Shona MacNaughton [esquerda] Progressive, performance, Glasgow, 2017. Foto: Rachel Adams.
Millenia Lízia [direta] Empregada para um cubo branco, Serie áreadeserviço, performance, 2014. Foto: Rebeca Campagnoli
É possível ser um/a artista dissidente saudável?: Diálogos entre Millena Lízia e Shona MacNaughton
1º email 18 de dezembro de 2017: Shona Macnaughton
Olá, Millena!
Bom, um e-mail inicial… Pensei em apresentar o meu trabalho que tem maior relevância para o seu, pelo que me lembro.
A apresentação do meu trabalho no Rio estava inserida no assunto do doméstico como político, o que foi apropriado, pois eu geralmente começo um trabalho refletindo sobre uma situação pessoal, um lugar ou uma situação na qual me encontro. Ou como eu mesma e minha identidade/função como artista se relacionam com o convite a um local e são sempre sensíveis às particularidades do local. Portanto, eu costumo fazer trabalhos (artísticos) em espaços domésticos ou “reais”. Há, sem dúvida, uma perspectiva feminista nisso, pois os papéis sobre os quais eu reflito são femininos por estereótipo. Faxineiras, garçonetes, mães, colegiais, empregadas, modelos digitais 3D são papéis que eu coloquei em vídeo e em performance ao vivo. Sou influenciada de forma vaga pelo que foi denominado “trabalhos afetivos” — papéis de servir, de cuidar, papéis que usam a sexualidade feminina, o exercício do cuidado no contexto do capitalismo neoliberal.
O trabalho a seguir foi o que eu considerei mais relevante para o seu trabalho Faço Faxina, no qual você ofereceu seus serviços como empregada.
Shona Macnaughton. Adverts from the workplace = 48p, 2010.
Foi um trabalho em vídeo feito a partir da documentação de uma série de performances que eu fiz enquanto trabalhava como faxineira em apartamentos de temporada na cidade de Edimburgo. Elas não foram solicitadas, foram performances feitas enquanto eu estava sendo paga para limpar os quartos. Eu tinha acesso a todos aqueles espaços, pois meu trabalho era limpá-los. Meu método é brincar com a propriedade dos espaços. Eu só conseguia gravar por períodos muito curtos, pois a qualquer momento meu chefe poderia entrar no quadro e acabar com a ilusão. Meu objetivo era desafiar aquelas condições de emprego, reconquistar o domínio da situação. Ao tornar aquelas condições visíveis por meio do vídeo, a tensão e a ação advêm diretamente das condições de tempo, da precariedade do trabalho e das relações de capital. Por uma perspectiva básica e prática, o trabalho foi uma forma pela qual eu pude continuar fazendo arte ao mesmo tempo em que tinha que estar ali fazendo faxina. Por uma perspectiva teórica, foi feito de forma a tornar visível o trabalho oculto usado no setor turístico de uma cidade que é patrimônio mundial. O vídeo foi estruturado diretamente pelas condições de trabalho. Ele foi intitulado a partir do cálculo da sua duração e do pagamento que eu receberia por aquele tempo.
Na trajetória do meu trabalho desde então — aquilo aconteceu em 2010 —, as condições simultâneas de trabalhar como artista e trabalhar por dinheiro têm representado um conflito permanente de produtividade para mim. Essa frustração da vida real me leva a refletir sobre questões mais amplas a respeito da subjugação do corpo no emprego, do valor artístico e da realização de um trabalho no meio de outro trabalho.
Fig 1. Shona Macnaughton. Performance. Arms Length Government Body, 2016. Foto: David Excoffie. Comissionada pela Celine Gallery, Glasgow, e realizada na mesma galeria. Contando somente comigo como artista, encenei o ritual da hora de dormir de uma criança, mas direcionado ao público adulto. Substituí as palavras usadas para cuidar e educar uma criança pela linguagem artística usada para promover museus, instituições e espaços artísticos. Essas palavras foram pronunciadas no tom que seriam se alguém estivesse se dirigindo a seus próprios filhos.
