Nº6 VIDAS ESCONDIDAS
Sandrine Teixido e Aurelien Gamboni. A resposta emocional do pescador no turbilhão, 2012. Coleção do Fundo de Arte Contemporânea da Cidade de Genebra (FMAC).

Navegando uma paisagem assombrada: Um conto como ferramenta no Morro do Bumba

Sandrine Teixido

Em 2010, enquanto estava a arquivar os artigos sobre a “tragédia do Bumba” – o desastroso deslizamento de lixo e lama que matou mais de 250 pessoas e deixou muitas mais desabrigadas no Morro do Bumba Niterói, nos arredores do Rio de Janeiro – nunca imaginei quão central este evento se tornaria no meu futuro artístico. O “Bumba” assina o meu compromisso com o projeto A tale as a tool, que estou a desenvolver desde 2011 com o artista suíço Aurélien Gamboni. A referência ao Bumba, desde o início do projeto até colaborações mais avançadas, como na exposição coletiva Baía de Guanabara: Águas e vidas escondidas no MAC de Niterói, em 2016, apresentou-se como o terreno fértil de uma arte que combina pesquisas e práticas partilhadas numa época em que o “antropoceno” nos obriga a aprender a viver, nas palavras da antropóloga americana Anna Tsing,1 sobre as “ruínas do capitalismo”.

A tale as a tool [Um conto como ferramenta] propõe, de três maneiras diferentes, a utilização do conto “Uma descida no maelström”, de Edgar Allan Poe2, como ferramenta. Por um lado, a estrutura narrativa nos permite estabelecer um certo tipo de investigação que enfatiza a atenção ao ambiente. Por outro lado, o modelo proposto pelo conto abre a possibilidade de explorar o potencial “ecopsicológico” da figura do redemoinho como uma viagem emocional em tempos de crise ecológica. Finalmente, a maneira como escolhemos ativar esses diferentes potenciais gera formas de arte que exploram e questionam as possibilidades de uma “arte em comum”. 

Do Bumba ao maelström e do maelström ao Bumba                                 

No 7 de abril de 2010, o Bumba foi o epicentro de uma tragédia que matou pelo menos 46 pessoas com mais 150 desaparecidos, presumivelmente mortos, e inúmeros outros desabrigados.3 Àquela altura eu visitava o Rio de Janeiro e a tragédia pareceu-me ser um acontecimento tão significativo e complexo que eu decidir criar um arquivo dos artigos da imprensa local e nacional sobre o assunto. Um ano depois, comecei a trabalhar com Aurélien Gamboni num projeto chamado Into the Maelström, baseado no conto, A Descent into the Maelström (1841). Nos encontramos durante um curso de formação, iniciado pelo filósofo e antropólogo francês Bruno Latour, que reuniu pesquisadores e artistas. Colaboramos mais efetivamente numa reconstituição das negociações climáticas de 2009 em Copenhaga, que tinham resultado em um não-acordo entre as partes envolvidas. No Outono de 2011, fomos convidados a imaginar uma instalação para o festival Les Urbaines em Lausanne. Para esta instalação, Aurélien tinha construído uma escultura que representava o turbilhão na forma de um hemiciclo. Isso nos permitiu refletir sobre o lugar das diferentes nações nas negociações climáticas, imaginando que os mais vulneráveis estavam mais próximos do fundo do turbilhão enquanto os mais favorecidos estavam na sua borda.

Para melhor compreender o que está em jogo aqui é preciso voltar ao enredo da história de Poe. Ao largo da costa do arquipélago de Lofoten, na Noruega, três marinheiros (que são também três irmãos) estão habituados a pescar nas proximidades do redemoinho, porque as correntes aí existentes são a garantia de uma boa pesca. Com o seu conhecimento dos horários das marés, as viagens decorrem sem problemas, até o dia em que se encontram presos no redemoinho. Muito rapidamente, o mais novo dos irmãos vai até a borda, enquanto o mais velho se afunda gradualmente na loucura. O segundo irmão – que é também o sobrevivente e aquele que conta a história ao narrador – passará por diferentes fases emocionais (terror, admiração, amargura, curiosidade, etc.) antes de chegar a uma série de observações que lhe permitirão salvar a si próprio. A observação do seu ambiente torna-o consciente de que os objetos cilíndricos vão para o fundo menos rapidamente do que outros. Assim, decide prender-se a um barril e, quando a água se fecha, ele anda à deriva, sendo pescado depois por colegas a quem conta o seu infortúnio, no qual acham difícil de acreditar.

