Nº6 VIDAS ESCONDIDAS
Anita Sobar, Lambe – lambe na rua Moncorvo Filho – Centro, Rio de Janeiro, 2010. Foto: Anita Sobar.

O devir clandestino <entre aproximações e desvios>

Anita Sobar em colaboração com Kenia Maia

Ponto de inflexão

O silêncio pode ser vivenciado como esquecimento. Como o silenciamento pode ser assimilado pelo esquecimento? No ponto em que o silenciamento produz esquecimento. Esta escrita afirma a dimensão colaborativa da arte para transformar o segredo em memória coletiva. Kenia Maia é professora, psicóloga, ativista e amiga e é a partir do nosso encontro no Coletivo Filhos e Netos1 – um movimento social autônomo, suprapartidário, de Direitos Humanos, seguindo os rastros da violência cometida pela ditadura civil-militar – que o trabalho artístico apresentado nesse estudo de caso, abre-se para uma outra camada. Busca-se enunciar um pouco de como a transferência da dor emocional, física e social sofrida por familiares é transmitida a novas gerações, para além de um simples comportamento aprendido.

O efeito transgeracional da violência ecoa escondido, é de difícil produção de sentido, por se tratar de uma memória fragmentada, soterrada, acometida pelo silenciamento e esquecimento. Compreende-se aí a eficiência da opressão nos estados de exceção. É na construção dessa escrita, que é também percebida como multidão, que se apreende a si a partir da presença do outro, para romper com as limitações e criar novas narrativas. Escrever foi uma dança de suportar/com, resgatar memórias, sentir/com e nos encontramos.

Anita Sobar, Ficha Criminal, MG – 1969/2016.

Pouco antes de finalizarmos uma de nossas conversas, via whatsapp, Kenia encaminha a imagem de um cartão/ficha achado na arrumação de sua mudança. O cartão, depois de anos, carregava o peso da lembrança de uma de suas incessantes buscas pela história do período em que seu pai esteve preso. O acesso à possível documentação, no Arquivo Nacional do Rio do Janeiro, era a partir da vista do cartão. O assunto de que buscava tratar, a pesquisa probatória, não se deu na ocasião. Restou guardar o ‘cartão de acesso’ como prova do impedimento aos documentos da prisão política do seu pai.

Qual a relação entre o silêncio e o esquecimento? O silêncio produz esquecimento através de processos de deixar sumir, desaparecer, de tornar irrelevante. O Estado tem essa expertise, de construir engrenagens de produção do esquecimento, principalmente através da burocracia. Ao burocratizar a dor da violência, o Estado dilui a urgência dos fatos em um fluxo contínuo e lento de papéis e formulários, de protocolos, que caminham entre repartições e portarias, entre números e pastas intermináveis. Esse aparelhamento do Estado nos silencia.

Kenia Maia, Ficha/cartão – Arquivo Nacional, RJ.

Entendemos, nesse ponto, que este texto foi escrito em colaboração, um ajuntamento de ambas filhas. Quando, no texto, surge referência ao “pai”, está sendo contada a história do pai de Anita, porém todos os filhos estão incluídos nela, inclusive o pai de Kenia.

Entre aproximações e desvios

Este trabalho <entre aproximações e desvios> consiste em uma série de reflexões a partir de ações estético-políticas, realizadas nos centros e periferias urbanas das cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Em um sentido amplo, se trata da criação e organização de dispositivos para produzir e compartilhar formas de envolvimentos coletivos, de estar juntos ou separados, fora ou dentro, face ou meio. Maneiras de reconfigurar um determinado espaço ou um determinado tempo para provocar experiências de partilha do sensível. Abordando questões relacionadas a lugar, habitação e construção, que também dizem respeito a trabalho e distribuição do espaço social, essa escrita é uma cartografia do artista clandestino. Ela conta o processo que se encontra com o espaço social, emocional, transgeracional, com a violência de Estado e as formas divergentes e desobedientes de produção da arte.

