Nº6 VIDAS ESCONDIDAS
Printscreen do encontro de Diego Zelota, Izabela Pucu, Thiago Haule e Sandro Rodrigues no zoom, agosto de 2020.

Vidas escondidas que revelam vidas escondidas na Pequena África: um diálogo entre Diego Zelota, Izabela Pucu, Thiago Haule e Sandro Rodrigues1

Sandro Rodrigues – Estou falando aqui do alto da colina, do pitoresco bairro do Santo Cristo, zona portuária do Rio de Janeiro. Santo o quê? São Cristovão? Não, Santo Cristo! E onde fica isso? É até vizinho de São Cristovão, mas são bairros totalmente diferentes. Pra não ter erro, Santo Cristo é onde está a rodoviária Novo Rio, conhece? Toda essa região do entorno até o viaduto da Apoteose do samba, incluída aí a colina onde estou, fazem parte do bairro. A propósito, a colina tem nome: Morro do Pinto. Lugar “onde a natureza se torna mais bela”, de acordo com um samba local.2 Essa confusão quanto à localização é recorrente quando tratamos sobre o bairro, porque, apesar ser um dos bairros que compõem a chamada Pequena África, este pedaço da região foi esquecido, não foi contemplado com as prometidas melhorias que viriam com a revitalização da região portuária. Assim quase nunca se ouve falar, poucos sabem da existência do Santo Cristo. Porém, olhando por outro ângulo, até que este anonimato tem algo de positivo. De certo modo, ele preserva certas características e aspectos locais com os quais somente aqueles que estiverem dispostos a encarar a jornada rumo ao conhecimento de sua cidade serão premiados…Afinal, existe uma cidade viva e pulsante do lado de cá dos túneis, um mundo que permanece oculto para boa parte dos cariocas. Para isso, basta o mínimo de empatia.

Izabela Pucu – Pois é, eu tive o privilégio de ser levada por você e pela sua filha Marina para um passeio a pé no Morro do Pinto, de conhecer um pouquinho desse bairro incrível, de ver ângulos que bagunçaram minha orientação da cidade, de olhar de perto o lugar que eu só conhecia de nome, pelo relato de vocês, pelas suas fotos…

Sandro – E, sem dúvida, a melhor forma de conhecer um lugar é a pé. Quem só anda de carro não vê a vida que acontece do outro lado do vidro, no máximo enxerga uns flashes. É verdade que sou suspeito pra falar desse assunto, afinal são 41 anos engrossando as pernas subindo e descendo ladeiras. Mas é este sobe e desce, esse contato próximo e íntimo com a cidade que permite o estreitamento dos laços afetivos e o fortalecimento do sentimento de pertencimento ao lugar, seja ele qual for. Caminhar no morro é reencontrar uma cidade que vem desaparecendo aos poucos, engolida por novos e controversos modelos de habitação. É encontrar alguém com sua cadeira sentado na calçada lendo o jornal ou só “vendo a moda passar” mesmo. É apreciar os azulejos com os santos de devoção estampados nas casas. É dar bom dia “tia” ou, e aí meu “primo”, como se fossem todos parte de uma grande família! Problemas existem é claro, como em qualquer grande cidade do país, principalmente em seus bairros populares e periféricos. Apesar disso, seguimos em frente, sem esquecer o passado, que nos legou tudo o que somos e o que queremos ser. Diz um antigo rap que “o melhor lugar do centro de fato é o Morro do Pinto”.3 Concordo e assino embaixo! Ah, e não confundam Santo Cristo com São Cristovão, ok?    

Izabela – Sim…Morro do Pinto é no Santo Cristo e isso não se pode esquecer…é interessante, porque vocês três, cada a seu tempo e do seu jeito, tiveram um encontro ou buscaram o encontro com a arte. Vocês acham que esse encontro com a arte determina, marca uma diferença ou mudou a relação de vocês com o território em que vivem?

  • Sandro Rodrigues, Fachadas do casario no Morro do Pinto, Gamboa, Rio de Janeiro, 2018.

Sandro – Eu sempre gostei muito de fotografia e eu ando muito, como eu disse. Eu ando muito pela região, Saúde, Gamboa, Morro do Pinto e sempre me chamou atenção esse casario, esse ar provincial, de subúrbio que tem aqui. Sempre me chamou atenção a arquitetura, as ladeiras que aqui estão por todo o lado. Quando me formei em história em 2009 eu busquei um meio de aliar o conhecimento histórico com esse meu conhecimento pessoal visual, que estava dentro de mim desde sempre. Com 41 anos de morro, eu conheço cada paralelepípedo desse bairro e isso faz parte de mim, na verdade… os gradis das sacadas, o casario, os santinhos nas fachadas, tudo isso influencia muito o meu fazer artístico, que é a fotografia. Boa parte do que eu produzo é por conta dessa vivência no território. Isso é o que me move, me afeta mesmo. Desde pequeno eu gostava de desenhar, de tocar flauta, vira e mexe eu toco… eu já fotografava com uma câmera bem simples, mas em 2014 consegui comprar meu primeiro equipamento relativamente melhor. Então eu pensei que podia fazer algo com toda aquela bagagem visual que eu tinha da região, junto com a minha formação, ao unir história e fotografia.

Izabela – E como começou esse desejo de escrever sobre o território?

