Poema de Hélio Oiticica, 1964. Imagem cortesia Projeto HO.

Residir e ocupar como método: O trabalho político do cuidado.

Ana Kemper

“Não há mortos que morram tanto quanto os nossos
Se um daqueles que nos pertence morre sete
ou setenta vezes no coração,
de quem apenas ouvimos falar morre uma vez, na sua data,
e os que viveram longe
Morrem-nos metade ou um oitavo. E metade
de uma morte é quase nada, são casas
decimais no sofrimento (que digo? Milésimas! Milésimas!)

Gonçalo M. Tavares. “Os Mortos” 1

 

[Nota editora N.E.] O texto a seguir foi apresentado por Ana Kemper na mesa “Residir e ocupar como método: o trabalho político do cuidado” realizado no Encontro Internacional: Cuidado como método, em 2 de outubro, 2017, Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, Rio de Janeiro. Convidados: Maria da Penha Macena, Ana Kemper, Isabela Dias; Interlocutores: Mario Chagas e Luiz Guilherme Barbosa. Mediação: Eduardo Passos.

Cena 0: Casa – Mangueira, 2017


Vendo choro. Mangueira, 2017. Photo: Ana Kemper

Hoje é sábado e estou rascunhando o pensamento para minha fala neste seminário para o hoje de segunda feira. Acontece que hoje (de sábado) me descobri repentina e totalmente sem olfato, nem mesmo o óleo de hortelã e seu frescor penetrante conseguiu furar o bloqueio, provavelmente químico, sabe se lá se reversível, causado pelo remédio que tomei contrariada para curar esta gripe que me ocupa o corpo há 30 dias. Escrevo no hoje de sábado torcendo para que no hoje da segunda feira (ou seja, hoje) isto já ter sido apenas uma experiência da não-experiência por alguns dias, que eu tenha recobrado o sentido que me foi tirado e que esteja menos baratinada com este não poder sentir, esta interdição, este embrutecimento.

Estudei que o excesso de algumas substâncias pode dessensibilizar alguns receptores de outras substâncias que estão envolvidas no processo do sentir. A molécula de hortelã está lá, fresca, canforada, abre caminho pelo epitélio, mas o receptor olfativo foi insensibilizado pela presença ostensiva do antibiótico. Impregnado, o receptor não está disponível para a molécula de hortelã. Não posso sentir seu cheiro.

Impossível não fazer relação com este conceito da saturação farmacodinâmica, quando revejo na memória a cena de Antônio, braço ainda engessado, lágrimas nos olhos, dentro de um consultório apertado na clínica da família lotada na favela da mangueira, me dizendo: “revolta eu sinto, doutora, mas não dá tempo. Hoje é quinta, amanhã faz uma semana e a polícia já matou uma menina dentro da escola na terça, a morte delas já foi.” (explico aqui: Antônio teve a esposa e a sogra assassinadas por balas disparadas pelo caveirão no dia 30/06/2017, numa operação policial que se estendeu por uma semana na Mangueira e que rendeu apenas uma notinha nos jornais, reclamando da população que, revoltada com o assassinato de Marlene, 76 anos e sua filha Ana, 47, queimou um ônibus). O que responder ao Antônio e seus filhos? Para eles, estas mortes não vão passar nunca, mas pra cidade, já passou sim. Nesta escala, em que o muito torna comum o inaceitável, os corpos que ali resistem vão perdendo o direito (mais um!) da sensibilidade, porque até a dor da perda parece negada ao corpo favelado, “Não dá tempo” “Já Passou”.

Cena 1: Rio de Janeiro, Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica (HO), julho de 2016

Era também uma segunda-feira e eu também estava aqui, tentando entrar neste mesmo auditório para assistir à mesa em que Eleonora (Fabião) iria falar, no seminário “Hélio Oiticica: Para Além dos Mitos”2</. Era segunda e eu deveria ter ido para o consultório atender meus pacientes, mas o impacto da notícia do assassinato do estudante Diego Vieira Machado3</, morto a pauladas dentro do campus do fundão, onde estudava e residia, me fez mudar o rumo e vir até o HO, onde eu havia passado o semestre ouvindo as aulas de Eleonora aqui ministradas, em busca de um lugar de afeto para lidar com a minha dor, que não era só pela morte de Diego, mas também pelo golpe já em andamento, que se ainda não havia afastado a presidente Dilma definitivamente, já mostrava seus dentes afiados a quem estivesse pela frente. A violência do golpe, do assassinato de Diego, me pareciam vir do mesmo lugar.

Pouco antes de conseguir entrar, (estava cheio, o desvio foi de última hora), toca meu celular lá fora, a voz do outro lado me causa estranhamento: Doutora Ana? (quantas de mim eu já fui, quantas de mim ainda vão me aparecer?) De doutora já não me chamam nem mesmo meus pacientes mais antigos, mas digo sim, sou eu para a voz, que prossegue: temos uma vaga de médico na clínica da família dona Zica, na Mangueira, você estaria interessada? Há exatos 10 anos eu havia deixado a medicina de família e não pensava em voltar. Mas, no momento de um golpe de estado, de retiradas de direito da população, estando munida de armas coletadas e experimentadas no campo da arte e do fazer artístico, decidi voltar e fazer minha ocupação (e dava para negar um convite da Mangueira estando no HO, ouvindo HO?), re-experimentar o cuidado como conduta (programa?). Pus meu corpo estranho neste movimento e desde então sigo negociando cada centímetro da minha presença (eu que não sou daqui, meu corpo feminino, branco, que sou 1 para 4700 pacientes, que preciso fechar a clínica de vez em quando para uma criança não vir tomar vacina no meio do tiroteio) neste ocupa-SUS performativo, causando de dentro pequenas perturbações, buscando fendas, tempos, vivendo nos desvios de ser estado (aquele mesmo que mata) e ser cuidado ao mesmo tempo na favela.

