à sua proximidade com essa outra migração importante entre a vida e a morte. Paralelamente a isso, ela reflete que em geral são as pessoas que sabem o que é não ter um lar que oferecem as formas mais calorosas de hospitalidade aos outros.

Esse último pensamento de Anne Dufourmantelle talvez seja o ideal para concluir, pois serve de base para entender o que essas práticas que temos explorado – desde Virginia Woolf passando pelas artistas da GWL, Rachel Harris, Julie Roberts, Cathy Wilkes, e Adele Patrick e Sue John, as anfitriãs que permanecem, até as artistas emergentes Juliane Foronda, Kirsty Russell e Tako Taal – podem ter em comum. Juntas, essas artistas apontam na direção de formas de acolhimento mais radicais, toda a parte de organização, limpeza, cozinha e suporte que mantém uma tensão entre reverenciar e criticar os modos pelos quais os espaços de criatividade são produzidos e mantidos. Escrever sobre quem sabe o que é não ter um lar nos remete aos escritos de Claire Hemmings e Eve Sedgwick sobre subjetividades queer, mas também sobre diáspora e comunidades de refugiados. A sugestão de Anne Dufourmantelle traz uma inversão, aparece em oposição à ideia onipresente de que é a dona da casa, dona do espaço, que é a anfitriã, permitindo que as pessoas cruzem um limiar e estabelecendo toda uma cadeia de atividades em torno do comando e o papel de anfitrião. Em vez disso, ela abre espaço em nossa imaginação para um tipo diferente de anfitriã ou, na verdade, hospitalidades plurais. Quando penso nessas anfitriãs que são as primeiras convidadas (e nem sempre bem-vindas), fico impressionada com a forma como a imagem se harmoniza com as práticas que observei, incluindo a própria GWL como uma espécie de escultura social iniciada por artistas. Essas artistas trabalham para tornar o oculto visível, muitas vezes oferecem suas próprias inversões ao conhecimento recebido, inclusive quando apontam para o que tem sido ignorado. Elas também percorreram muitos caminhos para nós, especialmente construindo instituições públicas que nos fazem sentir em casa. Esse trabalho revela o tipo de hospitalidade que oferecemos na biblioteca: uma hospitalidade que inverte as relações de poder, permitindo que aquelas que tradicionalmente são alheias tenham protagonismo como anfitriãs e reverenciando todo o trabalho oculto que o acolhimento envolve.

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Caroline Gausden
É escritora e curadora que vive em Glasgow, tem PhD em Manifestos Feministas e Prática de Arte Social pela Gray’s School of Art, Aberdeen, e atualmente trabalha como agente de desenvolvimento de programação e curadoria na Biblioteca Feminina de Glasgow.  


1 SEDGWICK, Eve Kosofsky. Epistemology of the Closet. University of California Press, 1990.

2 Ouvi Adele Patrick usar essa expressão pela primeira vez em um evento em Seventeen, Belmont Street, Aberdeen, em 2015, ao falar sobre o início da GWL como parte de um evento da Scottish Contemporary Art Network.

3 PATRICK, Adele. “Claiming Space and being Brave:Activism, Agency and Art in the Making of A Women’s Museum.” In: Ashton, J Museums Etc. (Org.) Feminisms and Museums | Intervention, Disruption and Change. Volume 1. 2017. p.163

4 Ver a referência acima.

5 HEMMINGS, Claire. Revisiting Virality (After Sedgwick), 2020. Pode ser acessado no site da Escola de Verão de Sexualidade da Universidade de Manchester https://sexualitysummerschoolonline.wordpress.com/clare-hemmings-on-queering-the-archive/

6 Lesbian Avengers foi iniciado por um grupo de ação direta na cidade de Nova York em 1992, mas rapidamente se espalhou e virou um fenômeno mundial com filiais em muitos lugares depois que uma marcha de gays e lésbicas em Washington em 1993 mobilizou 20.000 lésbicas para reivindicar maior visibilidade.

7 HEMMINGS, Claire. Revisiting Virality (After Sedgwick), 2020.

8 Sue John conecta essas observações a um artigo escrito pelo arquivista Alistair Tough chamado “Thinking about and working with archives and records: a personal reflection on theory and practice”.Falando sobre sua própria experiência, Alistair lembra que um colega veterano deu a ele dois conselhos memoráveis na sua primeira semana como arquivista profissional em 1975. Em primeiro lugar, foi dito a ele para nunca perder tempo com papéis de mulheres. Em segundo lugar, ele foi aconselhado a se certificar de que qualquer coisa da qual ele decidisse se desfazer fosse realmente destruída de forma a não sobrar nenhuma prova, para que os historiadores não viessem a criar caso a esse respeito no futuro. O artigo de Alistair Tough foi impresso no Journal for Archives and Records, Volume 37, 2016, Edição 2 https://doi.org/10.1080/23257962.2016.1147343