Inúmeras “atualizações” foram extraídas dessa história, destacando a diversidade de formas de apreender as problemáticas que o conto de Poe apresenta. O teórico canadense Marshall McLuhan4 vê o redemoinho como uma imagem do “turbilhão de informação eletrônica” que se deve aprender a navegar. O sociólogo alemão Norbert Elias5 usa o conto para analisar a dinâmica de um possível risco de guerra atômica durante a Guerra Fria. Bruno Latour6 interroga as questões de percepção e adaptação ligadas ao “novo regime climático”, enquanto o professor de literatura Yves Citton7 aborda os desafios de “atenção” levantados pelo colapso dos “vivos”.

Como parte do festival Les Urbaines, em 2011, instalamos uma tela que projetava um script dentro da escultura de montagem climática. O script consistia numa montagem de excertos das fontes utilizadas por Poe, mas também de eventos que ressoavam com o conto. Entre eles, a tragédia de 2010 figurou de forma proeminente em minha memória. Excertos de comentários feitos por residentes do Bumba em redes sociais constituíram um coro baseado na canção “Construção” (1971) de Chico Buarque. A canção descreve o último dia de um operário de construção cuja queda para a morte é tratada, em meio a uma sociedade capitalista tecnocrática de ordem e progresso, como meramente “atrapalhando o trânsito / público / sábado”. As palavras têm a peculiaridade, na letra, de mudar a cada refrão do refrão – o operário primeiramente atrapalha o trânsito, depois o público e depois o sábado, por exemplo, resultando num significado totalmente diferente e permitindo ao seu autor denunciar de forma rotunda a ditadura militar da época. O gênio de Chico Buarque é ter imaginado essas modificações a partir das mesmas palavras, jogando com o seu rearranjo progressivo. Apliquei o mesmo processo ao script, introduzindo a tragédia do Bumba sob a forma de um refrão cujas palavras mudaram gradualmente para mostrar que não era fácil caracterizar aquele acontecimento: mudança climática, negligência municipal, incerteza jurídica, etc.

O Bumba está ligado ao nascimento do projeto A tale as a tool, uma vez que representa o “primeiro” campo de investigação da nossa colaboração. Infelizmente e apesar da nossa vontade de desenvolver uma investigação específica no Morro do Bumba, o interesse pelo projeto levou-nos para longe de Niterói, desde que fomos convidados pela primeira vez para a bienal do Mercosul em Porto Alegre. Depois fomos à Noruega, ao arquipélago de Lofoten, e ao Ártico, investigações que deram origem a duas conferências performadas no Théâtre de l’Usine em Genebra (2014 e 2015). Só em 2015, quando me mudei para o Rio de Janeiro, é que pude retomar uma verdadeira investigação sobre a tragédia do Bumba.

Sandrine Teixido e Aurelien Gamboni. Um conjunto de seres e objetos apanhados no mesmo sistema dinâmico, 2012. Coleção do Fundo de Arte Contemporânea da Cidade de Genebra (FMAC).
Fotomontagem de Quentin Fiore e Marshall McLuhan publicada em Medium is the message, Penguin Books, 1967.
Into the maelström. Instalação com escultura e ecrã. Festival Les Urbaines, 2011. Lausanne.

Eu estava timidamente sentada numa cadeira no escritório do diretor do Museu de Arte Contemporânea de Niterói, Luiz Guilherme Vergara, que parecia estar a arrancar o cabelo para resolver os muitos problemas que enfrentava com a exposição Baía de Guanabara: Águas e vidas escondidas, planejada para 2016, da qual íamos participar.8 Ao meu lado estavam Inês de Albuquerque e Priscila Grimberg, que, a fim de enganar a espera, iniciaram uma conversa. Fiquei surpresa quando percebi que tinham iniciado toda uma rede de colaboração afetiva e um museu ao ar livre (Rancho Verde, ver contribuição abaixo) no Morro do Bumba. Vi nessa reunião uma coincidência e um sinal de que tinha chegado o momento de retomar os fios de uma investigação que tinha estado na base do projeto, um projeto que passou a chamar-se A tale as a tool.

