Apresentação Thelma Vilas Boas, Lanchonete<>Lanchonete. Inventário/Invenção. Encontro Internacional Cuidado como método # 2, Saracura, Rio de Janeiro, 29 de setembro, 2017. Foto: Josemias Moreira Filho.

O cuidado será uma pedagogia ou não será

Rafael Zacca

Não sei se o cuidado é possível. Por isso começo por esse desvio.

Na sua Pedagogia do oprimido, Paulo Freire afirma que “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.1 Não sei se o cuidado é possível. Quero propor um pequeno arremedo para pensar a possibilidade do cuidado.

Explico antes. Recentemente, o atual prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, afirmou que ia “cuidar das pessoas”, afirmação que precedeu medidas de controle social, cultural e moral da cidade (como o desmonte de centros culturais e a desarticulação parcial do carnaval de rua, por exemplo). “Cuidar das pessoas” significa, no discurso do prefeito, como no discurso de muitas das modernas instituições (pais dirigindo-se a seus filhos, maridos a suas esposas, professores e diretores a seus alunos, policiais à população, etc.), domínio. “Cuidar do outro” não é nenhum cuidado. Ninguém cuida de ninguém – as pessoas dominam.

O discurso que geralmente se opõe ao “cuidado (domínio) do outro” demanda dos sujeitos tal grau de autonomia individual que se aparenta ao chamado por um selfmade man que fosse capaz de cuidar de si mesmo: controle o seu tempo, tenha independência emocional, desapegue-se, faça a sua própria comida, cuide de seu corpo, não espere nada dos outros, etc. Só se pode fazer tais coisas “sozinho” às custas de privilégios (frequentemente de raça, classe e gênero), que, se trazidos à tona, mostrariam que o “cuidado de si” (sua preparação mental e física “individuais”, com academias, meditação, psicanálise, etc.) é também um esquecimento das relações sociais que lhe servem de base. “Cuidar de si” não é nenhum cuidado. Ninguém cuida de si mesmo – as pessoas esquecem-se com facilidade.

Começo, portanto, com esse pequeno arremedo: ninguém cuida de ninguém, ninguém cuida de si mesmo, as pessoas se cuidam entre si, mediatizadas pelo mundo.

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Antes de me mudar, as pessoas tentaram tomar conta de mim: aparentemente eu não podia me cuidar, já que sobrevivia com uma bolsa de estudos e meia dúzia de serviços como lanceiro. Repetiam o perigo e a primeira grande dificuldade: para alugar um imóvel, três vezes o valor do aluguel, seguro fiança ou fiador. Todo mundo sabia, e tentava me alertar, que esse emaranhado de significantes, em torno da caução imobiliária, perguntava: e quem banca o prejuízo previsto? Na época, eu estava ouvindo muito Belchior. “Não tome cuidado, não tome cuidado comigo”, pedia o músico em “Antes do fim”.2 Parecia ter em mente esse sentido do cuidado, que vem de caução, do latim cautio, denotando certo estado de alerta, de cautela, de onde o inglês tirou o seu caution. É uma relação perigosa de cuidado, para quem quer residir, traz a reboque o sentido de caução, alguém quer sair lucrando: o proprietário – sim, o próprio.

Antes de assinar um contrato de aluguel, portanto, não vá pensando que está no mesmo nível que o dono. Aqui a caução, o cuidado que é tomado, separa muito bem dois níveis: ele mora no andar de cima, você no debaixo, ele está suspenso, você, a rés do chão. Como ele pode confiar em você? Fiança, fiador, fé… todas têm origem no latim Fides, palavra usada na primeira tradução, feita por aquele Jerônimo, padroeiro dos tradutores, para substituir a palavra grega Pistis, que figurava no Novo Testamento na boca de Jesus e seus apóstolos. Em Paulo – como ressaltou Agamben no dia 25 de janeiro de 2012, quando lembrou da identificação da “fé” com o “crédito” – a palavra vinha à boca como “substância de coisas esperadas”.3

“Não tome cuidado comigo”, cantava Belchior, e completava “o canto foi aprovado / Deus é seu amigo.” No álbum Alucinação, a faixa complementar a “Antes do fim” chama-se “Como o Diabo Gosta”, em que podemos ouvir: “não quero regra nem nada”.4 Valor, fiança, regra: essas coisas parecem andar juntas. Quem mora na casa de outra pessoa sabe. É o modo como, por exemplo, as instituições de “saúde e cuidado” parecem tratar historicamente os seus usuários – que, por sua suposta falta de valor, têm suas vidas livremente negociadas; que, pela quebra de confiança com o pacto da normatividade, são tratados como “pacientes”, sem agência, sem autodeterminação, sem autonomia; que, finalmente, por não fazerem as regras, devem segui-las, ou aceitar o confinamento. Por isso ainda Belchior cantava “e a única forma que pode ser norma / é nenhuma regra ter”.5