Sandro – Como conhecedor da região eu me dei conta de que o Morro do Pinto onde moro e nasci é um morro que na região portuária quase ninguém conhece. A gente conhece a história do morro da Conceição e da Providência, mas sobre o morro do Pinto não tem nada. Eu já catei e não tem. Então eu comecei a escrever, não uma história geral, cronológica, o que eu pretendo fazer em algum momento, mas eu preferi escrever a história do morro do Pinto a partir de alguns marcos, de lugares que eu conheço…Foi esse olhar para o território que me levou à fotografia, e a partir da fotografia eu comecei a escrever sobre a história do morro do Pinto. Eu sempre acreditei muito no que a gente chama de micro-história, da história contada a partir de certos locais e de pessoas desconhecidas, porque isso casava muito bem como o ambiente em que eu vivo. E normalmente os livros de história não se interessam pelos fatos que não têm importância no cenário nacional e mundial. Mas como morador do local eu decidi me aprofundar justamente nessas pequenas coisas do bairro, nas histórias que a gente descobre conversando com moradores aqui e acolá. Pode não ter grande valor para a história oficial, mas para a história do território eu acredito que tem grande valor. 

Izabela – É tão lindo esse seu gesto… tem gente que passa por esses mesmos casarios e não vê nada de mais, ou só vê coisas negativas, até porque existe um processo de depreciação da favela, de apagamento da riqueza cultural dos morros sendo feito todos os dias nos meios de comunicação, pelas pessoas em lugares de poder, e não deve ser fácil resistir a isso… ter esse olhar aberto para ver a poesia das pessoas e das coisas é mesmo algo muito representativo do que é ser artista, a meu ver… esse olhar que muda o valor das coisas e também essa disponibilidade para realizar um projeto pelo simples desejo de fazê-lo, por reconhecer a importância de colocar no mundo outras narrativas, de revelar o que não é visto normalmente.

Sandro – É mesmo uma vontade pessoal, mas também tem a ver com a minha formação. Talvez porque a Providência seja a primeira favela se tenha querido contar a história dela, mas o Morro do Pinto é esquecido, mesmo sendo parte da Pequena África. Grandes nomes do samba viveram aqui, as rodas de samba fervilhavam aqui nos anos 1970, os blocos do morro ganharam prêmios na década de 1980 e não tem nada oficial sobre isso, está apenas na cabeça e na vivência das pessoas daqui. Então eu pensei que eu precisava buscar isso antes que as pessoas não estivessem mais aqui e tudo se perdesse. Por exemplo, foi a pé que numa grata surpresa descobri o que restou da fundação da antiga Ponte dos Amores4, que desde o tempo do império ligava o Morro do Pinto ao da Providência. Caminhando mais alguns metros, surpresa! Você chega à Passarela do Samba! Poucos sabem, mas este pedaço de rua que fica do outro lado da estrada de ferro é a continuação da famosa Marquês de Sapucaí. Não menos importante é saber que nas imediações nasceu o mestre Ernesto Nazareth, o Rei do Tango Brasileiro. Pedacinho importante esse hein? Foi também ali perto que morou o comerciante Antônio Pinto Ferreira Morado, proprietário de terras nessa região, responsável pela abertura das primeiras ruas do morro ainda no século XIX e que, por consequência, deu o nome ao morro. Subindo a ladeira do Pinto, teste pra atleta nenhum botar defeito, a cidade se revela em ângulos que poucos já viram, um senhor prêmio àqueles que chegarem lá em cima.  Já pensou ter no mesmo quadro o Sambódromo, o Pão de Açúcar e o Cristo Redentor? Ou, girando 180 graus, Maracanã, Igreja da Penha e Ponte Rio-Niterói? Lá do alto isso é possível. Até que um jornal que encontrei em minhas pesquisas, de 1978, tinha certa razão quando dizia que o morro poderia ser uma nova “atração turística” com a inauguração deste espaço, considerado um parque-mirante. Faltou apenas avisar aos turistas. E se quiser “molhar a palavra” após apreciar a paisagem, que tal um daqueles botecos que ainda guardam em sua fachada o ano de sua última reforma? É bem provável encontrar alguém que vai te contar uma boa história, daquelas que fazem os lugares serem especiais.

Sandro Rodrigues, Fachada e sino da Capela da igreja de Nossa Senhora do Montserrat, Morro do Pinto, Gamboa, Rio de Janeiro, 2018.
Sandro Rodrigues, Fachada e sino da Capela da igreja de Nossa Senhora do Montserrat, Morro do Pinto, Gamboa, Rio de Janeiro, 2018.

Izabela – E é muito importante que se reconheça que cada um de vocês fez e faz o seu trabalho à revelia de ter uma formação específica para artistas, se é que ainda se pode falar nesse sentido… de ter inclusive garantidas as condições de vida que te permitissem destinar o seu tempo a isso, ter entrada no sistema hegemônico das artes…eu vejo esse gesto em vocês três, a escolha pela arte como esse gesto poético afirmativo, de emancipação existencial em relação aos estereótipos sobre o lugar em que vivem, sobre o que vocês podem ser ou fazer. Pelo que você conta, Sandro, a vida do Morro do Pinto é ela mesmo uma vida escondida que você está buscando revelar. A história que você conta tem apagamentos, tem violência, mas tem valor, poesia e beleza, tem produção cultural. Acho que isso também está no gesto de Diego e Thiago de inscrever seus trabalhos diretamente no território, nas paredes desse território, em diálogo com sítios históricos, como a Pedra do Sal, gesto que atualiza a simbologia desses marcos em meio à vida que acontece hoje na Pequena África. Uma afirmação frente aos investimentos governamentais mais desastrosos que historicamente e hoje não levam em conta as vidas desses locais, pessoas, movimentos, tudo é feito de lá dos gabinetes sem contato real com o território…eu sempre vejo as pessoas se deslocando a pé no viaduto que sai do túnel Santa Bárbara e passa entre os dois morros, mesmo correndo risco de atropelamento. Ou seja, as pessoas precisaram no passado e ainda precisam usar esse caminho que as leva mais diretamente à região da Praça 11, ao metrô. E o viaduto também precarizou a ligação entre os morros do Pinto e da Providência. Me parece ser algo simbólico dessa cisão que relegou o Morro do Pinto ao esquecimento na história oficial.