A tale as a tool destaca a capacidade do conto de fornecer uma série de ferramentas para a apreensão de eventos em que os aspectos climáticos, políticos, sociais e simbólicos se entrelaçam. A investigação modelada na história do marinheiro e sobrevivente do conto de Edgar Allan Poe pode nos ajudar a encontrar o nosso caminho numa situação de risco ambiental, político ou social na medida em que essas situações – características da nova condição geológica do antropoceno – se distinguem pelo entrelaçamento de elementos políticos, sociais ou ambientais, mas também geológicos ou históricos. A tragédia de Bumba é um bom exemplo de um acontecimento em que várias escalas, entidades e parâmetros – pertencentes a regimes diferenciados, caracterizados pela incerteza ou equívoco – se entrelaçam. A recolha de informações e testemunhos sobre a tragédia tende a aprofundar a incerteza quanto às suas causas, mas também a apontar a invisibilidade não somente sócio-política, mas também geológica, e a dificuldade em caracterizar os elementos envolvidos no evento.

Para transformar um conto numa “ferramenta” para uma investigação, exploramos os seus diferentes significados possíveis, bem como as atualizações mais recentes propostas pelos pesquisadores. Procuramos então outros usos possíveis da narrativa, principalmente através da interação com informadores numa situação de inquérito. Antes de entrarmos em campo, escolhemos uma tradução apropriada da obra. Numa situação de entrevista, organizamos um pequeno ritual, que consiste em colocar sobre a mesa um mapa das nossas pesquisas e resumir o conto. O objetivo dessas diferentes operações era encorajar os nossos interlocutores a prestarem particular atenção às questões em jogo no conto. Essa abordagem, realizada com e a partir de uma narrativa fictícia, permitiu experimentar em contextos muito diferentes (Brasil, Noruega, Estados Unidos) as possibilidades que os atores envolvidos têm de compreender as questões que o conto de Poe apresenta em relação à sua própria situação, aos seus conhecimentos e às suas práticas. No caso do Bumba, a transposição da atenção que o marinheiro presta ao seu ambiente permite-nos questionar a forma como os habitantes conseguiram ou não encontrar o seu caminho até no meio da tragédia e, subsequentemente, avaliar as diferentes análises que foram capazes de explicar o evento.

Da incerteza aos fantasmas: o Bumba, uma paisagem mal-assombrada.

Há muito a dizer sobre a tragédia do Bumba, mas gostaria de mostrar aqui como os protagonistas mostram uma certa atenção ao ambiente. Antes e durante o evento, os habitantes eram confrontados com alertas sonoros, visuais ou olfativos que lhes permitiam navegar (ou não) no caos em que estavam imersos. Posteriormente, diferentes “olhares” fizeram sobressair a natureza “entrelaçada” das diferentes causas e tornaram visível uma série de entidades que tiveram um papel no desencadeamento do evento: critérios geológicos e climáticos, resíduos, história do bairro. Esses elementos, como fantasmas, têm assombrado e continuam a assombrar o Morro do Bumba. Tomo emprestada a noção de “paisagem mal-assombrada” (haunted landscape) do trabalho de Anna Tsing e Nils Bubandt. O seu trabalho coletivo concentra-se nos “fantasmas e monstros do antropoceno”.

The contributions to Arts of Living on a Damaged Planet demonstrate — we must share space with the ghostly contours of a stone, the radioactivity of a fingerprint, the eggs of a horseshoe crab, a wild bat pollinator, an absent wildflower in a meadow, a lichen on a tombstone, a tomato growing in an abandoned car tire. It is these shared spaces, or what we call haunted landscapes, that relentlessly trouble the narratives of Progres, and urge us to radically imagine worlds that are possible because they are already here.9

O Morro do Bumba pode ser entendido como uma paisagem mal-assombrada por um passado e entidades mais ou menos visíveis que a tragédia ajudará a revelar. Segundo o antropólogo João Francisco Loguercio10, a história do Morro do Bumba está ausente como tal dos documentos oficiais. É através do cruzamento de informações geológicas, climáticas, físicas e históricas sobre espaços que atravessam o Morro do Bumba num dado momento, que podemos ter uma ideia das singularidades do lugar. O Morro do Bumba não é, portanto, uma paisagem que existe passivamente, mas o resultado de uma construção entre “olhares” expertas e endógenas.11

A dificuldade em demonstrar a vulnerabilidade do local teve um impacto significativo na política urbana aplicada a essa região. Localizado no distrito de Viçoso Jardim em Niterói, o local onde a comunidade do Morro do Bumba foi construída durante muito tempo foi um espaço desvalorizado por estar situado na bifurcação para a entrada na comunidade de alto risco social. A localização periférica desse distrito e a sua falta de valorização levou à sua invisibilidade para os serviços técnicos (geológicos, topográficos, climáticos). De acordo com Loguercio, as informações geológicas fornecida pela Prefeitura Municipal de Niterói diferem dos levantamentos do Serviço Geológico do Brasil.12 As características da região em termos de erosão, movimentos de massa, capacidade de carga, apropriação e uso do solo, só aparecem depois de uma verificação cruzada de informações de diferentes estudos que revelam a fragilidade ou vulnerabilidade a que está exposto o bairro.