Anita Sobar, Lambe- lambe na rua do Riachuelo – Centro, Rio de Janeiro, 2010. Foto: Anita Sobar.

Entende-se por clandestinidade “a ousadia de ser outro e ele mesmo”2, um perder-se de si, para no coletivo voltar a existir. O clandestino, quando em encruzilhadas, escolhe se despir de si e deixa para trás seus afetos, objetos, memórias, que pode nunca reencontrar. Essa perda é parte da escolha pela vida, não só sua, mas da possibilidade do bem comum. Há uma singularidade da experiência clandestina, como o nomadismo, a pouca bagagem, poucos objetos. Nada que pese e que não possa ser deixado pra trás. Um avesso aos acúmulos, dedica-se ao mundo sem fronteiras, onde a nacionalidade se perde. Pode ser uma experiência apenas, mas que marca um modo de ser e agir profundos, produzindo permanências.

Anita Sobar, festival ativista ‘Festival’, Rio de Janeiro, 2017. Foto: Mídia Ninja.
Anita Sobar, festival ativista ‘Festival’, Rio de Janeiro, 2017. Foto: Mídia Ninja.
Anita Sobar, festival ativista ‘Festival’, Rio de Janeiro, 2017. Foto: Mídia Ninja.
Anita Sobar, festival ativista ‘Festival’, Rio de Janeiro, 2017. Foto: Mídia Ninja.

Entre investigação e atuação, a clandestinidade do artista, aqui, produz ações na urgência das manifestações do tempo presente, a partir de uma lógica própria, produzindo subjetividades, que só a experiência clandestina possibilita, criando múltiplas marcas. Concebidas numa trama de relações com o “outro”, o outro no sentido mais amplo, desde as outras pessoas com quem convive até o ambiente em que intervêm o cotidiano, as mudanças, as escolhas, preferências, as memórias produzidas. Ao relacionar percursos, que passam entre os lugares da memória e do arquivo, procura-se movimentar o exercício de contar algo, criando dinâmicas diversas entre imagem e escrita, onde o testemunho tornou-se peça fundamental para a composição dessa prática. Essa iniciativa, que retorna a um passado presente, se comunica com uma memória social e familiar, trazendo para uma cartografia de si a experiência errante do artista em dissenso. O fazer artístico, que será contado neste trabalho, é atravessado por efeitos transgeracionais de violência de Estado, pela coletividade, por atos de resistência e de vetores de forças transeuntes e de transição. Uma história ainda desaparecida em muitos aspectos é contada em arte/intervenção e pelos modos clandestinos da subjetividade ativista.

Este trabalho tem como ponto de partida um processo escavatório. Escavando e recordando as camadas que apenas a exploração mais cuidadosa entrega aquilo que recompensa a escavação, informando também as camadas atravessadas e não só indicando a camada onde se originou o achado, fazendo assim o inventário dos achados. Envolvendo a memória como forma de conhecimento, através da sistematização de suas formas de registro, armazenamento e controle. O ato de escavar propõe uma ação de abertura de uma cavidade em determinada superfície, criando buracos e aberturas para descobertas. Nas fendas da superfície revirada surge o questionamento sobre os limites simbólicos de público e privado. Nesse lugar desenvolvem-se dinâmicas, gerando tensões entre o tempo presente e as ressonâncias da memória, que cruzam diferentes temporalidades históricas e suas narrativas, através de agenciamentos diversos.

A errância e a dispersão fazem parte da cena que se pretende narrar. Certos lugares, acontecimentos, fazem surgir o sentimento de angústia e euforia, que ocorrem quando há comprometimento com o risco.

Ponto de partida – O devir clandestino

Todo começo é um regresso, uma ação de retorno, de recuperação. Uma volta aos silenciados de um passado que, por sua vez, não cessa de se reconfigurar. Todo começo é um gesto tenso para uma desmesura do sentido. Em contraponto, trata-se de elaborar um gesto de recuperar, com atenção e cuidado, as estranhas ressurgências, lacunares e hesitantes, do passado no presente, quando elas surgem como um clarão num momento de perigo – assim é a prática artística clandestina.