Sandro – Sim, é verdade. Esse caminho entre os dois morros é bastante antigo, se não me engano se chamava caminho do Saco do Alferes, que era o nome daquela região onde fica a Igreja do Santo Cristo. Eu vi em uma gravura do século XVIII esse caminho. Quando escrevi sobre a Ponte dos amores, que ligava os dois morros, Providência e Pinto, eu identifiquei também outros aspectos que contribuíram para essa separação. Muitos moradores da região acham que o morro do Pinto é lugar de gente que tem grana e tem preconceito com as pessoas daqui, porque a sua constituição foi mesmo diferentes da dos outros morros. Diferente das outras favelas da região – que cresceram segundo essa imagem que se tem das favelas, uma imagem de desordenadamento, porque as pessoas foram construindo e se instalando como puderam – o morro do Pinto tem ruas de cima a baixo, como eu disse anteriormente. É uma diferença geográfica, mas aqui é uma área de ocupação popular como as outras. Muita gente fala que aqui é como Santa Teresa, que também tem lado a lado ocupações populares e gente rica… mas sabe que em algum momento das minhas pesquisas eu vi um documento, um mapa antigo onde consta justamente que aqui foi chamado de Santa Teresa no século XVIII? É uma história na qual eu preciso me aprofundar, esse documento está em Portugal, mas tem mesmo alguma ligação.

Diego Zelota, Vista do Morro da Providência, s/d. Fotografias de longa exposição.
Diego Zelota, Vista do Morro da Providência, s/d. Fotografias de longa exposição.

Izabela – E você Diego? Como é que você vê esse encontro com a arte como algo que transforma ou define a sua relação do território? Desde os seus primeiros trabalhos até esse murão do Rua Walls5 que você e Thiago estão pintando, como foi esse caminho?

Diego Zelota – Eu estudei no Adro, que é um colégio público franciscano aqui da região, que é mais difícil de entrar, mas eu fui parar lá porque a minha mãe queria. Eu queria ter estudado no Licínio Cardoso, onde estava a nata de região, todo o mundo que conhecia, a galera que está por aí, que eu conheço e convivo. Lá era uma doutrinação diferente, tinha que cantar o hino, formar para entrar, não tinha aquela farra das outras escolas. Mas o que me apegava àquele colégio era a questão da arte. Eu tive um professor muito bacana de arte, até hoje eu tenho contato com ele, o Eduardo, mas eu sempre chamava ele de queridão. Ele casou com uma aluna, mora aqui na região, sempre passa pra me dar um abraço. Ele me incentivou muito. Ele era um cara super bacana e acho que ele jamais ia imaginar que Diego de Deus da Conceição, o trombadinha da turma, que tocava o terror, ia se envolver tanto com arte como eu acabei me envolvendo.

Izabela – Pois é, de novo o exercício da arte como essa ferramenta de quebrar esses limites, esses estereótipos… a arte como forma de educação que emancipa…

Diego – É, de se sentir dono do território…Existem outras pessoas que me incentivaram, entre elas o Eron, que talvez seja a mais importante referência que eu tenho. Eron além de professor é meu amigo, foi meu explicador por muito tempo e é o zelador da Capela principal aqui do Morro da Providência. Ele é um grande, um grande papeador, gosta muito de conversar e eu gosto muito de ouvir o Eron porque ele tem uma vivência muito grande da Providência, onde ele sempre morou, muito maior do que a minha. O Eron é uma grande enciclopédia de história, Sandro também já esteve próximo a ele. Ele me colocou uma vez como um sucessor dele, um griot6, um griô, como ele fala. Com Eron eu aprendi muito sobre a providência, sobre as divisões nesse território, sobre a Pedra Lisa que muita gente nem sabe que é uma parte dentro da Providência, sobre como as pessoas dos diferentes morros se relacionavam, sobre os conflitos, porque o morro não era de uma galera só… ele sem dúvida foi alguém que muito me envolveu com a questão da arte, com esse desejo de estudar, de conhecer, de querer saber mais sobre o meu território, de fazer um levantamento. Isso tem muito a ver com mural que eu vou fazer no Rua Walls. Eu vou reverenciar duas pessoas: um grande líder da resistência do Sindicato dos arrumadores, o estivador e sambista Aniceto, que muito estivadores não conhecem, Cláudio Camunguelo, sambista e estivador que passou por aqui quando o samba fervilhava nessa área (foi o Thiago que me apresentou a história dele), e o Candeia, que é mais conhecido. Eu sou filho de um estivador. A maior parte dos trabalhadores da estiva vive aqui na Providência e não conhece esses caras. 

Izabela – Sim, e a história deles relaciona a estiva e a região portuária com a história do samba… sabe o que é lindo de perceber na fala de vocês? É que vocês são, de certa forma, vidas escondidas, cada vez mais ganhando visibilidade, ocupadas, sobretudo, em revelar as vidas e histórias escondidas no seu território. Vidas escondidas que revelam vidas escondidas na Pequena África. Vocês poderiam fazer qualquer coisa, mas escolheram fazer isso das suas vidas e por meio do seu trabalho de arte.

