Nº6 VIDAS ESCONDIDAS
  • Colônia Anapra, um dos principais lugares onde as mulheres desapareceram na cidade Juárez.

Ensaio da identidade, 2005-2020: Mayra Martell

Saudade: estar longe de quem te habita.

Texto: Joana Mazza

Os ambientes registrados pela fotógrafa mexicana Mayra Martell em Ensaio da Identidade (Ciudad Juárez, México, 2005-2020) apresentam os vestígios da existência de meninas e jovens mulheres desaparecidas na emblemática cidade Juárez no México. Esta cidade fronteiriça com El Paso, Texas, EUA, é conhecida pelas grandes fábricas internacionais de maquiagem e pela violência de gênero. Apesar de não haver fontes seguras sobre o número de vítimas, segundo dados da rede integrada Mesa de Mujeres de Ciudad Juárez, entre 1993 e 2015 somam-se um total de 1.459 casos. Destes, a maior concentração está entre 2007 e 2013 com um total de 70%. Dentre as ocorrências acompanhadas por Martell, apenas 30 corpos foram encontrados e cerca de 10% tiveram os culpados identificados. De acordo com a antropóloga e ativista argentina Rita Laura Segato:

Ciudad Juárez, en el estado de Chihuahua, en la frontera norte de México, es un lugar emblemático del sufrimiento de las mujeres. Allí, más que en cualquier otro lugar, se vuelve real el lema «cuerpo de mujer: peligro de muerte». Ciudad Juárez es también, significativamente, un lugar emblemático de la globalización económica y del neoliberalismo, con su hambre insaciable de ganancia.1

Diante desse cenário violento, inúmeras famílias se veem subitamente obrigadas a lidar com diferentes camadas de dor, a começar pela saudade, e consequentemente com a convivência entre o carinho e o afeto junto com a preocupação sobre qual foi o destino das suas queridas, sem saber se ainda estão vivas e, portanto, sofrendo violências diariamente, ou se estão mortas. Para piorar esse cenário, ainda são afetadas pelas insuficientes respostas por parte das autoridades. Essa desigual conjuntura está assentada sobre dois polos, de um lado estão essas famílias, escondidas nas áreas vulneráveis dos bairros afastados do centro de Juárez, do outro está uma sociedade cúmplice nesses cruéis destinos. Martell não apenas apresenta a violência exposta na ausência, mas também a resistência contra ela. Esses quartos não estão vazios, estão cheios de recordações, rastros de personalidades e o último fio da permanência de cada vítima. A cuidadosa preservação desses espaços é inevitavelmente a forma de persistência contra a destruição dessas existências.

Mayra Martell é oriunda de Juárez e regressou em 2005 para visitar. Foi nessa viagem que, em um passeio no centro da cidade, ela se deu conta de que as paredes estavam repletas de folhetos com retratos e recados de parentes desesperados para encontrar suas filhas, irmãs e netas sumidas.

Los primeros casos de mujeres que documenté, curiosamente, tenían mi edad. Visitar sus habitaciones me hacía recordar a mí misma hace algunos años. Las madres me miraban largo rato y me hablaban de sus hijas como si fuera una vieja amiga. Yo intentaba construir una imagen, reincorporar recuerdos para conocerlas.2

Martell buscou nesse ensaio resgatar os poucos vestígios existentes dessas vítimas, procedentes das camadas mais vulneráveis da sociedade mexicana. Mesmo após passados anos desses sucedidos, os ambientes preservados não só apresentam o retrato e a história de suas moradoras, mas também o resultado de uma sociedade violenta e corrupta.

“Em que ponto estas mulheres podem se tornar fictícias?”3 Esta pergunta feita por Martell vai em direção à questão da invisibilidade sinistra desses desparecimentos. Os avisos de busca no centro pareciam não surtir qualquer efeito de sensibilização e atenção frente a esses acontecimentos que seguem se multiplicando a cada ano. Em 2012 a fotógrafa assume seu lado ativista e funda o Diário Latinoamericano, que busca fazer da arte e da cultura meios para reconstruir histórias de vida e transformar a experiência de dor em narrativas próprias e instrumentos de denúncia.4 Entre as ações realizadas, está a oficina artística com as mães das desaparecidas de Juárez, onde trabalharam a memória através de fotografias e textos.

  • Oficina fotográfica para mães de meninas e jovens desaparecidas em Juárez, México em colaboração com a organização "Hijas de Regreso a Casa”, encarregadas de acompanhar as famílias das vítimas nessa cidade fronteira. Entre as atividades estava incluída a elaboração de um diário. 2005.