A arte é política, quando não pode ser explicada em termos de eficácia institucional ou das estruturas do pragmatismo ideológico. Ela ultrapassa as convenções, estabelece o nexo entre as formas de ações coletivas e a possibilidade da transformação das relações de poder. Mais se aproxima das invenções cotidianas – artes de fazer – do que das estruturas organizativas e precedentes da velha política em estrito senso. Associada a questões sociais (com frequência por elas inspirada), as quais incluem a participação colaborativa de grupos, de público para a conceitualização e produção do trabalho. Trata-se de uma forma de penetrar a organização sociopolítica da vida.

A dupla reflexão que se joga ao artista como responsabilidade de lidar tanto com políticas da arte como com arte política, é apresentada por Rancière: “A arte não produz conhecimentos ou representações para a política. Ela produz ficções ou dissensos, agenciamentos de relações de regimes heterogêneos do sensível”.3 Segundo ele, o trabalhador deve também “sair de si”4 para poder ver sensivelmente sua posição.

No regime estético das artes, conforme o autor, arte e política encontram-se fundidas pela dinâmica do dissenso, embaralhando e redistribuindo o “sensório partilhado”.5 Por sua vez, em Agamben,6 arte e política seriam inerentemente políticas, enquanto atividades humanas afetadas pela abertura de potências.

Como por exemplo, Nove de Tarnac, um grupo francês de nove supostos sabotadores anarquistas: Mathieu Burnel, Julien Coupat , Bertrand Deveaux, Manon Glibert, Gabrielle Hallez, Elsa Hauck, Yildune Lévy, Benjamin Rosoux e Aria Thomas. Em 2008, o grupo foi acusado de “associação criminosa para fins de atividade terrorista”, sob alegação de que eles teriam participado da sabotagem de linhas elétricas aéreas nas ferrovias nacionais da França. Em 12 de abril de 2018, após um longo e complexo processo judicial, o grupo foi absolvido das acusações mais graves contra eles, incluindo sabotagem e conspiração, com alguns membros sendo condenados por acusações menores. Esse é mais um evento em que as ações artísticas políticas e clandestinas ainda são perseguidas e criminalizadas pelo Estado. O terrorismo, que esta arte apresenta é a ameaça aos modos hegemônicos que o Estado propaga e torna oficiais. A arte clandestina, terrorista e disruptiva aterroriza os discursos oficiais, por isso é criminalizada e encarcerada.

A intervenção artística lança mão de meios tão simples quanto precários. Os cartazes de lambe-lambe, desenhos, fotografias, cartas, bilhetes e documentos são objetos em desuso impregnados de memórias. A combinação desses objetos em contato com o público, cria um laboratório urbano, envolvendo audiências diversas na realização de um projeto de arte. Este movimento é detonador de processos críticos, que podem produzir esferas públicas de discurso.

Hanna Arendt7 propõe que o termo público advém de dois fenômenos intimamente correlatos: o que vem a público pode ser visto e ouvido por todos assim constituindo a realidade. As maiores forças da vida íntima – dos pensamentos da mente aos deleites dos sentidos – vivem uma espécie de existência obscura, até que sejam desprivatizadas, desindividualizadas, até se tornarem adequadas à aparição pública. A mais comum dessas transformações, ocorre na transposição artística de experiências individuais.

O conceito de dobra de Gilles Deleuze remete a esse aspecto coexistencial do dentro e do fora, bem como uma configuração entre os fluxos e as formas que tramam determinados planos históricos, pertencentes à ordem do acontecimento. Tais considerações nos incitam a observar alguns desvios, que escapam aos contornos fixos, como o conceito de nômade.8 O pensamento nômade considera o acontecimento como algo que provoca surpresa e produz a desacomodação, ou seja, se constitui na mobilidade do próprio pensamento, como protesto.