Diego – Acho que isso tem a ver com ser artista, eu sempre me senti dono desse território. Eu venho da pixação e no início era isso mesmo, de se afirmar, de dizer – eu estou aqui, essa é a minha assinatura, minha forma de expressão. Depois eu cresci e mudei um pouco esse viés, mas sem perder essa perspectiva, sem deixar de trazer a história do meu território, a história que a gente tem que contar se não a gente fica invisível.

Izabela – Tem um jogo entre pixação e grafite, um jogo de visibilidade e invisibilidade no qual você desloca a sua posição nesse território, você e Thiago, que não foi pixador propriamente, mas que também flertou com a pichação quando era garoto, e de certa forma também o Sandro, quando as pesquisas dele começam a ganhar outros espaços. Porque mesmo que o pixo seja uma assinatura, o entendimento dessa assinatura se restringe a uma comunidade de pixadores que, de certa forma, se dirigem uns aos outros. Então mesmo que seja uma assinatura, é mais anônima, se perde mais no fluxo da cidade. No grafite parece que é diferente, é mais público, quer falar com todos que passam pelos muros grafitados, tem uma assinatura, uma marca reconhecível, muitas vezes está associado a projetos de revitalização de uma área que tem instituições envolvidas, enfim, um estatuto que não é o da pixação. E vocês hoje pintam em telas, fotografam…

Diego Zelota, Crespo é lindo. Feio é o seu preconceito. Stêncil na Pedra do Sal, Centro, Rio de Janeiro, s/d.

Diego – Eu nunca me envolvi muito com grupos de pixadores, de arte urbana. Quando eu pichava era sozinho, o que me empolgava era pixar em lugares altos. Foi complicado chegar ali e eu cheguei e deixei minha marca, isso era o que me empolgava. Pode ser que isso venha desse passado de pixador, mas mesmo quando eu comecei a grafitar eu queria me manter opaco. Eu não assino nada na rua, Thiago sabe. Eu tenho um trabalho que fiz na parede de um bar na Pedra do Sal que ninguém sabe que é meu e se tornou um trabalho emblemático de lá. Geral se fotografa na frente do trabalho que são três mulheres com o cabelo black com a frase “crespo é lindo, feio é o seu preconceito”. Era uma série de imagens com mulheres de expressão forte, usando cabelo crespo. Quando eu fiz ninguém queria usar cabelo black, geral alisava o cabelo. Agora o trabalho está sendo lido por outro viés, do empoderamento das mulheres pretas e passou a representar a resistência daquele lugar. Outro dia eu vi um documentário que começava com a imagem do meu trabalho. Geral falou que eu tinha que pedir direito autoral… mas eu fiquei satisfeito porque isso quer dizer que ele funcionou.

Eu conheci o grafite de verdade em uma exposição no CCBB chamada “Fabulosas desordens”, em 2007, só o nome já me encantou.

Izabela – Isso é curioso, você conhecer o grafite em uma exposição e não na rua…

Diego – Eu já havia visto, claro, mas me dei conta de que grafite era uma forma de expressão, de arte, e daí eu comecei a me envolver mais com o grafite, a conhecer as linguagens. Pra falar a verdade, lá no início de tudo eu tinha muito preconceito em relação ao grafite, e também foram preconceituosos comigo – Grafite, isso não é coisa para um cara de favela!

Sandro – Era coisa de playboy! Te chamaram de playboy?

Izabela – Que curioso, porque, de modo geral, ou a partir do meu lugar cultural e social, melhor dizendo, grafite é um trabalho muito associado às periferias, à favela.

Diego – Mas na favela não, significa que você quer se destacar de uma outra forma. Mas aquilo está em você, você não faz para se destacar. Às vezes andar na contramão te leva a se perguntar o que há de errado com você… mas também te faz enxergar certas coisas como os outros não as vêem.

Thiago Haule – Eu acho que até mesmo por questões econômicas, o material de arte é caro, é caro vc manter a arte, seja como hobbie ou profissão. Se você comprar 4 latas de tinta você já gasta R$100,00 e isso já te destaca. É verdade que a origem do grafite é underground, marginal até, vem do Brooklyn, vem dos metrôs, Nova York… mas aqui no Brasil é uma coisa que ganhou o mainstream quando foi feita por gente que veio das escolas de arte, por designers, gente branca, gente de classe média ou gente rica, formada em universidade…

Izabela – Ah, sim, entendi.

Diego – E assim eu escolhi o stêncil que é mais rápido, mais prático. Nem sempre a gente pode estar parado ali na rua por muito tempo, quando a gente não tem tanto dinheiro pra comprar materiais o estêncil te dá a possibilidade de ativar o que você quer passar mais rápido. E isso me apaixonou. Eu acho que viver no centro da cidade me deu isso, aqui eu conheci muita gente, muita gente bacana passou por aqui e me ensinou muita coisa. Eu e Thiago fizemos dois workshops na Casa Amarela, um espaço de arte localizado no alto do morro, em frente à Igreja, que na época era coordenada por um artista aqui da Providência, o Maurício Hora, que é uma influência forte pra mim. Um dos workshops foi com a Mônica Nador, que é uma artista que trabalha muito bem com stêncil, e a gente aprendeu muito com ela. E depois com o Vhils, um artista português, um cara muito maneiro que é referência na street art, que também foi importante para o nosso trabalho. Eu sou um fantasma da Casa Amarela, eu fiquei lá um tempo, eu me sentia dono daquele lugar… eu sempre senti que a comunidade precisava de um espaço de arte, onde as crianças pudessem ter contato com a cultura “maker”, com pintura livre, com o estêncil… e eu fui muito feliz no tempo em que estive lá. O que eu fazia era trazer a galerinha, as crianças, as pessoas que me conhecem, e de certa forma me veem como um ser diferente, que se identificam com meu lifestyle, com minha mania de bike e com o grafismo…acho que quando essas pessoas me vêem eles pensam: isso é pra mim também!