Há ainda outro aspecto por trás disso: vários lugares onde eu trabalhei são edifícios históricos de Edimburgo, construídos no estilo neoclássico para refletir os ideais iluministas de livre mercado, objetividade científica, racionalidade e a posição do sujeito universal (que obviamente foi impulsionado pelo homem branco e só pode ser personificado por ele). A Collective [organização escocesa que oferece suporte e é parceria na troca entre Brasil e Escócia e no projeto da revista] está se mudando para um local e um edifício típicos do estilo neoclássico iluminista. Então, no escopo do meu comissionamento, vou pensar: de que forma uma instituição — no momento em que se torna guardiã dessa história — consegue lidar com o cuidado de corpos não privilegiados?
O que eu considero como a principal diferença quando estou lidando com esses assuntos ou o que eu poderia denominar “branco lavado” [white washed] é a ausência da questão da raça, minha subjetividade como uma pessoa branca e o relativo privilégio que isso confere a mim. Quando eu uso meu corpo em um trabalho, é diferente. Posso interpretar um papel, talvez até mesmo uma situação que eu tenha vivido ao trabalhar como faxineira, mas eu não sou vista como tal quando eu saio do trabalho. Estou pensando aqui a respeito do que você falou sobre as mulheres negras serem vistas normalmente como empregadas no Rio/Brasil e serem questionadas sobre produtos de limpeza quando estão em uma loja. Talvez esse possa ser um ponto de partida para discussão? Trazer à tona diferenças/similaridades nos contextos Brasil/Escócia e no uso do corpo?
2º e-mail 5 de janeiro 2018: Millena Lízia
Olá, Shona! Que você e seu bebê tenham um 2018 repleto de muito amor, saúde, sabedoria e redes de acolhimentos.
Muito obrigada por ofertar seus trabalhos aqui. Como te escrevi pelo messenger, fiquei muito contente com o seu contato. Mas preciso te revelar que de alguma forma me causa uma certa ansiedade ter que organizar uma conversa aqui com os meus trabalhos. Acaba que minhas proposições estéticas estão muito ligadas com os fluxos da vida e, muitas das vezes, essa pausa pra organizar o caos (inerente à própria vida e aos trabalhos) me causa algumas aflições. Mas me parece que sempre assim as coisas se dão e eu devia estar acostumada… (risos) Me parece que esse ato (o de organizar os fluxos da vida) corre o risco de cair numa possível emboscada de orientarmos uma narrativa única para os nossos projetos, mas gostaria de chamar a atenção para a parcialidade dessa narrativa que aqui se desenha. Eu mesma vivo lançando percepções várias para as coisas que realizei e as narrativas da vez estão relacionadas com as escolhas de como contar uma história, as particularidades dos registros, dos arquivos e das palavras que escolhemos. Os caminhos podem ser muitos e tortuosos às vezes. Bom, mas trata-se de um grande desafio. E, inclusive, esse é o desafio que venho encarando na escrita de dissertação do programa de pós-graduação do qual faço parte.
Recordo bem de sua apresentação no Rio e de ter percebido lugares de aproximações e distanciamentos entre nossas pesquisas, entre nossas estratégias que operam nas dinâmicas do cotidiano a partir de nossas experiências de mundo. Lembro bem de Arms Length Government Body e do Adverts from the workplace = 48p, 2010 – esse último sendo aquele que, sim, que se aproxima mais da proposição do Faço Faxina (2016) Uau! Achei muito potente a composição em torno do recente trabalho intitulado Progressive (2017)!!! De alguma forma, lembrei das discussões do não-humano que compõem as proposições de algumas pensadoras com uma orientação de um feminismo decolonial/descolonial, como a María Lugones e a Yuderkys Espinosa. Talvez as proposições Quitute (2014) e, principalmente o Empregada para um cubo branco (2014) se aproximem dessa tomada de lugar não-humano (como se deram as estratégias de dominação) para pensar as tecnologias de poder da modernidade/colonialismo e sua dobra colonialidade. Termos atribuídos até hoje às trabalhadoras domésticas – como “criada” e “doméstica” são indícios dessa relação de produção de corpos bestiais. Ah, “faxina” seria the cleaning process. Bom, me parece fundamental lançarmos olhares de interdependência pra essas histórias, para nossas histórias, para nossos territórios, para nossos corpos.