De um ponto de vista político, a emergência do Morro do Bumba faz-se sentir intermitentemente, seguindo o ritmo dos prazos eleitorais e das necessidades urbanas e administrativas. A partir dos anos 1970, a cidade de Niterói se viu diante da necessidade de encontrar uma área extensa onde pudesse alojar sobras de entulhos e lixo produzido pela população e essa escolha recaiu sobre a pequena bifurcação que virou deposito de lixo até 1986. Tal como resumido por Vilma Pereira13, esses foram:

Dezesseis anos de lixos compactados neste local ainda com pouquíssimas casas. No entanto a comunidade do entorno reagiu, e em consequência Niterói teve que levar o seu lixo para o aterro sanitário de Gramacho em Duque de Caxias. Com a desativação do aterro ficou uma área abandonada, coberta por vegetação e diante da necessidade de moradia por aqueles que precisam trabalhar e morar; foram surgindo as primeiras ocupações que denominou-se Comunidade do Morro do Bumba. Ao tomar conhecimento a Prefeitura, proibiu a ocupação do local pelo governo municipal na época, Waldenir de Bragança. Mas aos poucos na ausência de fiscalização e Políticas Públicas de habitação, foram surgindo as primeiras ocupações clandestinas, por meio de pequenas casas de alvenaria. Sem reprimir a ocupação irregular no antigo lixão, o poder público local acabou por incentivar a invasão.

A Prefeitura de Niterói, que encomendou uma análise no ano de 2004 à equipe de geólogos da Universidade Federal Fluminense (UFF), cujo relatório é coordenado pelo geólogo Adalberto da Silva, chamava a atenção para o Morro do Bumba, mas as autoridades não parecem ter tido isto em conta. Liguercio mostra como o estabelecimento do vazadouro de lixo no Morro do Bumba deriva de uma visão estereotipada da periferia, que contribui para a “favelização” de um local para o qual os habitantes têm uma memória muito mais contrastada. A valorização positiva do Morro do Bumba através de uma memória oral que enfatiza o aspecto rural da região parece ter sido descartada pelo olhar perito dos urbanistas e responsáveis municipais, e depois pelos medias. Perguntamo-nos: por que essa área foi escolhida para abrigar um vazadouro de “lixão” em 1971? Para o Liguercio, os olhares “informados” dos formuladores de políticas públicas estão sustentados por ideologias como a expressa pelo “mito da marginalidade” que tende a tornar o passado rural, ainda muito presente na memória oral dos habitantes, invisível. Com a instalação do lixão inicia-se um processo de migração na região, tanto interna, dos moradores que ali residiam, quanto externa, de pessoas atraídas ao local, principalmente para o uso do mesmo (ferro velho, catadores etc.). Inicia-se, assim, a “favelização” da área. Com esses poucos elementos, podemos ver como uma região rural e periférica está gradualmente se tornando o local ideal para a instalação de um aterro sanitário. Esta transformação só pode se dar através da invisibilização de uma história do bairro que, no entanto, continua a assombrar a memória emocional dos habitantes através da tradição oral. 

Se olharmos especificamente para a tragédia de Bumba, ela faz-se sentir em sinais fugazes. Como nos explica Roberta14 – funcionária pública da escola Sebastiana Gonçalves Pinho, adjacente à encosta do Bumba – o gás metano dos resíduos escapa da mamona (rícino) em um belo gotejar de fumo. Os problemas de pele e de saúde em geral, que afetaram a população durante a atividade do aterro e continuam a afligir os habitantes após o seu encerramento, atuam como sinais despercebidos da presença perene de resíduos tóxicos que vazaram sob as casas. Durante os primeiros deslizamentos de terra, as casas desmoronadas nas dunas já não permitem a evacuação de gases, aumentando a probabilidade de novas explosões. Durante a noite de 7 de abril, reinava a maior confusão e os sinais eram difíceis de interpretar. A escuridão total e o fumo tornaram impossível para os habitantes encontrar o seu caminho. Os sons eram enganadores, tais como o “psssh” ouvido por Joanir Felipe15, que perdeu a sua esposa e a sua mãe:

A minha mulher acompanhou-me com uma lanterna e eu subi para o terraço da minha casa. Fiquei à porta a falar com dois vizinhos enquanto o tipo estava a cuidar do fio elétrico. É uma história de alguns segundos, ouvi um barulho, como um tubo a explodir, psssh… 

Como Roberta assinala, durante a noite os sons serão cruciais para a sobrevivência dos habitantes: “era tudo preto, tudo escuro, você não enxergava nada, cheiro muito ruim, não conseguia ver direito as coisas e as pessoas gritando, você ouvia gritos.” Era impossível saber exatamente o que estava a acontecer e, portanto, orientar-se corretamente. Muitos dos habitantes foram apanhados por um mal-entendido que esbate a sua orientação sobre o morro, como nos diz Roberta: “Quando houve a primeira explosão, quem por um equívoco subiu se salvou, quem desceu morreu porque houve a outra explosão e aí pegou quem estava em baixo.” Muito depois da tragédia, os odores de gás metano penetraram toda a vizinhança, acompanhando continuamente a busca e o reconhecimento dos corpos. As casas foram rapidamente engolidas ou cobertas com lama, não restou nada, nem paredes nem mobiliário. Por vezes é muito difícil realizar o reconhecimento quando todos os bens materiais de alguns dos habitantes desapareceram completamente. Além disso, muitas das casas não estavam oficialmente registradas.

30 de junho de 2017, Rancho Verde. Joanir Felipe comenta uma foto do deslizamento do Morro do Bumba tirada pelo fotógrafo Dimitrius Borja.

O Modelo Maelström e a Ecopsicologia

Estes vários exemplos mostram como as situações de chuvas fortes e deslizamentos de terras, que ocorrem cada vez mais frequentemente, trazem em jogo questões de orientação, tanto dentro do caos vivido pelos habitantes durante o drama, como para aqueles que tentam observar o evento e aprender com ele. A aventura do marinheiro no turbilhão, como relatado por Poe, deu origem a um modelo que se concentrou num problema particular: o da representação mental, do pescador, do seu ambiente numa situação de risco. Enquanto o barco segue uma trajetória inteiramente ditada pela dinâmica das correntes concêntricas e não pode ser desviado do seu curso, o pescador confinado nesse abismo em movimento não tem, a priori, outra opção que não seja observar a cena. O desafio é o de discernir elementos salientes dentro do espetáculo a priori caótico destes inúmeros pedaços de destroços que o rodeiam, reconhecer os elementos cada vez que passam à sua frente, e assim poder começar a estudar a sua trajetória. Como um investigador, ele observa e compara, tenta antecipar estas trajetórias e deduz delas um modelo lógico. Percebe então que os objetos se aproximam do centro do vórtice mais ou menos rapidamente dependendo do seu tamanho, massa e forma, o que lhe permitirá finalmente deduzir que um objeto pequeno e cilíndrico – como um barril – é o que desce menos rapidamente.

Em Involvement and Detachment, Norbert Elias recorre ao conto de Edgar Allan Poe para construir uma teoria sociológica de processos não planejados. Elias propõe analisar as relações entre nações durante a Guerra Fria, e a possível deriva para a guerra atômica, não como ações intencionais de uma ou outra das nações hegemônicas (Estados Unidos e URSS), mas como a dinâmica de processos não planeados dos quais é impossível escapar sem recorrer ao distanciamento. Para o sociólogo, a “parábola dos pescadores” sublinha a interdependência entre o perigo e a reação emocional. É distanciando-se tanto do nação como do sociólogo que se pode compreender a configuração do duplo constrangimento em que os atores são apanhados.

Essa descoberta ecoa o trabalho da ecopsicóloga Joanna Macy. Para Macy, o desespero do marinheiro é característico da nossa condição contemporânea:

No one is exempt from that pain, any more than one could exist alone and self-existent in empty space. It is inseparable from the currents of matter, energy, and information that flow through us and sustain us as interconnected open systems”.16

Tal como Elias, Macy acredita que somos prisioneiros de preconceitos cognitivos, tanto mais que não podemos acreditar no que nos está a acontecer, uma vez que os desastres ambientais são frequentemente invisíveis, inaudíveis para a maioria de nós. Os psicólogos são prisioneiros de um preconceito freudiano e individualista, em que os medos ambientais são interpretados como neuroses individuais. Mas, ao contrário do sociólogo alemão, para Macy, é através da aceitação dos nossos receios face aos riscos ambientais, e da articulação entre emoções e razão – e não através do distanciamento das emoções da razão – que podemos esperar encontrar uma saída coletiva. É caminhando com esta dor, através deste sofrimento, que podemos passar de um poder sobre a “natureza” (power over) para um poder com ela (power with).17