Sandro – Muitos artistas daqui fizeram esses cursos na Casa Amarela, mas só Thiago e Diego seguiram. Eu mesmo fiz, de nós eu fui o precursor, o primeiro a me inscrever no curso mas não dei continuidade.

Thiago – E tudo isso, essa formação foi via favela, nada a ver com o governo, com a revitalização do porto maravilha… a formação que a gente teve foi especialmente via favela, pelos nosso próprio meios.

Thiago Haule e Diego Zelota, Stêncil retratando Tia Lúcia e Tião, moradores do Morro do Pinto e da Providência, respectivamente, vizinhos dos artistas. Rua Pedro Ernesto, Gamboa, Rio de Janeiro, 2018.
Thiago Haule e Diego Zelota, Stêncil retratando Tia Lúcia e Tião, moradores do Morro do Pinto e da Providência, respectivamente, vizinhos dos artistas. Rua Pedro Ernesto, Gamboa, Rio de Janeiro, 2018.

Izabela – E vocês tem um trabalho bastante virtuoso, é um estêncil bem complexo o que vocês fazem.

Thiago – Nada! Tem artistas do estêncil que são muito feras… a gente tem ainda muito papel para comer”! O que acontece é que a gente faz as coisas quando pode, no intervalo da correria… e todo  trabalho precisa de tempo pra chegar à perfeição. Se a gente tivesse suporte e tempo não haveria limite. Esse trabalho que estamos fazendo no Rua Walls é um grande desafio técnico também, não apenas pela escala, que é gigante. Na parede em geral eu trabalho até o tamanho real das pessoas, às vezes um pouco maior, como no retrato da Tia Lúcia7, que era só o rosto grandão. Mas também porque pra cobrir toda aquela área em halftone, que é uma técnica em que o desenho é todo composto por linhas, é doloroso, o movimento de braço é muito intenso… mas está sendo também muito prazeroso! O que eu penso é que eu não posso fazer um trabalho só pautado pela técnica. Tem muito artista embelezando a cidade com imagens lindas, com trabalhos muito interessantes e que eu respeito muito; mas eu não quero fazer isso, não quero apenas isso. Eu quero colocar coisas em questão com o meu trabalho. Por isso eu pinto a fúria dos guerreiros negros,  o rosto dos povos indígenas, a bandeira do pan africanismo, como estou fazendo no muro do Rua Walls. Eu preciso colocar pela cidade os conflitos ligados à minha origem, declarar o amor pelo Morro de onde eu vim, eu trabalho pra colocar isso tudo em debate no fluxo e na correria da cidade. A imagem é a maneira que eu encontro pra traduzir o meu pensar crítico, assim como Sandro encontrou a fotografia e a escrita.

  • Thiago Haule, Muro pintado na Avenida Rodrigues Alves, região portuária do Rio de Janeiro, dentro do projeto Rua Walls, 2020.

Izabela – E de onde vêm essas referências que você usa no seu trabalho Thiago?

Thiago – Vêm de pesquisas, de textos de professores brasileiros e estrangeiros que a vida foi me mostrando… isso foi a base, mas vêm também de pesquisas sobre a o reino de Kemet, que é outra forma de nomear e compreender o Egito Antigo, uma recusa dessa ideia do Egito construída pelos gregos e que tem a ver com as origens da diáspora africana. Vem dessas pesquisas sobre os povos indígenas e sobre o Pan Africanismo. Minha principal referência de pesquisa, na verdade, é o meu irmão. Quando ele se formou em história eu acompanhei tudo, ele me ensinou como se fazia para pesquisar mais profundamente um tema que estava me interessando. Meu irmão é minha principal referência de pesquisa, na verdade para muitas coisas. E basicamente eu pensei em fazer arte porque desde moleque eu gostava muito de ver um programa chamado “O Mundo da Arte”.8 Aquele sistema, aquele modo de pensar a vida, de criação, seja pintando, esculpindo ,aquilo me fascinava. Lá vi muita coisa, conheci artistas como Amílcar de Castro, Carlos Fajardo e muitos outros.