Cesaire já na década de 1950 escrevia no Discurso sobre o colonialismo o seguinte sobre o proletariado e o processo colonial, ambos constituintes da história do capitalismo: “A verdade é que a civilização dita ‘europeia’, a civilização ‘ocidental’ […] é incapaz de resolver os dois problemas maiores a que sua existência deu origem: o problema do proletariado e o problema colonial”.1 E se a gente se atenta aos estudos decoloniais, uma das denúncias mais potentes é o quanto os esquemas da racialidade foram estratégicos quanto às divisões do trabalho no cenário global. Inclusive, apenas foi possível a remuneração monetarizada do proletariado europeu graças à mão de obra forçada das colônias. Enfim, nos últimos tempos, me pareceu fundamental o entendimento global da divisão do trabalho, desde uma ótica de produção das racialidades como esquema estruturante no que toca na organização biopolítica. E, quando se toca a questão do trabalho doméstico por aqui, não apenas o esquema racial se faz valer, é preciso interseccioná-lo com as questões de gênero. Por muito tempo, o serviço doméstico foi uma das poucas possibilidades de inserção regular no mercado de trabalho para as mulheres negras, que, no pós-abolição, por conta da regularidade de seus serviços – diferente dos homens negros – eram aquelas que sustentavam seu núcleo familiar e comunitário. Essas mulheres foram nossas bisavós, avós, tias, mães… E até hoje no Brasil somos maioria nesse tipo de trabalho, que pode ser entendido como uma herança dos tempos da escravidão, mas que hoje se realiza nos apartamentos modernos. O que também não significa que, por ser mulher negra, você seja necessariamente a empregada doméstica. Mas esse é o discurso estereotipado que cai sobre os nossos corpos, sobre todas as mulheres negras.
A realização de uma série de trabalho que chamo áreadeserviço, e que contempla o Quitute, Empregada para um cubo branco e Faço faxina está relacionada com a experiência de ter morado num quarto de empregada – que era o cômodo que podia sublocar num apartamento de classe média na cidade do Rio e seus altos preço imobiliários – e por ter visto ali naquela relação de partilha as demandas dos cuidados da casa caírem sobre mim, obviamente pelo comodismo daquelxs sujeitxs da classe média brasileira em serem servidos e cuidados, pelas mulheres negras sobretudo.
Recordo que no dia que conversamos lá no Centro Municipal Hélio Oiticica, que foi o dia da minha proposição, conversamos sobre self-determination, e sobre como esse tema é aplicado nos discursos identitários. Nas literaturas feministas negras que me baseio, self-determination pode ser traduzido pelo direito de auto-declaração, sobre o direito de falar quem você é. Depois que conversamos, fiquei atenta a como esse termo era traduzido aqui. De alguma forma, entendi que era por essa ótica que gostaria de dividir contigo os trabalhos da série áreadeserviço, pela ótica da identidade e sobre a necessidade, ao longo da série, de descentralizar a questão de produção de imagem dentro dos programas performativos para construir voz, dinâmicas de conversas que transitam entrem o encontro e o confronto.
De alguma forma, para o trabalho do Faço faxina, venho querendo defender a proposta dessa construção estética como programas epidérmicos, pensando na estrutura epidérmica em que as racialidades são construídas e como os poderes são distribuídos. Trata-se ainda de pensar um programa epidérmico como zonas concomitantes de negociação, de contato, de lesão, de ferida, de contágio, de cicatrização, de resistência, de proteção, de elasticidade, de experiência, do sensível.
Venho me interessando em pensar os jogos performativos como produções cotidianas que produzem nossa existência e resistência, que estariam numa tensão entre os discursos produzidos sobre os nossos corpos e aqueles que produzimos sobre nós mesmos, que implicam na auto-declaração. Para tanto, me parece interessante apresentar ao lado dos trabalhos da série áreadeserviço também os experimentos de uma série que chamo Desperfilar, que contempla as plataformas da web 2.0 e seus jogos performativos-narrativos.
Fig 6. Millena Lízia. Desperfilar, Estudo 1. Impressão e digitalização contínua de um mesmo retrato até que não haja mais nenhum vestígio da imagem original. 2014.
Fig 7. Millena Lízia. Desperfilar, Estudo 2. Capturas de tela do computador com a sequência de “apagamento” da minha foto de perfil do Facebook listadas na Timeline em 50 dias consecutivos. As imagens do perfil são as mesmas do Estudo 1, mas dessa vez elas estão acompanhadas por toda sorte de informação da rede social e as reações dos amigos sobre a ação proposta. Sequência realizada entre os dias 02/06 e 21/07 de 2014.