Outra psicóloga ambiental americana, Carolyn Baker, concentra-se em ajudar as pessoas a prepararem-se emocionalmente para o próximo “colapso”. O deslizamento de terras no Morro do Bumba – literalmente o desabamento de casas umas sobre as outras – é um sinal do “colapso” gradual que está a varrer as nossas sociedades a nível político, social e ecológico. Tanto em Navigating the Coming Chaos18 como em Colapsing Consciously, Baker tenta identificar diferentes formas de preparação e adaptação às situações de crise cada vez mais frequentes. Para Baker, “se o colapso significa alguma coisa, é uma imersão planetária num turbilhão de paradoxo”.19 Para esse fim, argumenta, é preciso familiarizar-se com as próprias emoções e recursos interiores. É mesmo à própria morte que se deve habituar-se, deixando-se ir para o abismo sem fundo representado pela queda da civilização industrial:

A queda da civilização industrial está a puxar tudo para baixo, e eu pergunto-me o que aconteceria se, em vez de resistir, nos rendêssemos a este movimento descendente. Estou a sugerir que o colapso é um poço sem fundo de dissolução? Absolutamente não. Mas antes de olharmos para o movimento ascendente, devemos primeiro ver como atravessar o colapso…o caminho para a saída é através, não por cima ou à volta, mas através. É crucial, contudo, lembrar, depois de termos descido e recomeçado, que uma outra descida será inevitável um dia.20

Por um lado, para Carolyn Baker não há outro futuro senão o colapso das nossas civilizações termo-industriais, as consequências podem revelar-se fatais e é urgente preparar-se para isso; por outro lado, há para a psicóloga uma alegria que nos invade quando deixamos cair os pedaços do nosso ego e abraçamos este novo caminho. Longe do “pensamento positivo” que atormenta as nossas sociedades, a alegria aceita a nossa parte necessária de escuridão. É difícil ver qualquer alegria na tragédia de Bumba. Mas há uma personagem que tem uma relação especial com o Morro do Bumba, com o lixo e com o bairro: Seu Hernandez. É após um primeiro “colapso”, este pessoal – a perda da sua amada esposa –, que esse homem desenvolve essa relação. Especial porque ela está cheia de alegria, uma emoção sutil que, para Baker, só pode surgir após atravessar o turbilhão, seja pessoal ou ambiental. A alegria é acompanhada de gratidão pelo que se tem e pelo que se tem passado. Cria de uma forma singular a relação com as coisas e os seres dando acesso a uma certa intuição, mesmo uma premonição, como é o caso de Seu Hernandez e a sua visão da tragédia num sonho premonitório:

É todo um sonho sobre o lixo que decidi escrever: eu estava lá, na lixeira, e o lixo pediu-me: 

– Quem está aqui? 

– Sou eu, sou eu.

– E o que é que está aqui a fazer? 

E então eu disse:

-Vim para obter experiência, sabedoria para mim, para ver se consigo salvar a ecologia porque precisamos de salvar a ecologia de alguma forma, precisamos de ganhar porque esta luta pertence a todos nós.

Vi dentro da minha cabeça o Bumba a explodir, vi todo o lixo a descer, a invadir as casas, mas será que foi apenas imaginação? Dei outra vista de olhos, mas nada. Depois tudo aconteceu realmente, se eu tivesse contado, alguém me teria chamado louco, mas oito dias depois, por volta das 20:40 p.m., durante cerca de 20 minutos, penso que tudo explodiu, tudo desabou, o lixo, todas as casas. Disseram que morreram 32 pessoas, mas havia muito mais pessoas no meio do lixo, que não tivemos tempo de remover porque os camiões estavam com pressa de remover os detritos, mas, mesmo assim, podia-se ver no meio do lixo as pernas de uma pessoa que tinha sido atirada para o caminhão, estavam realmente com pressa… Por que tanta pressa, quando tudo já tinha acontecido21.

