Nº6 VIDAS ESCONDIDAS
A árvore, Colégio Estadual Professora Odysséa Silveira de Siqueira, São Gonçalo, Rio de Janeiro, 2020.

Somos árvore:  escrevivências e (des)construção1

Raquel Danielli Mota

Nossa árvore

Somos. Bom dia, hoje vamos apresentar a nossa performance: Somos. Naquela sala escura, cujo único ponto de luz desvelava apenas sombras, ouvi, surpresa, a palavra Somos. A surpresa me veio pela potencialidade da escolha de um título, não acordado previamente durante todos os inúmeros encontros que construíram coletivamente a apresentação, tão simbólico e que diz tanto sobre o processo que nos levou até aquele momento.

E no começo era tudo espanto. Lugar ocupado pelo mobiliário, fileira de carteiras separando dois grupos – também enfileirados – que dividiam o mesmo espaço, mas não partilhavam olhares, experiências. Leituras, discussões interrompidas pela imposição de já-ditos, pré-construídos que interditavam a escuta. Foi preciso tempo, tempo para desconstruir, para criar um espaço democrático e de horizontalidade das vozes, para dar vazão aos questionamentos. Professora, a senhora fica só botando perguntas na minha cabeça. Repensar, desconstruir, ressignificar.

Sala de aula? Escolheram a árvore. O nosso primeiro exercício de liberdade, de criação coletiva foi esse deslizamento de sentidos do espaço de ensino e aprendizagem. Queremos ir lá pra fora, escolhemos a árvore. Ali, embaixo daquela árvore, nosso pequeno espaço verde, nossa resistência ao concreto que abraça quase completamente a escola, era onde fazíamos nossas leituras. Assim, mergulhamos na escrevivência da Conceição Evaristo na qual, não por acaso, a mulher é presente.

Roda de conversa.

Um desdenhoso, mas, professora, hoje a gente vai só ler? precedeu a primeira leitura. Como só ler? Ler? Só? Continuamos nos organizando ao redor da nossa árvore, sem impedimentos ao olhar para o outro, sem paredes que nos roubasse a brisa daquela manhã, chão de terra, luz, liberdade. Apenas nós, nossas vozes e nossos textos. Vozes-mulheres, vozes-1meninas-meninos. Silêncio repleto de sentidos. Rimas de sangue
e fome. Deve ser o Jóquei.
São Gonçalo ecoa. A literatura provocando diferentes efeitos nas subjetividades, a escuta do texto, de si e do outro, atravessando o sujeito-leitor, suscitando olhares outros sobre si e sobre o mundo. Olhos curiosos dos que passavam não interrompiam o nosso processo. A leitura coletiva foi crescendo, cada estrofe uma voz, cada silêncio tantos sentidos. O texto literário trouxe o estranhamento, abrindo possibilidades, falas, escuta, experiências compartilhadas. Turbilhão de sentimentos. Naquele dia, intensamente, só lemos.

E agora? Posso falar? Adolescentes querem falar, querem ser ouvidos para além de respostas direcionadas às expectativas conteudistas num modelo de educação tradicional. Posso falar? Vamos para a Roda de Conversa. Nas rodas, as falas irrompem. Liberdade, respeito, escuta. Ideias, afetos, solidariedade. Não significa que em outros momentos não houvesse espaço para a fala, mas que havia ali um momento dedicado às vozes. Embaixo da nossa árvore, nos reuníamos para falar sobre o texto lido, sobre a forma como cada um havia sido afectado2 pela leitura, pela experiência daquele momento de construção. O texto reverbera, ecoa, propostas pensadas coletivamente, tudo é importante, que mudança de paradigmas! Professora, sem planejamento prévio? E o controle?  Alunos/as e professora sugerindo, debatendo, pensando as práticas, elaborando juntos as propostas.

O que fazemos com os nossos sentimentos, afectos, sonhos, imaginação? O anonimato requerido se dissolve na assunção inesperada da autoria. Fui eu que escrevi. Esse é meu. Confiança, importância, solidariedade. Tecemos uma rede de apoio, de escuta respeitosa, de compreensão dos lugares de fala. O que fazemos com os nossos sentimentos? Voltamos ao texto. Nova leitura, mais um contato com a palavra, com os versos impressos no papel, com nossos afectos. Vozes-mulheres que agora se fazem ouvir na escrita dos diários de leitura. Vozes-mulheres-sentimento-ancestralidade. Nas oficinas de Abayomi3, o texto, a arte, a desestabilização de conceitos socialmente sedimentados e a valorização de um saber que provoca novos olhares. Aquela ideia de Coisa de menina, coisa de menino, não cabe mais.