Esses processos, tanto do Desperfilar quanto da áreadeserviço, acontecem num mesmo período. Me parece importante alertar como os trabalhos da áreadeserviço, sobretudo, se constroem como uma crítica à instituição. Pelos meus levantamentos, não há uma artista negra representada por galerias aqui no Rio de Janeiro, cidade do maior porto escravagista da história da modernidade/colonialismo, o Cais do Valongo, no maior país de população negra fora de África. Presença e produção de ausência parecem uma das tônicas dos meus trabalhos.
P.S.: Andei lendo sobre um museu em Liverpool, o Museu Internacional da Escravidão, que muito me interessou por colocar esse processo estrutural da indústria colonial como sendo central no processo da Revolução Industrial. Conhece?
Bom, querida, teve um momento que tentei organizar os registros dos trabalhos aqui no corpo do e-mail, mas achei que ficou confuso. Acabei criando dois documentos em PDF (e eles estão um pouco grandes – sinto muito!) referentes a cada série: Desperfilar e áreadeserviço. Como trabalho muito com arquivos, me pareceu que organizando dessa forma seria mais acessível a construção de cada processo. Quando terminei de realizar os documentos – por isso também a demora de meu retorno – fiquei com a sensação de que nós duas temos aí material para uma conversa sem fim!
Um beijo grande pra você e sua menina!!!
3o e-mail: 22 de janeiro de 2018: Shona Macnaughton
Querida Millena,
é maravilhoso ver seu trabalho de novo. Tenho muito para processar ainda, mas vou priorizar algumas coisas. Espero que o Google Translate não esteja muito longe da verdade…
Estou vivenciando uma abundância de vida, minha filha nasceu há 3 semanas (obrigada pelo seu beijo grande!) e, então, peço desculpas pela minha resposta tardia.
O “fluxo da vida”, como você descreveu, e a dificuldade de forçar uma narrativa a ele é algo com o qual fico às voltas sempre que tenho que escrever uma declaração de artista. Pode parecer que marcos de referência ou preocupações, quando vistos tematicamente, isto é, o doméstico, sejam tão amplos que eu fique ao mesmo tempo ambiciosa demais em relação ao trabalho, mas também presa de forma tediosa ao modo subjetivo. O título ou a descrição não fazem jus ao trabalho. São uma resposta a certas situações em certos contextos; como resumimos tal trabalho?
Eu gostei da forma como você categorizou seu trabalho, e o desenvolvimento do conjunto da obra áreadeserviço na direção de uma conclusão pela venda de serviços pelo Facebook é realmente interessante, você pretende fazer algo mais nessa série? Imagino que a nossa principal diferença na forma de lidar como o trabalho de faxina seja o enfoque na identidade do corpo que realiza o trabalho e seu território. No momento de fazer o trabalho Adverts for the Workplace, por exemplo, meu enfoque estava na questão econômica, não de gênero (embora, olhando para trás, eu veja que é inerente). A ideia da arte feita no trabalho ou do trabalho em si dentro ou fora do cubo branco está em ambos os nossos trabalhos, e a similaridade entre essas estratégias em contextos tão diferentes é impressionante. O sistema de valor do mercado da arte e as relações de poder de seus espaços parecem ser uma preocupação compartilhada e global. Nós também compartilhamos, eu acho, estratégias de performance de natureza confrontante. Tenho interesse em saber: você vê sua relação com o público dessa forma, confrontante? Ou pretende ser mais inclusiva? Há divisão de participações em termos de raça? Por exemplo, no trabalho Faço Faxina, o que é um contrato ancestral em oposição a um contrato de serviço?
Fig 8. Exposição “Glasgow’s Slavery Past” [Passado Escravagista de Glasgow], Biblioteca Mitchell, Glasgow. Outubro 2017. Foto: Shona Macnaughton
Eu não conheço o museu de Liverpool que você mencionou. Pelo site parece que ele, com muitas exposições que enfocam a escravidão com narrativas que priorizam o positivo, destacam a bondade dos abolicionistas e recontam a história apagada das pessoas negras — o que é importante, sem dúvida —, ignora o que você descreve como um trabalho não reconhecido de produção dos produtos que trouxeram riqueza a nós na Europa ocidental e, por consequência, economias estáveis que nos proporcionam um Estado de bem-estar social. Ignora a controvérsia fundamental: que nosso modo de vida aqui não teria sido possível historicamente sem a exploração contínua junto a [uma] divisão epidérmica. Além disso, o British Council, que financiou nossa viagem enquanto grupo, é em si soft power, um resquício colonial criado para propagar a ideologia democrática liberal do governo britânico por meio da língua e da cultura.