Segundo Deleuze e Guattari9 o território é composto por vetores lisos e estriados, em que, numa relação de coengendramento, ocorre uma tradução do liso em modos estriados. O liso é uma dimensão imanente dos modos de produção de subjetividade no espaço e o estriamento desses modos dão forma, revelam e configuram esses vetores. Tal como os mapas das grandes navegações, no período moderno e colonialista, o estriamento das imensidões atlânticas foi o que possibilitou o manejo desse espaço liso, que fez chegar aos novos continentes, a explorá-los e dominá-los. O estriamento é um modo de domínio, porém ele é constitutivo dos espaços, assim como a lisura.

Os autores ainda apresentam a dinâmica de tecelagem dos territórios capitalísticos, onde as linhas que compõem os tecidos são limitadas e definidas em dimensões pré-estabelecidas de largura e comprimento. Na processualidade tecelã há sempre a produção dos avessos. Isto é, indissociado do direito, escondido e oculto, abriga a clandestinidade, aquece suas superfícies e a protege. O estriamento é o lado direito da história, que organiza a lisura das subjetivações e oculta os modos clandestinos de ser e agir, produzidos também pelas engrenagens violentas da máquina tecelã do Estado.

O Estado produz clandestinidade em dois aspectos: quando persegue e criminaliza os modos de expressão divergentes e que denunciam sua face dura, fascista e desigual, e quando esconde seus “aparelhos” de morte e tortura. O Estado também se utiliza da clandestinidade, só que para esconder a sua violência através da história oficial, um modo de não revelar.

Para além do ponto final – Os efeitos transgeracionais

A condição de filha de ex-preso político pela ditadura civil militar brasileira (1964-1985) permite carregar uma história de quatro anos de encarceramento, no extinto presídio de Linhares, em Juiz de Fora, Minas Gerais. A primeira vez que o militante da Corrente Revolucionária pisou na prisão mineira foi no fim do ano de 1969, quando tinha apenas vinte anos. No ano de 1973, ao sair, seu rosto não lembrava mais o jovem, de codinome “Play”. Era um homem barbudo e marcado pelo período da reclusão. Muitas vezes, o que se pode viver enquanto filha é ativar um processo escavatório, de uma experiência traumática e dolorosa, velada e silenciosa, que só é possível desvelar através do plano do sensível. Memórias, vivências e experiências pouco narradas, são percebidas por uma via não verbal e contadas como arte.

Anita Sobar. Cartaz da Campanha para a Anistia, 1979/2018.

Durante a infância, o convívio com um cartaz pendurado na casa dos pais, produzia uma série de afetos, em função da imagem conter um conjunto significativo de gestos. Tratava-se de uma fotografia utilizada para divulgação da campanha pela anistia política brasileira no ano de 1979. Na foto, presos políticos posavam em um pátio na sua terceira greve de fome. Ocorreu no Presídio Político Frei Caneca do complexo penitenciário Milton Dias Moreira do Rio de Janeiro. Era uma galeria de rés-do-chão que foi reformada e isolada, com entrada e pátio interno destinados exclusivamente aos presos políticos. A greve aconteceu entre julho e agosto de 1979, durante o governo do general João Batista Figueiredo, em resposta ao projeto de lei de Anistia enviado ao Congresso Nacional pelo presidente, que excluía os presos políticos acusados de crime de sangue. A intenção era organizar uma greve de fome nacional pela anistia ampla, geral e irrestrita.