Desde então, Seu Hernandez tem vindo a reciclar os resíduos que recolhe perto do Bumba em objetos úteis, móbiles e obras de arte. Todos os objetos reciclados são pintados de verde seguindo um sonho em que “o sistema”, uma entidade espiritual que o guia na vida, lhe ordenou que o fizesse.22

Da ferramenta à forma 

Se, como profetiza Carolyn Baker, “o colapso vai impor limites sem precedentes à espécie humana e forçar uma descida ao submundo da iniciação emocional e espiritual”23, como pode a artista contemporânea intervir, se não observando os tesouros de resiliência desenvolvidos pelas populações sob o impacto de eventos ambientais extremos? O modelo proposto pelo conto de Poe, através da viagem emocional que propõe, bem como através da atenção ao seu ambiente que impõe, apresenta-se como um possível modelo dos preparativos emocionais que teremos de passar a fim de nos prepararmos para o caos que está por vir. A capacidade de ouvir os sinais de aviso antes da catástrofe, bem como no coração do turbilhão, são competências necessárias para serem partilhadas coletivamente. Nesta perspectiva, desenvolvemos, com o projeto A tale as a tool, ativações das nossas investigações que envolvem o coletivo e mais particularmente as pessoas e testemunhas encontradas durante as nossas investigações. A criação de um baralho de cartas contendo os nossos arquivos de investigação e a leitura destas cartas e do conto de Poe em grupos de discussão permite-nos partilhar os nossos pensamentos e experiências no que diz respeito a tragédias tanto pessoais como ambientais, para as quais cada um de nós foi capaz de desenvolver as nossas próprias capacidades e habilidades, ou mesmo de fazer o nosso próprio “barril”, à maneira do marinheiro na obra de Poe.

Conseguimos experimentar várias formas possíveis de ativação durante as várias ocorrências do projeto: grupos falantes, rodas de leitura, assembleias flutuantes, gabinetes de investigação. Mas poderíamos imaginar outros como um itinerário, um ritual, um exercício de visão, uma meditação coletiva, uma refeição. Que valor devemos dar a essas formas? Para a historiadora de arte francesa Estelle Zhong, a artista que produz aquilo a que escolheu chamar de “projeto de arte em comum” – ou seja, projetos que envolvem a participação de indivíduos de diversas origens – “escolhe a conversa de materiais, reconstrução, [refeições] devido às suas formas implícitas que estão latentes e têm consequências formais decisivas: esta seria a sua própria competência artística”24. Neste quadro analítico, as descrições etnográficas e os dados recolhidos durante a pesquisa, mas também as entrevistas, conversas e leituras em suas dimensões e práticas variadas, dão origem a certas formas implícitas que são adequadas para artista identificar. Aqui nestas formas e formatos não são apenas técnicas de investigação mas também uma prática artística em si. Estes são materiais que, na sua maioria, a priori, não se destinam a tomar forma. A produção de um certo número de montagens, de marchas coletivas, permite produzir formas que geram apoios diversificados, para interpretações em movimento. Durante essas assembleias, através de um protocolo muitas vezes bastante simples, sugerimos que os participantes retomassem os testemunhos e arquivos recolhidos a fim de os reunir e utilizá-los como base para a sensibilização e “preparação espiritual para o colapso da civilização que conhecemos abrindo-nos todos os dias aos ‘pequenos colapsos’ da civilização já visíveis à nossa volta”25.

Eu propus a utilização do conto de Edgar Allan Poe como uma ferramenta para navegar no coração desse “pequeno colapso” representado pelo deslizamento de terras do Morro do Bumba. A tragédia ocorrida em abril de 2010 destacou o caráter “mal-assombrado” do Morro do Bumba, que requer o desenvolvimento de competências emocionais específicas para se adaptar a ele: é aceitando mergulhar no coração das emoções negativas, que o nosso futuro ambiental provoca, que seremos capazes de criar a resiliência para nos ajudar a ultrapassá-lo. Aqueles que já experimentaram estas “pequenas” mortes, sejam elas psicológicas ou ecológicas, estarão bem mais equipados para lidar com o “caos que está porvir”. O conto confrontado com o caso específico de Bumba também nos permitiu apontar capacidades de orientação e previsão que não se limitam aos conhecimentos científicos e técnicos, mas incluem um certo conhecimento prático do terreno da vida, uma memória afetiva dos lugares e a capacidade de aceitar o que os sonhos têm para nos ensinar.

Baralho de cartas reunindo os arquivos do projeto. www.ataleasatool.com
Rodamoinho de leituras. 08. 10. 2016. Ativação no MAC Niterói. Exposição coletiva Baía de Guanabara: Águas e vidas escondidas. Foto: Sandrine Teixido e Aurélien Gamboni.
Confabulação. Leituras ao Rancho Verde – Visoço Jardim – Niterói, 24.10.2016. Foto: Sandrine Teixido e Aurélien Gamboni.
Uma fabula como ferramenta. 06.08 – 30.10 2016. Instalação e ativações no MAC Niterói. Foto: Denise Adams.