Fico feliz que você tenha levantado a questão da autodeclaração a respeito da qual há/houve uma lacuna no meu conhecimento e pensamento e em que, na verdade, eu me baseei para meu próximo texto para a Collective. Isso foi uma questão bem complicada para mim. Agora eu entendo como esse discurso foi cooptado pela retórica neoliberal convencional. Auto- cuidado- estado- cuidado- arte-. O trabalho para a Collective será baseado na separação entre o significado original e o contexto do autocuidado no âmbito do feminismo negro e sua manifestação neoliberal que torna seu significado literal, que está direcionada a pessoas brancas privilegiadas e que apaga o aspecto da autodeclaração. Sem ter como objetivo dar voz, fica asséptico; sem a capacidade de fricção, acaba por se tratar de criar corpos suaves. Fico me perguntando como essa ideia pode ser resgatada de uma ideologia de livre mercado que coloca a responsabilidade da doença no indivíduo e a distancia das condições sociais e materiais.
Fig 9. Livraria do aeroporto, Rio de Janeiro, 6 de outubro de 2017. Foto: Shona Macnaughton
Voltando ao “fluxo da vida”, já que, na condição de grávida e depois tendo dado à luz, eu passei pelas mais variadas intervenções de saúde pública, o que foi acompanhado por uma enxurrada de literatura de saúde pública. Quando você reproduz, sente o peso do estado de repente. Tenho interesse no tipo de abordagem que o cuidado público usa ao exercer simultaneamente um controle forte, mas com o objetivo de criar um sujeito produtivo e que cuida de si mesmo. Então, no momento em que eu estava me sentindo mais corpórea, as tendências não humanas, bestiais, como usar estampa de animais em antigos mercados de rebanho, pareceram apropriadas! Na verdade, a experiência de estar grávida no Brasil, onde a minha feminilidade estava acentuada, influenciou a performance Progressive. Foi bem diferente do Reino Unido, que é menos propenso a reconhecer o corpo de uma grávida e certamente tem menos reverência à ideia de mãe. De alguma forma, isso fez com que eu me sentisse um pouco desconfortável por estar chamando atenção, incapaz de me iludir quanto a escapar do gênero ou do meu papel como mãe, a falácia de me considerar uma artista “neutra”… A incapacidade de escapar da minha identidade ou do que era minha vida para além de ser artista foi a parte mais dura no momento dessa performance, ou talvez eu só esteja ficando mais consciente…
Fig 10. Progressive, performance, Glasgow, 2017. Foto: Rachel Adams. Um discurso público no local do antigo abatedouro Mercado de Carnes e de trocas de trabalho agrícola, transformado em apartamentos “de luxo”, na linguagem dos projetos de gentrificação da área, mas traduzido para a primeira pessoa para refletir meu corpo de grávida. O pódio onde estou é a “Caixa do Bebê” feita pelo governo escocês, um kit inicial para todos os bebês nascidos na Escócia.
Shona x
4ª e-mail: 1 de março: Millena Lízia
Shona, querida! Uau! Preciso te dizer que li seu e-mail muitas vezes já, desde que você o enviou. Ele traz muitas camadas e entendi que não poderia respondê-lo assim tão de pronto. E que talvez eu precisasse de um tempo para pensar nas estratégias de conversa que estamos tocando aqui, desde as afetações mais recentes. Bom, de qualquer forma, peço perdão pela demora da resposta. A demora também se fez pela intensificação do processo de escrita da dissertação, estimulada, entre outras coisas, pelo término da bolsa de pesquisa. Então eu procurei me dedicar ao máximo na resolução desse processo, que ainda está em andamento. Esse tema da grana, do recurso, é estruturante na produção estética dos artistas cujos corpos são dissidentes, pelo que venho acompanhando e vivendo.