Há na fotografia uma despreocupação com o exterior, uma liberdade interior no exterior, uma espécie de zona de indeterminação entre atividade e passividade, entre pensamento e não pensamento. Não se supõe que a imagem pense, supõe-se que ela é objeto de pensamento. Pensamento não de quem vê, mas de quem objetifica e a transforma em mensagem do cartaz de campanha. Essa indeterminação devém da desterritorialização, de uma vida no cárcere a ser criada, formando estranhos devires. A indeterminação na imagem desloca a condição de vítima que o cartaz propaga. A questão não é saber se cabe ou não divulgar os horrores sofridos pela violência, mas na construção da vítima como objeto do visível. O cartaz é político quando subverte a lógica dominante e mostra o oculto, o discurso oculto, o efeito-vida, o motivo por serem livres e tão presos.

A potência da imagem desencadeia a série Na sua ausência que consiste em duas ‘frentes’ de montagem (técnica e apresentação): uma referente a cartazes de lambe lambe, e a outra são pequenas colagens. As duas partem de modelos de formulários como suporte, ambas autônomas, mas coexistentes. A série parte da pesquisa de materiais gráficos de funcionamento analógico de um escritório, de uma repartição pública, de práticas burocráticas como: contas, recibos, formulários, fichas, entre outros. Esses dispositivos de informação tornam-se entulhos autoritários institucionais – entre os formulários, a ficha criminal do meu pai e o ‘cartão de acesso’ usado por Keina. Ambos abordam dinâmicas de informação no desenvolvimento das lógicas e valores voltados para o aperfeiçoamento de ações institucionais, governamentais e políticas. Geridos nos espaços arquivísticos, formulam discursos e projetos de subjetivação por meio de ações documentais.

A foto, sua potência, os documentos podem ser percebidos como uma rede rizomática de afetos, de memórias. Eles se conectam a partir da transmissão da mensagem, que as imagens cotidianas, impregnadas do sensível carregam. “Na sua ausência”, no seu silêncio, no silenciamento e na rotina dos dias, que eram atravessados pela resistência ao autoritarismo de Estado, ao fascismo, à tortura, às desigualdades sociais e ao genocídio, a memória se construiu. Essa memória não individualizada, apesar de familiar, se manifesta nas colagens e cartaz, trazendo o formulário, a burocracia, o analógico do aparelho estatal, enquanto forma de denúncia da burocratização da morte e da ausência de muitos militantes políticos. Ela se torna presente em ato como efeito de transmissão de trauma, que se transforma em intervenção artística, e nela, se transforma em atividade clandestina, livre e protegida, potente e provocadora. Aos filhos e netos de presos e desaparecidos políticos não escapou a denúncia da violência do Estado brasileiro, e a proposição artística que expressa a burocratização da vida e a ocultação da morte e faz emergir a potência da transgeracionalidade.

Série Na sua ausência, colagem, 2018.
Série Na sua ausência, colagem, 2018.
Foto do cartaz de lambe na Rua das Laranjeiras, 2018.
Foto do cartaz de lambe na Rua das Laranjeiras, 2018.

Muito se tem dito sobre os efeitos transgeracionais de Estado e outras formas de permanência histórica da violência, como o racismo por exemplo, enquanto sofrimento, e de fato o são.10 O que é oferecido aqui é a potência da arte na expressão dessa memória transgeracional e da potência transformadora da obra. Afirma-se essa ação transgressora enquanto expositora do trauma, da dor coletiva que habita uma história familiar. A arte não cura o trauma, pois não há doença a ser curada. Ela expõe o não dito, ela traduz uma língua ocultada, uma experiência omitida da sociedade pela história oficial.

Os arquivos respondem às relações de poder que regem uma cultura. Refletem a consciência de que toda matéria assimilada é um documento da máquina de discursos, de visibilidades e de afetos do contexto do qual procedem. Isso significa algo simples, mas que constitui um ato político, sua transferência contextual já configura uma leitura e provém de interesses que acarretam definições éticas.11

Isso é próprio do arquivo: a sua natureza lacunar. Para uma arqueologia da imagem, temos que identificar o que dispomos com os efeitos e gestos de um mundo que nos entrega alguns resíduos. Nos encontramos, portanto, diante de um imenso e rizomático arquivo de imagens heterogêneas difíceis de dominar, de organizar e de entender, precisamente porque seu labirinto é feito de intervalos.