Oficina de abayomi.

Olhos d’água. Qual era a cor dos olhos da minha mãe? A pergunta que nos inquietava na nova leitura. A árvore, a roda, o texto. Vozes atravessadas pela emoção provocada por cada parágrafo lido e pela pergunta que marcava a cadência poética do texto. Afinal, qual era a cor dos olhos da minha mãe? Como assim, professora, ela não lembra a cor dos olhos da mãe? Perguntas, perguntas, constatações, identificações, empatia. Quem lembra da cor dos olhos da mãe? Silêncio. Leitura. Choro, emoção, abraço. Amor, carinho, superação, inspiração. Ah! a potência do texto literário.

Comovente é ver olhos que choram. O olhar, olhar para si, olhar para o outro, nos impactou. Na Roda, decidimos trocar olhares, os olhos de um são o espelho dos olhos do outro. Explorando outros espaços, fomos ocupar a biblioteca da escola. Sentados frente ao outro, olhares, conversa, aproximação, sensibilidade, conexão. Tanto tempo estudando na mesma sala e eu nunca tinha reparado nos olhos dele. Foi preciso tempo e a provocação do pensamento, a problematização, a aprendizagem de si, via leitura do texto literário, para a compreensão de que somos subjetividades desejantes.

Final do projeto se aproximando, começamos a pensar em formas de representar o percurso trilhado. Uma performance? Professora, não quero aparecer, não. Que vejam nossas sombras numa performance, um teatro de sombras. Produção de um texto coletivo, cartaz, roteiro, papéis, cenário, materiais, alunos/as em processo, professora coadjuvante. Ensaio, ensaio, ensaio. Professora, ele não está levando a sério, vou tirar da peça. Calma. Alguém sugere uma música emoldurando a leitura durante a apresentação. Conversa. Pausa para leitura, Da calma e do silêncio. Decidimos terminar a apresentação com poesia.

Pode entrar, terminamos com arte.

Somos. Bom dia, hoje vamos apresentar a nossa performance: Somos. Naquela sala escura, cujo único ponto de luz desvelava sombras, ouvi surpresa a palavra somos. Só então me dei conta de que não havíamos pensado em um nome para a performance, que eles/elas se organizaram sozinhos, arrumaram o espaço e decidiram que se chamaria Somos. Todo caminho percorrido dessa turma, estigmatizada como aquela que “não quer nada”, da desagregação até ao pertencimento contido na palavra Somos, passou pela minha cabeça.  E compreendi que aquela turma que não queria nada, só queria outras coisas.

Performance: Somos.

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Raquel Danielli Mota
Professora da rede estadual do Rio de Janeiro de educação desde 2007, ministrando aulas de língua portuguesa, língua inglesa e literatura. Mestre em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Bacharel e Licenciada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Membra do grupo de pesquisa NELID – Núcleo de Estudos em Língua e Discurso.



1 Texto baseado no projeto de mestrado profissional – Pofletras, pela UERJ, desenvolvidos com alunos do nono ano do ensino fundamental do Colégio Estadual Professora Odysséa Silveira de Siqueira.

MOTA, Raquel Danielli. A análise de discurso em sala de aula: promovendo outras leituras sobre os sentidos do masculino e do feminino / Raquel Danielli Mota. – 2020. 300f.: il.

2 Uso a palavra ―afecto aqui no sentido de desobstruir a capacidade de ser afetado pelo outro, pelo texto. Deleuze (Spinoza: Filosofia da prática, 2002, p. 56) afirma que a affectio (afecção) remete a um estado do corpo afetado e implica a presença do corpo afetante, ao passo que o affectus (afeto) remete à transição de um estado à outro, tendo em conta a variação correlativa dos corpos afetantes.

3 Organizamos uma oficina para confecção das bonecas Abayomi, na qual fizemos leituras, falamos sobre as narrativas que envolvem as suas possíveis origens e confeccionamos as bonecas.