E se aqui, nesse texto, me permito misturar histórias de aluguel com histórias de arte e saúde com pessoas em estado de fragilidade, é porque não é à toa que a ideia de uma “residência” atravessa o vocabulário familiar, médico e artístico. Diante de tantos proprietários (individuais e coletivos), é difícil falar de cuidado sem fazer coro com o cearense:

nunca fazer nada que o mestre mandar
sempre desobedecer nunca reverenciar

Tomar cuidado diante de, ter cuidado com alguém, evitar o prejuízo – parece que essa forma de compreensão do cuidado se entrelaça com (ou nasce de) dinâmicas de controle da vida. Geralmente, é claro, de controle da vida do outro – como no caso da caução, que controla ou onera a vida do inquilino diante do proprietário.

Existe outra forma de compreender o cuidado? Muitas – a maioria delas demanda de nós um lugar de escuta para que possam ser aprendidas, para que possam cuidar conosco de nossas parcas formas de cuidado, para que possam fazer escola. Por exemplo, no contexto das remoções que se radicalizaram no Rio de Janeiro às vésperas das Olimpíadas, aquela que podemos ler no Vocabulários em movimento /\ Vidas em resistência, e que registra em forma de glossário os saberes construídos pelas lutas da Vila Autódromo, em que o verbete “cuidados / rede de cuidado” nos conta:

não é preciso estar muito tempo na Vila Autódromo para entender que há aqui uma coextensão entre o cuidado de si, cuidado da família, dos vizinhos, do entorno e da natureza. Cuida-se da comunidade e também de sua estrutura física. Relação entre trabalho reprodutivo (o cuidado das crianças) e o cuidado intergeracional. O cuidado dá tecido à estrutura coletiva, que é por sua vez apagada categoricamente pelo sistema neoliberal das remoções. Uma moradora nos relata que alguém disse: luta tecida a muitas mãos.6

A luta tecida a muitas mãos que teve palco na comunidade da Vila Autódromo ensina, em primeiro lugar, a chamar no plural o que costumamos chamar no singular: cuidados. Depois, ensina também que o cuidado pode ser objeto de uma tecitura: não está pronto, acabado, não é uma tarefa que conhecemos de antemão (como no caso da caução), mas algo que se constrói a muitas mãos.

Isto está mais afinado com outra origem para a palavra cuidado em português, aquela que vem do latim cogitatus. Em primeiro lugar, remete ao momento em que “cogitamos o outro”; mas é preciso lembrar que cogitatus é também particípio de cogitare. Cogitare, por sua vez, se forma do prefixo “co-”, que sinaliza ação conjunta, e “agere”, o agir, o colocar em movimento, a moção. “Co-agitar”, “co-mover”, o cuidado aparece aí como forma necessariamente coletiva, ou, ao menos, em dupla. Também com uma forma mais sentimental, no sentido de que a comoção é um motor interno que se compartilha: quando se diz “estou comovido” se quer dizer também que se está mobilizado com um fato que move o outro. Como essas formas exigem também novas línguas, novas formas de dizer, talvez não seja mal tomar de empréstimo um verso de Fagner, que embalou minha última mudança. Em “Fim do mundo”, ele canta: “faça comigo um pouquinho de cuidado”.7 “Faça comigo” é um imperativo, mas é gracioso; não porque seja delicado, mas porque aproxima gratuitamente, e impede, com isso, o desnível das relações. “Comigo” me implica na ação e me impede de estar sozinho, de me conceber sozinho.

Na acepção tradicional do cuidado, aquela que considera uma negociação entre proprietários e não-proprietários, e que concebe, portanto, uma relação verticalizada, alguém sempre se “suspende”: com isso, o dinheiro (a propriedade, o pagamento pelo serviço, etc.) suspende o desejo do proprietário, que não entra na relação, para poder, de cima, controlar melhor. O “faça comigo” exige uma horizontalização da relação, e a implicação de “mim” no processo impede um “eu” proprietário: o seu desejo não pode ser suspenso, ele se mantém ao rés do chão.