Para mais informação:  www.ataleasatool.com

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Sandrine Teixido
Autora, artista e antropóloga. Leciona antropologia na Universidade Jean Jaurès de Toulouse (França). Criou o projeto “Um conto como ferramenta” com a artista suíça Aurélien Gamboni em 2011. Publicou uma reescrita ecofeminista do conto de Edgar Allan Poe com Cambourakis Editions (publicação de fevereiro de 2011).


1 TSING L. Anna. The Mushroom at The End of The World. On The Possibility of Life in Capitalist Ruins. Princeton: Princeton University, 2017.

2 POE Edgar A. [1841]. The Fall of The House of Usher and Other Writings. London, Penguin classics, 2003.

3 Nas reportagens sobre a tragédia tem uma grande variação nos números registrados de mortes, pessoas desaparecidas e outros desabrigados. O fato de não ter números confirmados continua ressoando os impactos emocionais e sociais da tragédia e sublinha a ausência de responsabilidade do estado. Para este ensaio utilizamos o seguinte fonte: “Morro do Bumba: triste símbolo do problema do lixo” Revista em discussão, 2010, disponível em: https://www.senado.gov.br/noticias/Jornal/emdiscussao/revista-em-discussao-edicao-junho-2010/noticias/morro-do-bumba-triste-simbolo-do-problema-do-lixo.aspx (acessado em março de 2021). Outra fonte de pesquisa: LOGUERCIO, João Francisco Canto. “Morro do Bumba, Ethnografando a transformação de uma paisagem sob múltiplos olhares”, Mestrado, UFF, 2013, p. 4

4 MACLUHAN, Marshal e FIORE, Quentin. The Medium is the massage. New-York: Bantam Books, 1967.

5 ELIAS, Norbetl Involvement and Detachment. Hokoben:Blackwell Publishers, 1987.

6 LATOUR, Bruno. Down to Earth. Politics in New Climatic Regime. Cambridge: Polity Press, 2018.

7 CITTON, Y., e RASMI J. 2020 Générations collapsonautes. Perspectives d’effondrements. Paris: Éditions du Seuil, 2020.

8 Gostaria de aproveitar esta oportunidade para agradecer a Michelle Sommer, cujos conhecimentos e conselhos esclarecidos me permitiram conhecer Luiz Guilherme Vergara e Jessica Gogan, e apoiar todo o processo criativo.

9 Tsing, Anna et al orgs., Arts of living on a damaged planet. Ghosts and Monsters of the anthropocène. Minneapolis:University of Minnesota Press, 2017.

10 LOGUERCIO, João Francisco. Morro do Bumba, Etnografando a transformação de uma paisagem sob múltiplos olhares, Mestrado, UFF, 2013.

11 LARRÈRE, Catherine e LARRÈRE, Raphaël. Do bom uso da natureza. Para uma filosofia do meio ambiente. Instituto Piaget: Lisboa, 1997 e 2000.

12 Loguercio, 2013, op. cit.,  p.30

13 PEREIRA Vilma. Desastre Ambiental: Comunidade Morro do Bumba-Niterói, RJ. Auto-edição, Amazon, 2018.

14 Entrevista realizada em novembro de 2019 na Escola Sebastiana Gonçalves Pinho, Niterói.

15 Entrevista com Joanir Felipe em 30 de junho de 2017 em Rancho Verde, Niterói.

16 MACY, Joanna. “Working through environmental despair”, in Ecosychology, Roszak, Gomes, & Kanner, eds. Washington: Sierra Club 1995, p.2.

17 Ibid

18 BAKER, Carolyn. Navigating the Coming Chaos. A handbook for inner transition. New York Bloomington, iUNiverse Inc., 2011.

19 BAKER, Carolyn. Collapsing Consciously. Transformative Truths for Turbulent Times. Berkeley, North Atlantic Books, 2013. p. 28.

20 Ibid p. 62-66.

21 Entrevista com Seu Hernandez, outobro 2016, em Rancho Verde, Niterói.

22 Para mais detalhes, ver as contribuições de Ignês Albuquerque, Priscilla Grimberg e Leandro Almeida nesta mesma edição da revista: http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/6/do-in-eco-sistemico-de-rancho-verde-bumba-niteroi/

23 BAKER, 2013, op. cit., p. 141.

24 ZHONG MEGUAL, Estelle. L’art en commun-Réinventer les formes du collectif en contexte démocratique. Dijon, Les Presses du Réel, 2019. p. 67.

25 BAKER, 2013, op. cit., p. 48.