Izabela – A fala de vocês confirma uma inversão radical, a meu ver, que venho de uma educação mais formal, sobre os modos como se produz conhecimento, sobre outras maneiras de se fazer cultura e compreender os processo de formação na atualidade, em especial nos contextos periféricos, nas favelas. Outro dia assisti uma live com o Raul Santiago, um empreendedor e ativista por direitos do Complexo do Alemão, e fiquei de cara quando ele percorreu ao vivo os caminhos que o levaram até onde ele está hoje, até a sua emancipação. Ele disse que tudo começou com um grupos de amigos que frequentavam uma lan house, que era o principal espaço de informação, lazer e sociabilidade pra eles e que ia acabar por motivos econômicos. Para que não se perdesse aquele espaço, eles fizeram uma festa, a “orkut fest”. O processo de invenção da festa e a festa mesmo foram um sucesso! Dali em diante aquele movimento foi se desdobrando em uma série de ações, cada vez mais com cunho social, que consequentemente resultaram em muitos aprendizados, fizeram acontecer o que eles queriam no território deles, como as ações mobilizadas por vocês, e os formaram para que depois pudessem seguir seus caminhos de trabalho e vida. Nesse grupo, além de Raul, estava gente como René Silva, do Voz das Favelas, e Tamira Tâmara, do Gato Mídia. Isso colocou como central no seu processo de formação e emancipação o que foi aprendido com as pessoas como ele, seus ancestrais e seus companheiros, e o desejo de transformação da realidade à sua volta. O cara é um cientista social, um gestor absolutamente sagaz, está inventando junto com seus companheiros tecnologias sociais de ponta, de comunicação, de gestão, ensinando isso pra muita gente, e em nenhum momento ele fala em universidade e em livros, no máximo de TEDx. Nessa geração de pessoas como vocês – que diante da exclusão se auto incluiram, que compreendem o valor da sua cultura e do seu modo de vida, que fazem por vocês mesmos – é que estão as maiores potências transformadoras das sociedades em que vivemos. Isso está cada vez mais claro!

Diego – É verdade, eu trago referência de fora, mas a maioria das coisas eu aprendi aqui, tudo começou aqui. Até o grafite, sabe, porque eu busquei referências de fora, mas o meu primo Paulinho, por exemplo, quando chegava época de copa do mundo ele grafitava toda a rua! Aqui sempre teve uma galera que pintava coisas no muro. Isso também poderia ser considerado grafite.

Izabela – É verdade! Eu nunca fiz essa associação, dessas pinturas com o grafite… na rua em que eu vivi a minha infância isso também era feito direto, e a gente se habituou a conviver com aqueles desenhos mesmo depois da copa. Essa era uma prática bem comum até os anos 1990, que hoje já não se vê tanto… era um grafite horizontal muitas vezes, feito no asfalto.

Diego Zelota, Roda Cultural Central, Estação Central do Brasil, Rio de Janeiro, s/d.
Diego Zelota, Roda Cultural Central, Estação Central do Brasil, Rio de Janeiro, s/d.

Diego – Sim, são influências daqui do morro, de um passado que a gente vai juntando. Ter trabalhado no Museu de Arte do Rio também me deu uma sacudida. Mesmo que meu trabalho lá fosse administrativo, ter estado lá me deu a dimensão de um campo profissional, sobre o que fazer com minha arte, de que se podia viver de arte. Eu fazia por hobby, para passar uma ideia, para estar com as pessoas com quem eu me identificava… para sair da Providência e ir trabalhar com esses caras no Morro do Pinto, que estavam envolvidos num movimento cultural, social, o coletivo I ♥ MP… esse tipo de organização eu não tinha contato aqui na Providência então eu comecei a trazer tudo o que eu conhecia de fora para dentro da favela, e alguns caras daqui começaram a me procurar, como pessoal da Roda Cultural Central,9 que tinham visto a Roda Cultural do Morro do Pinto e adoraram.

Izabela – Eu vi no seu Instagram as fotos que você fez da Roda Cultural da Central, gostei muito, a gente trocou até algumas mensagens à época. Como foi que você começou a fotografar?

Diego – Eu ainda não apresentei minha fotografia para o mundo, eu mostro poucos cliques…talvez tudo isso só tenha valor quando eu ficar bem velho… mas o que eu fotografo são coisas que estão em constante movimento. Eu fotografo hoje e amanhã já é outra coisa, e, de certa maneira, a fotografia é uma forma de acompanhar a mudança nesse cenário, uma “fotografia futurista”. E tem muita coisa que está desaparecendo, como a cultura do carrinho de rolimã… as festas juninas… aqui na Providência tinha uma cultura muito forte de festa junina, era algo que mobilizou geral por muito tempo, eu fotografei isso… e agora não está mais acontecendo. Eu comecei a fotografar com o Maurício Hora, eu não entendia nada. E tudo é questão de entendimento. E vi um cara no meio da noite, sem luz nenhuma, em cima de uma escada fotografando. Você é maluco? Não tem luz nenhuma aí, o que você está fazendo? Eu perguntei, e ele me disse que estava fazendo uma fotografia de longa exposição, que é o tipo de fotografia que eu gosto de fazer. Eu gosto muito de trabalhar uma longa exposição, sentar no cenário e esperar pra ver até quando aquelas coisas ao redor vão se unir e dar aquele boom de imagem.

Diego Zelota, Festa Junina na praça do Morro da Providência, Rio de Janeiro, s/d.
Diego Zelota, Festa Junina na praça do Morro da Providência, Rio de Janeiro, s/d.

Izabela – Thiago, Sandro, e como surgiu o I  ♥ MP?

Sandro – A primeira ação foi feita pelo Thiago, em 2011.