Na luta contra a propriedade, contra o proprietário, contra o próprio, surge o sentido coletivo do cuidado.

não tome cuidado comigo
faça comigo um pouquinho de cuidado

Por duas semanas, aconteceram os encontros do Cuidado como Método #2, coordenado por Izabela Pucu e Jessica Gogan. Cristina Ribas e eu pensamos os dias que chamamos de “Inventário e Invenção”, e que atravessavam a programação como uma central de troca, trabalho e pesquisa em torno de ações de arte e cuidado. Esses encontros tinham como tarefa a observação laboratorial das práticas de artistas, gestores, produtores e profissionais da saúde, brasileiros e escoceses, e a invenção de algum mecanismo que fizesse saltar, de conversas coletivas, métodos que pudessem ser traduzidos para diferentes contextos. Uma tentativa de inventariar e inventar métodos do cuidado.

Não é sem surpresa que essa palavra – método – causou algum desconforto nos encontros. Ora, se o método é um caminho pré-estabelecido, que pode adequar qualquer objeto aos seus procedimentos, como pode ser que se afine ao cuidado, que primeiro conhece, observa e escuta, para depois elaborar com o objeto o caminho a ser percorrido? Como pode ser libertadora uma prática metódica, isto é, que ordena e normatiza as ações, se é justamente pelo ordenamento e pela normatização que as instituições modernas aprisionam, disciplinam e exterminam a diferença? Que cuidado haveria no método?

Foram justamente essas instituições modernas, ou ainda, os seus discursos formadores e o pensamento que lhes serviu de sustentação, que sequestraram o sentido da palavra “método” como mera ferramenta da razão instrumental. Desde pelo menos O Discurso do Método, a palavra está associada a um sujeito que domina, escrutina, divide e clarifica o seu objeto a partir de um conjunto de regras. Mas essa regulação do método é recente na história do conceito. Na origem, não designava uma legislação com a qual o sujeito enquadra o seu objeto, mas o desvelamento de um caminho a ser percorrido na construção do conhecimento. Portanto, não tinha uma natureza normativa, mas motora: não é a estática que determina o procedimento metódico, mas a dinâmica, o caminhar.

Quando, durante o Cuidado como Método #2, Arlindo, artista que trabalha no Ateliê Gaia– o estúdio/coletivo composto de artistas residentes que foram internos do antigo sistema manicomial na Colônia Juliano Moreira 8, e que convivera com Arthur Bispo do Rosário, encarcerado no mesmo pavilhão décadas atrás, realizou sua ação performativa Tresformance, quis nos apresentar uma imagem do Bispo, não o fez de modo a explicar e clarificar os fatos de sua vida. Ao invés disso, interpretou-o, incorporou-o, e, simultaneamente, encenou no próprio corpo os dispositivos do sistema manicomial. Sem aviso prévio, em frente à antiga cela do Bispo, confiou os seus planos apenas a Diana, gerente de educação do Museu do Arthur Bispo do Rosário Arte Contemporânea, articulava, na sua performance, cenário e objetos contemporâneos (uma poça d’água de uma chuva recente, as celas abandonadas tal como repousam no complexo, uma garrafa de coca-cola, etc.) como pequenas reminiscências do passado, que ele presentificava com seu corpo. Há, na escolha de Arlindo, um método: algo que mobiliza de uma determinada maneira, e não de outra, a tentativa de construção de conhecimento sobre o Bispo do Rosário, sobre si próprio, sobre a edificação que visitávamos, sobre a história das práticas de confinamento no Brasil, e, finalmente, sobre o papel da performance e da interpretação como agentes de saber. Há também um método do Museu do Bispo que contradiz a prática e o método dominantes de nossas instituições, e que se estabelece como desvio histórico às práticas normativas, não apenas ao não impedir a agência de um usuário, como ao confiar a ele, ainda que parcialmente, a contabilização e a movimentação de um capital cultural importantíssimo da instituição (a memória e a história do Bispo). Uma investigação mais apurada e demorada permitiria a compreensão do esforço empregado (quantitativamente sim, mas, principalmente, qualitativamente – que esforço? um suor proveniente de que lutas?) por parte de usuários, arte-educadores, agentes de saúde, instituição, trabalhadores e ativistas no desvio operado por essa situação.

Nesse sentido, a origem da palavra método, que remete ao caminho a ser trilhado (e não seguido, como queria a ciência moderna), se aproxima daquilo que certa vez Walter Benjamin sonhou, em oposição ao procedimento geométrico moderno, ao afirmar que “método é desvio” (Methode ist Umweg).9 O método pode se tornar, assim, um plano, elaborado coletivamente (isto é, entre todos e tudo aquilo envolvido nas práticas de vida) para desviar em conjunto. Talvez seja este o sentido do cuidado como método: cuidado pode ser uma pedagogia, com a qual o método aprenderá a sua humanidade desviante.