O caso de Juárez tem sido pesquisado e questionado por autores como Rita Laura Segato, que em seu livro La guierra contra las mujeres faz um ensaio específico sobre esses desaparecimentos, e, sobretudo, uma análise sobre os motivos de seguirem acontecendo com tão baixo impacto de mobilização social.5 Segato entende que ali se dá um complexo jogo, onde o corpo da mulher é utilizado como espaço de disputa social e política. De acordo com a escritora, elas não foram somente vítimas de sequestro, estupro, tortura, tráfico de pessoas ou órgãos. Elas são padecentes do extremo de uma sociedade que usa o corpo feminino como um território de poder. Vivos ou mortos, esses corpos são instrumentos utilizados em uma nefasta escalada de poder, cujos algozes são caracterizados pelas ações de um poder soberano sobre eles, que aniquila sua vontade, usa sua carne como objeto e os descarta. Esses preceitos são confirmados pelo caráter de femigenocídeo, que se aplica a essa cidade a partir dos anos 1990, cujas controversas investigações policiais até hoje não alcançaram desvendar as causas e os verdadeiros culpados desses crimes, ainda que possuam numerosos elementos em comum. As desvanecidas, violadas e torturadas são a extremidade mais radical da fraternidade masculina paraestatal, que as utiliza para ascender em seus projetos de poder.

Em 2009, Martell foi obrigada a deixar a cidade e mudar-se para México DF. Até hoje seu regresso a Juárez é um tema delicado e requer cuidados especiais. Apesar disso ela segue acompanhando as famílias, auxiliando nas investigações e registrando novos casos.

Esse movimento de associação entre fotografia e ativismo não é um caso isolado. Artistas e fotógrafas latino-americanas estão cada vez mais trabalhando de maneira transdisciplinar, trazendo para suas práticas artísticas eventuais cruzamentos entre política, ativismo, poética, história, entre outras abordagens possíveis que apontam para a necessidade de reformular as estruturas sociais e culturais que oprimem a existência, a resistência e a diversidade vinculadas às mulheres. Essas autoras trabalham em seus processos artísticos perspectivas fundamentais em resposta à urgente necessidade de transformação de paradigmas. Pois não basta ter esperança, temos que fazer algo para mudar o que queremos mudar6.

***

Mayra Martell (n. 1979) nasceu na Cidade de Juárez, Chihuahua. Ela desenvolveu seu trabalho documental principalmente em regiões da América Latina sobre o tema do desaparecimento forçado.  Em 2021, recebe o prêmio Spanish Ankaria Photo, bem como uma bolsa de residência em Barcelona, com a tutoria de Joan Fontcuberta. Em 2020, faz parte da coleção fotográfica The Wittlif Collections, na Universidade do Texas. Em 2016, recebeu uma bolsa do Sistema Nacional de Creadores do Fundo Nacional de Cultura do México, com um projeto sobre o cotidiano da violência e da Narco-cultura no norte do país. Em 2012, criou a Associação Civil Diario Latinoamericano. 

Joana Mazza (n. 1975) é pesquisadora, curadora, produtora cultural e fotógrafa. Ela é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes (UFF-Brasil) e faz parte da Posthuman Latin-American Network. Mazza tem mestrado em Arte, Pensamento e Cultura Latino-americana pelo Instituto de Estudios Avanzados (Universidad de Santiago de Chile). Entre suas principais atividades estão a coordenação das exposições do FotoRio (2003 a 2009), a coordenação do Programa Imagens do Povo (2010 a 2103 no Observatório de Favelas), assistente de curadoria e direção no MAC de Niterói (2013 a 2015), curadora do Festival de Fotógrafas Latinoamericanas (2021).


1 Segato, Rita Laura. La Guerra Contra las Mujeres. Madrid: Traficantes de Sueños, 2016, p..33.

2 Martell, Mayra. “Ensayo de la Identidad, ciudad Juárez 2005-2020”.

https://mayramartell.com/portfolio/ensayo-de-la-identidad-ciudad-juarez-2018-2005/ [Acessado 30 abril 2021]

3 Martell, Mayra. “Quiénes Somos”. Web. 30 2021. http://diariolatinoamericano.org/spanish2/ [Acessado 30 abril 2021]

4 Ibid.

5 Segato, Rita Laura. La Guerra Contra las Mujeres., op.cit.

6 Inspirado na entrevista com Teresa Margolles para a Vienna Art Week. 

https://www.youtube.com/watch?v=XcTDw0m_LqI [Acessado 27 abril 2020]