9 A Fig. 23 mostra uma imagem de Badges of Honour: projeto sobre como o uso de broches pelas mulheres mudou o mundo – um projeto financiado pela Heritage Lottery que explora o uso de broches por mulheres. A Biblioteca tem uma coleção fantástica de broches que mostra as causas às quais as mulheres têm se dedicado, do direito de voto ao ativismo pela paz, do antiapartheid à luta contra a violência doméstica. Badges of Honour coletou broches femininos e as histórias maravilhosas ligadas a eles. O projeto recebeu Menção Honrosa de UK Women’s History Network Community Prize e de UK Collections Trust na categoria de Prêmio “Enterprise in Museums” M. Zechner, P. Rojo, A. Kanngieser

10 Citação extraída de um trecho das cartas de Julianne Foronda, Compress(ed memory foam) (2019), o sentimento aparece na carta Holding (on and missed) connections. Cópias de todas elas podem ser acessadas online em https://us20.campaign-archive.com/home/?u=fa97a27fec7f1a92e796b3a70&id=33ed99aef2

11 Como acima, essa citação foi extraída da mesma carta escrita por Juliane Foronda em 2019.

12 VERWOERT, Jan. Feast: radical hospitality in Contemporary Art. SMITH, Stephanie S. (Org.). Chicago: Smart Gallery Chicago: SMART Museum of Art / Universidade de Chicago: 2013. p. 361.

13 Agradeço à Jessica Gogan por ressaltar o uso que Janna Graham faz da palavra diplomacia para descrever esse tipo de trabalho ao escrever sobre diplomacia radical no ensaio “The Committee for Radical Democracy”, In: ZECHNER, M., ROJO, P., KANNGIESER, A. (Orgs.). VOCABULABORATORIES. (código aberto) 2008. p.99. https://archive.org/details/VOCABULABORATORIES/mode/2up Além disso, ideias sobre o trabalho de bastidores aparecem nos escritos da artista Chu Chu Yuan, que concluiu um doutorado em torno de sua prática como uma forma de negociação que atentou a esses processos de negociação. O trabalho foi intitulado Negotiation-as-active-knowing: an approach evolved from relational art practice. Robert Gordon University, tese de doutorado. 2013.

14 Jan Verwoert citado na obra mencionada acima Feast: radical hospitality in contemporary art.

15 WOOLF, V.; BARRETT, M. L. Virginia Woolf: on women & writing. Londres: Harcourt, 2001. p. 57-63

16 Tomei conhecimento dessa observação em Claiming Space and Being Brave: Activism, Agency and Art in the Making of A Women’s Museum, em que Adele Patrick escreve: “Eu comecei a ver a transferência espacial da GWL como uma manifestação de um Teto ou Tetos [Todo(s)] Seus(s) coletivo(s) de Virginia Woolf. (WOOLF, 2002). Não sou estudiosa de Virginia Woolf, fui impulsionada nessa linha de pensamento em discussões com a Professora Jane Goldman, apoiadora da GWL e especialista na autora.”

17 Citação tirada de um trecho das cartas de Julianne Foronda Compress(ed memory foam) (2019), aparece na carta page curls like roof shingles. Cópias de todas as cartas podem ser acessadas online em https://us20.campaign-archive.com/home/?u=fa97a27fec7f1a92e796b3a70&id=33ed99aef2

18 CONDORELLI, Céline; WADE, Gavin. Support Structures. Berlim: Sternberg Press, 2009.

19 Underpinning [Sustentação] é, na verdade, o título de uma plataforma discursiva que Kirsty Russell dirige, inicialmente no espaço público de The Anatomy Rooms, Aberdeen, e, atualmente, em seu próprio apartamento, como evolução da série levando a essa mudança de um espaço formal para um mais informal. 

20 Fig. 30. Mostra um still da Touch Studies, um trabalho encomendado para Dance Live 2017 pela City Moves Dance Agency SCIO. Touch Studies é uma colaboração entre as artistas Svetlana Panova e Kirsty Russell.
Os dois filmes de 5 minutos responderam a espaços dentro do local do festival, The Anatomy Rooms, que está situado no antigo edifício de Anatomia da Universidade de Aberdeen. As obras foram filmadas em espaços que anteriormente funcionavam como sala de dissecação e em museu. Durante o festival, um dos filmes foi exibido no banheiro masculino e o outro foi exibido no banheiro feminino.

21 O título completo do livro de Anne McClintock é Imperial Leather: Race, Gender and Sexuality in the Colonial Contest (Nova York: Routledge, 1995).

22 Tako Taal usou esse termo poético em uma conversa comigo pouco antes de eu começar a escrever este artigo – com a mudança para o espaço digital, estive pensando sobre as superfícies suaves da internet e como necessariamente nos afastamos do toque em nossas interações, mas também em como as mãos que realizam todos os tipos de trabalhos fora da tela (tem gente que está cuidando, embalando, entregando e limpando) não são imediatamente visíveis.

23 DUFOURMANTELLE, Anne; DERRIDA, Jacques. Of Hospitality. Stanford: Stanford University Press, 2000.