Sem que se supere a verticalidade das relações de “cuidado”, sem uma prática coletiva, que possa dissolver a diferença entre proprietários e inquilinos das casas de saúde (cultural, social, psíquica e física), não se pode cuidar de fato. Essa superação não se faz da noite para o dia, nem apenas com a boa vontade, e é impossível que qualquer insight textual resolva as coisas. Limito-me a uma modesta hipótese, herdada – já que o cuidado pode ser uma pedagogia – de reflexões do campo da educação.

Tal hipótese se fortalece em mim quando penso a partir de uma fala de André Bastos, que, no primeiro dia de “Inventário e Invenção” do Cuidado como método #2, tentava desfazer a esperança ingênua em políticas de “inclusão”. Explicava-nos, André, que a inclusão poderia facilmente ser – e geralmente o é – um processo agrupamento de determinados sujeitos que passam a ser “alvos” de um conjunto de políticas. Isso faz com que as “políticas de inclusão” sejam exteriores àqueles que pretendem beneficiar, o que só poderia ser contornado por uma “inserção” que reinformasse as próprias estruturas que formulam tais políticas. Não basta “atender” determinados usuários com políticas que os assistam; é preciso inseri-los na estrutura de formulação dessas políticas para que se possa tratá-los devidamente como sujeitos.

Nesse sentido, por mais incontornável que seja a divisão inicial entre cuidadores e cuidados, ela pode ser nociva para aqueles que residem no ambiente de cuidado. A ideia de que processos e práticas de cuidado são “ensináveis”, a ideia de que podemos estudar as ações dos mais diversos agentes (médicos, artistas, usuários, gestores, etc.) e “traduzi-las” para diferentes contextos pode preparar as instituições para uma reviravolta crucial. Este é, talvez, o sonho dos encontros “Inventário e Invenção”: mais do que proporcionar ensinar e ser ensinado, a pedagogia que se constrói aí quer inventar uma espécie de campo comum de constante aprendizado em que todos podem estar. A pedagogia segue como a tímida flora desse campo, que, rasteira, nos nivela pelos pés. Dissolver as estruturas verticais e horizontalizar o mundo: com o que quero dizer que a inserção de usuários em processos pedagógicos e artísticos pode engendrar, gradativamente, novas formas de agência no mundo, e, ao mesmo tempo, destituir os não-usuários de seus poderes e privilégios que sustentam o mundo do controle e que não reconhece as formas de agência daqueles que confina. Pode ser que o cuidado seja uma esperança de humanidade desviante.

 

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Rafael Zacca
Poeta e crítico. Co-articulador da Oficina Experimental de Poesia. É doutorando em Filosofia pela PUC-Rio e pesquisa a obra de Walter Benjamin. Colabora com o Jornal Rascunho e com aRevista Escamandro. Realiza oficinas de criação, tendo atuado em universidades, escolas, centros culturais e festivais. Publicou os livros de poemas Kraft (2015, Cozinha Experimental), Mini Marx (2017, 7Letras), e A Estreita Artéria das Coisas (Garupa, 2018). É co-autor do livro de oficinas Almanaque Rebolado (2017, CMAHO, Azougue, Cozinha Experimental, Garupa). https://rafaelzacca.com/.

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1 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 24.ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997, 69.

2 BELCHIOR, Antônio Carlos Gomes. Antes do fim. In: Alucinação. São Paulo: Polygram, 1976.

3 Intervenção de Giorgio Agamben no programa “Chiodo Fisso” da emissora de rádio “Rai 3” no dia 25/01/2012. (Link para arquivo de áudio original: http://www.radio.rai.it/podcast/A42410486.mp3) Texto em português (tradução de Vinícius Nicastro Honesko) disponível em: http://flanagens.blogspot.com.br/2012/01/o-futuro-segundo-giorgio-agamben.html , acessado em 30 de abril de 2018.

4 BELCHIOR, Antônio Carlos Gomes. Como o Diabo Gosta. In: Alucinação. São Paulo: Polygram, 1976.

5 Idem.

6 RIBAS, C; SARGENTELLI, L et al. Vocabulários em Movimento / vidas em resistência. Rio de Janeiro: Instituto Goethe/Museu das Remoções e os autores, 2017, 17.

7 FAGNER. Fim do Mundo. In: Cavalo de Ferro. Philips, 1972.

8 O Ateliê Gaia é parte do Polo Experimental, centro de convivência de educação e cultural para os usuários de saúde mental e suas famílias na Colônia administrado pelo Museu Bispo do Rosário. Para mais informação: http://museubispodorosario.com/polo-exp/o-polo-experimental/

9 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sérgio Paulo Rouanet, São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. p. 50.