Sobre tempos refeitos e contraditos desfeitos, a experimentação artística busca pensar a vida contemporânea e sua divisão simbólica entre público e privado. E, para dar pulso à discussão artista/arquivista, fazedor de mundos alheios, convoca-se a um protesto teimoso contra o típico e classificável. Walter Benjamin,12 ao se referir à ambiguidade de atitudes em relação ao passado, analisa a paixão do colecionador. Ele não apenas foi um teórico do colecionismo, como era sua motivação central, que chamou de “bibliomania” – ele vê no ato de colecionar marcas da pulsão infantil. Para a criança as coisas ainda não são mercadorias, não são avaliadas segundo sua utilidade e, portanto, ela pode se permitir fazer do prazer desinteressado a transfiguração do objeto.

O colecionador renova o mundo via uma pequena intervenção nos objetos – uma espécie de renascimento das obras, como coloca Hannah Arendt.13 Benjamin poderia entender a paixão do colecionador como uma atitude semelhante à do revolucionário. Como o revolucionário, o colecionador sonha com seu caminho não só para um mundo remoto ou passado, mas, ao mesmo tempo, para um mundo melhor, onde certamente as pessoas estão desprovidas do que precisam no mundo ordinário, mas onde as coisas estão liberadas do trabalho humilhante da utilidade.

Estas ideias ajudam a pensar sobre o universo das práticas artísticas contemporâneas. O mundo se abre e se renova a partir do gesto de rememoração e recoleção de arquivos, como chaves para organizar o que se passa na promessa civilizatória. Isto ocorreu nos regimes totalitaristas e fascistas do século XX. Projetos megalomaníacos de arquivamento tentaram submeter a sociedade e seus indivíduos reduzindo-os à obediência. E é assim que hoje surge cada vez mais, na era do “mal de arquivo”,14 um modo de pensar e agir que desconfia do arquivo e, como um protesto teimoso, devolve o olhar à nossa história.

As relações de poder e as táticas de controle da subjetividade se fazem tanto em escala macropolíticas como em escalas micropolíticas. A violência dos golpes de estado ameaça “o ‘direito’ à vida, ao corpo, à saúde, à satisfação das necessidades”.15

Outra ação artística vivenciada nesta cartografia foi a instalação de cartazes de lambe junto a escrita de frases nos muros da cidade do Rio de Janeiro e no Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC). O poema “O Chão no Ar” foi desmembrado em frases e escritos nas paredes da cidade e do MAC. Foram impregnadas as seguintes frases: “Como produzir contracondutas?”, “Pulso por toda parte”, “O mundo é grande, mas em nós é profundo como o mar”, “Procura-se uma utopia”, “ O chão precisa de arte” e “A arte precisa de chão”. Essas ações ocorreram no ano de 2017 e compõem uma experiência de relação entre os espaços de poder e territórios de resistência.

A resistência se dá, necessariamente, onde há poder. Tanto a resistência funda as relações de poder, quanto ela é poder. Ela é a possibilidade de criar espaços de luta e agenciar possibilidades de transformação segundo Foucault.16 Nessa perspectiva a contraconduta é uma forma de resistência. As contracondutas correspondem a um tipo de governamentalidade a fim de definir novas modalidades de luta. É importante pensar que forma ela adquire na crise atual. A palavra – “conduta” – se refere a dois modos: a atividade de conduzir, e também a maneira como uma pessoa se conduz, a maneira como se deixa conduzir; uma passiva e outra ativa.