Um dos exercícios demandados pela pesquisa do Faço faxina foi justamente me reunir com aquel_s que eu poderia criar uma zona de identificação, de reconhecimento. Nesses encontros, o tema trabalho/grana sempre teve presença marcante. A própria série áreadeserviço se relaciona diretamente com como enxugar os gastos de produção do trabalho, já que os recursos eram/são escassos. A resposta para isso foi centralizar as proposições no corpo, muito também por falta de escolhas e pela urgência de continuar produzindo-pensando em plataformas diversas da arte. O corpo, ainda que fraturado, se configura como um suporte fundamental – e que frágil e potente suporte. Não quero aqui montar um altar pra escassez, pelo contrário. Esse fator é limitador de nossa produção e de nossa saúde. É possível ser um/a artista dissidente saudável? Enfim, quis trazer esse tema do recurso financeiro, pois foi algo que surgiu em nossas trocas no Rio e é algo que você aponta como central no seu trabalho. Aliás, me parece importante alertar que esse tema, o da estrutura econômica, se faz central na minha produção também. Porque eu venho friccionando nesse lugar da distribuição dos poderes na sociedade que é organizado pela produção identitária. Tem autores, por exemplo, que defendem o quanto a produção racial da modernidade colonizante está diretamente relacionada com as distribuições do trabalho e, consequentemente, com as possibilidades de poder, de circulação, de produção discursiva e aí vai… A história da produção dx negrx e outras racilaidades colonizantes na modernidade está diretamente ligada com a cadeia econômica capitalista. Aliás, são os nossos corpos que estão na base dessa cadeia, que interliga assimetricamente todos outros corpos num esquema epidérmico delirante, porque há todo um investimento narrativo, discursivo, imagético que engendra as psicotecnologias de sujeição da modernidade colonizante.
Fig 11. Millena Lízia. Faço Faxina: anuncia no Facebook. Série áreadeserviço. Experiência epidérmica. 2015-2018.
Você me perguntou se a seleção do Faço faxina implicava num recorte racial. Bom, não de minha parte. Mas acabou que ao longo do projeto apenas uma pessoa negra se candidatou como contratante de meu serviço estético-acadêmico de faxina. Mas a procura também teve um declínio. Logo quando lancei os anúncios, tive muita procura. Mas, com o passar dos meses, e encarei aí uma jornada de um ano, decresceu o interesse em se lançar nessa aventura. Acho que meu principal critério de escolha era o quanto a pessoa estava disposta a se disponibilizar numa conversa. E foi isso mesmo… Cheguei a ter jornadas de 10 horas e chegava em casa exausta. Mas tratava de escrever um diário da experiência com o corpo cansado ainda e fazer um desenho da planta-baixa da residência a partir da memória. Esse material tá sendo organizado na dissertação. Tenho muito material de arquivo mesmo, incluindo os resíduos da casa que eu coletava com um aspirador de pó. Pensar o resíduo como matéria de trabalho estético tem sido uma questão pra mim também. Bom, mas acabou que realizei uma animação dessas plantas a partir de minha memória. Deixo o link aqui pra ti e recomendo que o assista em loop: https://www.youtube.com/watch?v=YY5Genxzt_4
Mas o projeto todo foi acompanhado de outras produções que andaram juntas, certamente contaminadas pelo Faço Faxina. Nem todas eu saberia te dizer se fazem ou não parte da série áreadeserviço ainda, mas certamente são cortadas por essas experiências. Na verdade, algo que tava conversando com minha mãe por esses dias é que acho que o Faço Faxina representa pra mim, de alguma forma, uma revisão dos trabalhos que realizei até aqui. Portanto, uma faxina sobre como venho me construindo como artista. Muitas coisas me atravessam. A relação com a academia inclusive e o fato de eu ter sido aceita na seleção de um programa de pós-graduação em artes justamente quando inscrevi um projeto que cria uma certa zona de obediência em relação aos papéis coloniais que me dispus a encarar. Participei de três seleções, todas com projetos relacionados com esse campo do estético e o corpo feminino negro, mas foi justamente quando me dispus a fazer faxinas que fui selecionada. Me questiono se foi coincidência, apesar de muitas vezes acreditar que esse trabalho tanto cria zonas de aderências quanto de resistências, de encontro e confronto. E isso passa por negociações comigo mesma. Ando revisando também como a história da arte (brasileira) produz conteúdo sobre _s artistas negr_s e vou dividir algo aqui com você: andei me perguntando por esses dias o quanto a vale a pena batalhar pra inserir nossa produção nesse campo, talvez seja necessário pensar em outras estratégias, em outras relações de saber e fruição estética, num outro espaço que não seja esse. Parece que a colonialidade é catalisada nos ambientes das artes visuais. Bom, poderia te dar muitos exemplos, exemplos que vivi, inclusive. Enfim, mas fico olhando pro caráter plural das produções das artistas negras e, de minha própria produção, e acredito que haja uma potência aí de nos inscrevermos, por nós mesm_s, por outras formas, outros campos. Tem uma frase preciosa da Audre Lorde, que abre um dos seus textos, que parece caber aqui: “As ferramentas do senhor nunca vão desmantelar a Casa Grande.2 Talvez a gente tenha que batalhar por outras ferramentas pra construir aquilo que desejamos entender por nossa casa.