Thiago – O coletivo I ♥ MPcomeçou em 2011, mas eu vou ainda mais longe, nos primórdios, no coletivo Topinheco 07, que começou em 2007. Topin é Pinto com as sílabas ao contrário e Nheco era um dos antigos nomes do Morro do Pinto, Morro do Nheco. Essa já era uma movimentação dos amigos, nós ocupávamos a quadra de um bloco carnavalesco o Independentes do Morro do Pinto, no alto do morro. Nós éramos mais jovens, cada um já iniciando a sua correria, tentando se encontrar em si mesmo, achar seus caminhos, mas nós procurávamos fazer uma reestruturação do local e criar ações culturais. Isso foi esfriando e com o tempo acabou. O nome do coletivo I ♥ MP é uma paródia com essa marca “I ♥ NY”, que a gente via em todos os lugares, em bonés, adesivos, e não tinha nada a ver com a gente. Eu depois conheci Nova York e gostei bastante, mas na época eu nem conhecia. A primeira ação do I ♥ MP em 2011 foi a pintura da frase I ♥ MP em um muro na Rua Santo Cristo, de frente para a Rua Sara, perto da antiga fábrica de chocolates Behing. Eu pintei e não falei para ninguém. Então a galera começou a falar: “Você viu o que pintaram lá em baixo? Caramba, maneiro, I ♥ MP!” Quando chegou nos amigos mais próximos eu disse que tinha feito o trabalho e então as ideias começaram a fervilhar. E dali em diante a gente começou a se movimentar como grupo em prol de atividades culturais. Eram grandes amigos, e outras pessoas foram se agregando, como o Diego, cada um com suas especificidades, querendo somar e realizar os trabalhos que a gente sempre tinha pensado em fazer.

  • Inscrições do coletivo I ♥MP nos muros da Região Portuária, s/d.

Sandro – E foi também uma resposta à revitalização da região portuária que estava começando a acontecer. Essa revitalização nunca chegou pra nós, então a gente pensou: se a revitalização não chega aqui a gente vai começar a agir, vamos fazer a nossa própria revitalização. E isso motivou a gente a criar e fazer, a sair pintando, a colocar música na rua…a gente se deu conta, e até hoje é assim, que essa revitalização chegava até a praça Mauá, no máximo, ao início da Rua Sacadura Cabral, e que ela não ia chegar aqui. Como nunca chegou, nós resolvemos fazer por nós mesmos. Então fizemos roda de rima no alto do morro, colocamos música na rua, realizamos pinturas de muros, oficinas, e tudo por conta própria, com o dinheiro do bolso de cada um, a gente arrumava uma lata de tinta aqui, outra coisa lá… e assim seguimos.

Thiago Haule, Stêncil sobre portas de madeira, s/d.
Thiago Haule, Stêncil sobre portas de madeira, s/d.

Thiago – É… a gente fazia uma caixinha, ficava uns meses sem fazer nada para juntar dinheiro, pegava cerveja consignada, vendia cerveja, fazia adesivo pra vender e assim arrumava dinheiro pra realizar os eventos, as pinturas.

Sandro – Nessa conhecemos Diego, ele chegou junto.

Izabela – Gente, é mesmo impressionante a maneira como ser artista para vocês surge colado a esse sentimento de querer fazer algo pelo seu território. É difícil até de identificar o que vem primeiro, porque do mesmo jeito que a arte foi algo que serviu para despertar o olhar para a potência e a beleza da origem e do lugar de vocês, viver nesse lugar também formou vocês para a arte. É tão bonito… isso dá tanto sentido para o lugar do artista na sociedade… é uma outra perspectiva, ou ainda é um resgate crítico de uma perspectiva que está na origem da arte, que é pré-moderna, que não tem nada a ver com a ideia de uma arte cuja autonomia estaria em se retirar do cotidiano e se colocar sobre um pedestal, na moldura dos museus. No caso do trabalho de vocês, ser artista envolve não apenas fazer um trabalho de arte, mas sim assumir diferentes papéis como um agente cultural cuja ação é mais complexa e situada. Envolve também criar as estruturas por onde o seu trabalho e o de outros vai circular, criar as condições para que outras pessoas também possam ser artistas ou ter o contato com a arte e, então, a partir disso, mudar sua relação com o seu lugar e com a sua origem. Isso dá outro sentido pra ideia de artista, de arte, isso coloca a arte como uma manifestação da ordem da política, muito mais fortemente do que simplesmente abordar, ou representar um tema ou uma questão política. Vocês são demais…! E como você ficou sabendo deles Diego?

Diego – A gente já dividia algumas ideias, e eu, de certa forma, tava sempre procurando gente desse rolé de arte, uma galera que queria fazer e acontecer onde a gente mora, despertar esse amor pelo local. Eu sinceramente gosto de morar no Morro da Providência, mesmo que eu tenha crescido com aquele pensamento de que sua vida só melhora depois que você sai do morro. Eu perdi meu pai muito cedo, e minha mãe é muito diferente de mim, ela sempre teve muito medo, sempre quis me prender em casa por causa dessa imagem ruim da favela, dos tiroteios. Ela demorou pra entender o meu lifestyle. Eu sou feliz de poder cuidar do meu filho aqui. Eu posso sair da minha casa e deixar a porta aberta e ninguém vai roubar nada. Eu gosto daqui, tenho prazer e agradeço pelas experiências que eu tive aqui. A arte, a fotografia, me ajudou a ver o lado bonito de tudo. E eu quero devolver isso.

Sandro – E eu acho que essas ações que a gente fez na guerrilha deram fruto, e dão até hoje. A gente vê no Morro do Pinto em alguns lugares a inscrição  I ♥ MP e muitas delas não fomos nós que fizemos. Essas pessoas estão declarando o seu amor pelo morro do Pinto! A gente tocou essa galera. Tanto é que quando a gente fazia as ações sempre vinha alguém e falava: “pinta lá em casa, que trabalho maneiro! Foram vocês que fizeram?” Despertava o desejo das pessoas de ter um contato mais próximo com a arte, de ver um trabalho legal no seu muro. E isso foi criando nelas um sentimento de pertencimento.