O museu e a rua ganham especificidades. O museu enquanto espaço do Estado, público, e a rua como espaço do escondido, anônimo e provocador. Ambos receberam contracondutas e formas de reescrever os modos de fazer/ser/agir através das frases. Na ocupação do museu, mesmo que por vias inusitadas, o artista saiu da clandestinidade para transgredir os muros do Estado e do privado. Na rua o artista se apropria da cidade e faz surgir o povo. Sem se identificar, sem autoria, o artista se desfaz em forças, em linhas e vetores. No devir clandestino da artista, a arte se torna instrumento de contraconduta, transformando o que foi silenciado, escondido em ativismo e movimento.

Instalação O CHAO NO AR!, MAC, Niterói, 2017. Foto: Myllena Araujo.
Instalação O CHAO NO AR!, MAC, Niterói, 2017. Foto: Myllena Araujo.
Instalação O CHAO NO AR!, MAC, Niterói, 2017. Foto: Myllena Araujo.
Instalação O CHAO NO AR!, MAC, Niterói, 2017. Foto: Myllena Araujo.

De volta ao ponto de partida – Agora que encontrei, posso procurar

Colagem – documentos de bolso – Série Na Sua Ausência, 2018.

No dia 15 de junho de 2017, chegaram pelo correio os pertences do meu pai que foram apreendidos em 1969, na ocasião da sua prisão. Eram bilhetes, carteirinhas, um pequeno calendário, o que ele carregava no bolso da calça. Entre outras frivolidades, tinha um desenho do mapa de um banco, esboço de um plano de guerrilha. Os tais pertences ficaram detidos por quase quarenta anos. Uma sensação de estranheza é evocada a partir dessa relação entre ausência e presença. Levando em consideração todas as dificuldades que pesam sobre a experiência de rememoração de um evento traumático, é oportuno indagar: quais as permanências da violência da ditadura? Quais as estratégias de combate a tais permanências? Em confronto com a construção de uma memória contra o esquecimento, a resistência como testemunho carrega o paradoxo do indizível. Reforça-se o valor do testemunho, que se manifesta entre o dizível e o indizível.

No momento em que esses objetos chegam como testemunhos de um tempo subtraído pelo Estado, devolvem as reminiscências de uma vida. São desarranjos do tempo, que fazem emergir provas de um evento antigo. Essas reminiscências se encontram com outras memórias, testemunhos, quando o artista coletiviza sua experiência com outros filhos e netos de presos políticos no Rio de Janeiro.

O coletivo Filhos e Netos por Memória, Verdade e Justiça formou-se no final do ano de 2013, no âmbito do Projeto Clínicas do Testemunho do Ministério da Justiça, e teve como seu marco fundador a Audiência Pública “Efeitos transgeracionais da violência de Estado”, realizada na UERJ em dezembro de 2014, junto à Comissão Estadual da Verdade-Rio, ao Projeto Clínicas do Testemunho e à Comissão de Anistia. Esse coletivo promove, colabora e apoia campanhas, atos, manifestações e projetos vinculados ao tema da Memória, Verdade, Justiça e Reparação – particularmente nos casos de violência de Estado de ontem e hoje.

Criou-se então, uma rede de parentes dos perseguidos políticos. Através da atividade de pesquisa, foi elucidada a forte influência da participação no coletivo, enquanto artista, o que faz voltar ao ponto de partida. Este entendimento é relativo ao processo de construir a si e construir a si como artista. Todo começo é um regresso.

As questões tornam-se fundamentais entre a “construção de si” e a “construção de si como ativista/artista”. O encontro gerou a produção de agenciamentos ético-estético-políticos junto ao coletivo Filhos e Netos por MVJ e ao Projeto Clínicas do Testemunho – RJ. Em novembro de 2017, realizamos a mostra de arte e testemunhos como prática poética DESTEMPOS, na Grande Cia Brasileira de Mystérios e Novidades, Gamboa, Rio de Janeiro. A proposta foi possibilitar o testemunho de afetados pela violência de Estado, o efeito em seus corpos, valendo-se de enunciações coletivas criadoras. Convidando à experimentação de outras linguagens, não para ilustrar ou representar o horror e a dor, mas para ativar o legado dessa força de (re)existir. Fazer da arte possibilidade de converter a violência e o trauma em potência de agir, pensar e criar. Para tanto foi possível tornar público os arquivos privados para uma verdadeira reinvenção da costura entre o público e o privado, quebrando barreiras de silêncio e potencializando a luta pela verdade, memória e justiça.