Cena 2: Morro do Palácio, Niterói, 2006

Era meu primeiro emprego, tinha a primeira assinatura na carteira de trabalho: a do presidente da associação de moradores, um favelado. Que experiência de deslocamento promoveu o PMF (Programa Médico de Família) – Niterói: Tornar médicos empregados de favelados, inverter a ordem tão naturalizada de quem trabalha para quem neste país. Pena que tais deslocamentos sejam compreendidos bem mais no campo da arte do que na saúde, e que hoje as carteiras como a minha estejam assinadas pelo departamento pessoal de alguma organização social afiliada ao governo, comprometidas com outro conceito de cuidado, mas sigamos desviando, de olho nas brechas.

Outro deslocamento, talvez o principal para minha história em zigue e zague: tínhamos ali o Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC) e seu Programa Arte Ação Ambiental4. Dinâmicas de arte e vida ativavam a promoção da saúde e permitiam experiências compartilhadas do sensível entre a população e a equipe do cuidado. E foi bem ali dentro do MAC, numa experimentação com obras da Lygia Clark, que eu percebi que andava gostando muito mais da experiência do museu do que do posto médico, e sem saber ainda, foi ali que virei a esquina em direção ao fazer artístico que me permite hoje voltar ao cuidado.

Para Eleonora, que me perguntou outro dia o que mais me interessava neste estar ali na guerrilha do dia a dia, eu não soube bem responder, mas escrevendo estas palavras, respondo, mais para o Antônio que para mim ou para ela: eu não sei ainda fazer dar tempo, ele também me escapa nas demandas mil, nas sobrecargas de números excessivos, na intensidade de muitas histórias. Também me negam tempo, Antônio. Mas sem descuidar do cuidado que me interessa fazer (e só este me interessa), estou aprendendo a me des-saturar destes muitos para estar disponível pro encontro. É nas fendas, nas brechas, que a gente pode conseguir e juntos. Sigamos, até o próximo desvio. Vem?


Ana Kemper. Como era o pensamento antes da palavra? Vídeo, 2018, 3 minutos 12 segundos.

 

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Ana Kemper
Médica Acupunturista, escritora e artista visual. Médica de família no município do Rio de Janeiro, atua hoje no CMS Dom Hélder câmera em Botafogo. Trabalhou na Clínica da Família Dona Zica, na Mangueira, entre 2016 e 2018. Como artista, usa a escrita, a fotografia e o vídeo como principais meios de expressão, já participou de exposições coletivas e uma individual e teve seu trabalho publicado em revistas e livros. Vem pesquisando de forma independente questões que permeiam as relações entre corpo, pensamento e paisagem, tanto na arte quanto no cuidado médico.
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1 Gonçalo M. Tavares. “Os Mortos”. In: Livro 1. Lisboa: Relógio D’água, 2011, 147.

2 N.E. Na ocasião (julho de 2016) Eleonora Fabião apresentou seu trabalho e um também projeto de performance / intervenção que seria realizado no Centro Municipal Arte Hélio Oiticica em novembro do mesmo ano, chamado “Movimento HO”. A artista participa nesta edição da Revista MESA com um depoimento sobre este projeto na parte 4 do vídeo Cuidado como método [http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/5/portfolio/cuidado-como-metodo-arte-politica-e-clinica-em-4-territorios-no-rio-de-janeiro/l] e também tem um ensaio sobre uma outra intervenção / performance realizada em colaboração com o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea [http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/5/portfolio/eleonora-fabiao-produzir-estranheza-e-cuidar-azul-azul-azul-e-azul/]

3 N.E. Um filme de curta metragem, Da minha pele, em homenagem ao Diego Vieira Machado foi parte da seleção de filmes por mulheres negras feita por JV Santos e exibida no centro cultural e comunitário Macquinho, Morro do Palácio, Niterói, como parte do Encontro Internacional: Cuidado como método # 2, cujo resumo pode ser visto também nesta edição [http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/5/portfolio/jv-santos-abrindo-uma-janela-filmes-no-macquinho/]

4 N.E. Para um histórico sobre o Programa Arte Ação Ambiental, pode-se ler o artigo do Luiz Guilherme Vergara nesta edição: [http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/5/portfolio/luiz-guilherme-vergara-genealogia-da-arte-acao-ambiental-elo-mac-e-macquinho/]. Também para mais informação pode-se assistir parte 3 do vídeo Cuidado como método nesta edição: [http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/5/portfolio/cuidado-como-metodo-arte-politica-e-clinica-em-4-territorios-no-rio-de-janeiro/l]