Diego – Tinha gente que perguntava se a gente ensinava isso, que dizia “meu filho tem vontade de aprender isso”, que queria saber aonde a gente estava…

Sandro – A gente chegou a fazer uma aula de grafite e veio a maior criançada. Era uma forma de afirmar que tinham muitas coisas aqui, se vocês acham que é favela e que por isso não vai ter nada estão enganados. Tem gente aqui que pode criar algo mirabolante, sensacional!

Izabela – A favela tem sido historicamente um lugar de potência e vocês estão afirmando isso dentro da favela com o trabalho e modo de vida de vocês. Com isso vocês estão, ao mesmo tempo, afirmando a sua potência e abrindo a possibilidade para que as pessoas mudem as suas concepções sobre seu lugar de origem, sobre elas mesmas. Isso é fazer da arte uma contra narrativa, um instrumento de emancipação.

Sandro – A gente nunca ganhou muito dinheiro com isso, na verdade muitas vezes eu gastei dinheiro. Então é mesmo um desejo genuíno…

Diego – Eu aprendo muito com o Thiago… e ele sempre fala que eu não sei dar preço no meu trabalho, que eu não me valorizo como artista. Eu entendo o que ele está dizendo e estou amadurecendo nesse sentido. Mas eu fico feliz quando eu vendo alguma coisa pra alguém que vive onde eu moro. Que tem as mesmas vivências que eu tenho. E vender barato me dá essa possibilidade de vender um trabalho para alguém igual a mim, alguém do meu território. Eu quero reverenciar gente igual a mim, gente do meu território. Isso me deixa feliz.

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Diego Zelota
Artista visual e fotógrafo. Inquieto, transita por toda a cidade, por diferentes mundos e traz referências de muitos lugares para o seu trabalho sem deixar de se afirmar como cria do Morro da Providência.

Izabela Pucu
Curadora, pesquisadora, professora, editora e gestora cultural. Doutora em História e Crítica de Arte (PPGAV/EBA/UFRJ). Organizou diversos livros, realizou curadorias, pesquisas, entre outros projetos, de forma independente e no campo institucional. Vencedora do prêmio Jabuti 2020.

Sandro Rodrigues
Licenciado em História e fotógrafo autodidata. Transita sempre entre as duas áreas, imprimindo um caráter documental à sua fotografia. Vem desde 2017 registrando o bairro do Santo Cristo, na zona portuária do Rio de Janeiro, suas tradições e sua gente.

Thiago “Haule” Rodrigues
Fotógrafo popular, artista visual autodidata. Constrói narrativas a partir da inserção de imagens e interferências no seu território, articulando referência como o Pan Africanismo e a luta dos povos indígenas,  para tratar das desigualdade do nosso tempo.


1 Diálogo produzido a partir de um encontro virtual na plataforma zoom, no dia 26 de agosto de 2020, durante a pandemia da Covid-19. A conversa durou cerca de 2 horas e meia e foi transcrita e editada por Izabela Pucu, que também introduziu as notas. Sandro Rodrigues produziu diretamente por escrito alguns parágrafos atribuídos a ele, em especial as passagens mais poéticas sobre o Morro do Pinto, e Thiago Haule complementou algumas questões por mensagem de áudio no whatsapp em 15 de setembro de 2020, que foram introduzidas no texto final.

2 Não se sabe bem de quem é o samba, e o restante da letra, mas a frase ficou na cabeça de Sandro…

3 Trecho do rap “Barroso e Morro do Pinto”, de Adal e Pica Pau, disponível no youtube  https://www.youtube.com/watch?v=-cz9fdz0C6c.

4 Ver texto “A ponte dos amores”, escrito por Sandro Rodrigues e publicado em 28/03/2019 na página do Coletivo I <3 MP no facebook. Disponível no link https://www.facebook.com/notes/coletivo-mp/a-ponte-dos-amores/2127664477326172

5 Rua Walls é um projeto que envolve diversas ações, entre elas a ocupação com grafites de grande formato dos muros dos antigos armazéns da avenida Rodrigues Alves, na Região Portuária do Rio de Janeiro. Participam do projeto os artistas Agrade Camís, Amorinha, Bruno Lyfe, Célio, Chica Capeto, Diego Zelota, Doloroes Esos, Flora, Yumi, Igor SRC, Leandro Assis, Luna Bastos, Mariê Balbinot, Marlon Muk, Miguel Afa, Paula Cruz, Thiago Haule, Vinicius Mesquita e Ziza. O projeto envolve ainda uma série de ações sociais e culturais na região. Sobre o projeto ver o site https://www.ruawalls.com/

6 Griot (também grafado griô; com a forma feminina griote), jali ou jeli (djeli ou djéli na ortografia francesa), é o indivíduo que na África Ocidental tem por vocação preservar e transmitir as histórias, conhecimentos, canções e mitos do seu povo. Existem griots músicos e griots contadores de histórias. Fonte wikipedia.

7 Lucia Maria dos Santos, a Tia Lúcia, moradora do Morro do Pinto, ícone da região Portuária, falecida em setembro de 2018.

8 Programa “O Mundo da Arte”, exibido pela STV, a antiga Rede Sesc/Senac de Televisão (hoje SescTV), no ano 2000. Entre 2005 e 2007, também foi exibido pela TVE Brasil.

9 Roda Cultural Central é uma roda de rima em que poetas e rappers se enfrentam no formato de batalha de sangue.  Mobilizada por jovens do Morro da Providência, acontece às quartas feiras à noite atrás da estação Central do Brasil.