O protesto é a surpresa – para além do intenso trabalho de pensar com cada integrante do grupo sua ‘apresentação’, o ato de abertura dos arquivos mais íntimos e revelar suas poéticas mais revolucionárias, a surpresa ganha força de protesto no reencontro com esses aspectos da subjetividade, que até então, estavam guardadas e reprimidas. Ao lançar mão dos objetos, poemas, desenhos, entre tantos outros contos e encantos, o coletivo toma a forma de uma escultura social.

Em um contexto histórico de não reconhecimento público dos crimes de grave violação de direitos e corpos, que foram praticados durante o regime de exceção brasileiro, os danos produzidos pelo terrorismo de Estado repercutem no tempo presente, e se atualizam nas gerações seguintes, produzindo efeitos transgeracionais. O fim dos regimes ditatoriais na América Latina não significou o fim dos danos produzidos pelo terror de Estado. Estes permanecem agindo e atuando no tecido social, sobretudo em contextos marcados por políticas de esquecimento, silenciamento e impunidade. São eixos centrais das políticas de Estado pós-ditaduras na América Latina e mecanismos retraumatizadores por excelência.

Os encontros de filhos e netos e as possibilidades de expressão, como ocorrido na mostra DESTEMPOS, são fundamentais para a desconstrução da solidão de quem viveu as consequências da violência de Estado. O devir clandestino do artista se coletiviza e ganha corpo em processos criativos e expansivos. Pensar a arte como um eterno começo é agenciá-la ao regresso e tornar dizível o indizível.

  • Projeto Clínicas do Testemunho - RJ. Mostra de artes Destempos, 2017.

***

Anita Sobar
Anita Sobar é artista, pesquisadora e educadora. Graduada em Belas Artes pela EBA – UFRJ, com especialização em Design Gráfico pela Escola Britânica de Artes Criativas – SP e Mestra em Estudos Contemporaneos das Artes PPGCA – UFF.

Kenia Maia
Kenia Soares Maia, Professora do curso de Psicologia da UFT – Universidade Federal do Tocantins. Ma em Psicologia Clínica pela UFF – Universidade Federal Fluminense. Dra. em Psicologia Clínica pela PUC – Pontifícia Universidade Católica – R.J.


1 O Coletivo Filhos e Netos por MVJ é um movimento social autônomo, suprapartidário de Direitos Humanos. Realiza atos públicos, pesquisas e projetos ligados ao tema da memória, verdade, justiça e reparação da violência estatal de ontem e hoje.

2 ARANTES, M. A. A. C., A clandestinidade, uma opção de resistência, Revista Princípios, Edição 31, NOV/DEZ/JAN, 1993-1994, pp. 65-69.

3 RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo, S P:Editora Martins fontes, 2014, p 59.

4 Ibid. p. 61.

5 Ibid. p. 50.

6 AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.

7 ARENDT. Hannah. A condição humana, tradução Roberto Raposo, pref. Celso Lafer, 10ª Ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

8 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia vol. 5, São Paulo: Ed. 34 Coleção Trans, 1997/2012.

9 Ibid.

10 PERÉZ, P. E. C., ACEITUNO, R. MATAMALA, F. FISHER J. Violencia de Estado y trasmisión entre las generaciones, Política & Sociedad(Madr.) 54(1) 2017: 209-228.

11 ROLNIK, Suely., O Furor do Arquivo, 2012.

12 BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas vol I: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.

13 A condição humana, op.cit.

14 DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

15 FOUCAULT, Michel.História da sexualidae I. La volonté de savoir. Paris: Gallimard, 1976.p. 190 -191.

16 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2009.