Fig 12. Millena Lízia. Faço Faxina 12/12 (serie áreadeserviço), 2014, sob bençao de Mãe Celina de Xangô (Celina Rodrigues, gestora do Centro Cultural Pequena África) na lavagem do Cais do Valongo, importante sitio arqueológico da diáspora africana reconhecido no mês seguinte como patrimônio da humanidade pela UNESCO. Foto: Mariana Barros.
Eu tenho um material de pesquisa extenso que poderia dividir contigo. Enquanto lia seu último e-mail, lembrei da pesquisa sobre identidade da nigeriana Amina Mama, que teve formação na Inglaterra também. E comecei a pensar no quanto esse tema da identidade atravessa alguns autores que pra mim são referência e que no mínimo guardam alguma passagem pelo Reino Unido, quando não fazem sua carreira toda por aí. Bom, além da Amina Mama, pensei também no Paul Gilroy e no Stuart Hall.
Acho que podemos ir trocando aos poucos também. Vou deixar em seguida 3 links de algumas das produções que surgiram concomitantemente com o Faço Faxina. Ah, teve um “Faço Faxina, um número de dança” que foi realizado no primeiro prédio neoclássico do Rio, a Casa França Brasil, com a água imunda da Baía de Guanabara, que junta ao Atlântico. Lembrei de um trabalho seu que se relacionava com essa arquitetura. Enfim, os espaços dizem muito dos corpos e suas relações, a áreadeserviço é sobre isso.
Faço Faxina, um número de dançaQuando eu o Pedro Meyer nos encontramos durante a semana na Casa França Brasil pra nos…
Publicado por Millena Lízia em Segunda-feira, 20 de novembro de 2017
Escrita contraontológica + Revisão de ser te dãoescritos de trás pra frente com agulhas de costura e meus fios de…
Publicado por Millena Lízia em Quarta-feira, 13 de dezembro de 2017
Espero que você e sua menina estejam bem!
Até logo, Shona!
Millena.
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Millena Lízia
Carioca só se for da casca. Morou em seis cidades e em mais de 20 residências. Já se deslocou em muitos campos de atuação, entre eles o design, a animação e o cinema. Começa sua pesquisa em artes visuais muito interessada numa relação da tecnologia com o desenho e as questões pictóricas, influenciada num primeiro momento por artistas do começo do século XX que migravam das belas artes para o cinema como nova plataforma estética. Contudo, descobre a si mesma como matéria pictórica no mundo num processo de enegrecimento que se constrói em dois momentos principais: o de transitar (pelas bordas) o campo das artes visuais e o de habitar/vivenciar (pelas bordas) um quarto de empregada em uma de suas experiências de moradia. Para ela, todo cubo branco tem um quê de casa grande.
Shona Macnaughton
Artista, vive em Glasgow. Trabalha com performance, escrita e filme, dedicando-se a pensar articulações entre trabalho, subjetividade e tecnologia. Shona frequentemente desenha scripts e ações que respondem a condições políticas de espaços arquitetônicos específicos, brincando e ativando o corpo. Projetos selecionados incluem: Arms Length Government Body, Céline, Glasgow, 2016; The Universal School Girl, Dovecot Studios, Edimburgo e Jerwood Space, Londres, 2016; When slaves on another, it’s not lov, Talbot Rice Gallery, Edimburgo, 2014; e Every Translator is a Traitor, Collective, Edimburgo, 2013. Shona faz parte grupo de artistas Eastern Surf. www.shonamacnaughton.com
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1 CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Trad.: Noêmia de Sousa. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora. 1a ed., 1978, 13.
2 A apresentação seminal da poeta Audre Lorde era uma reivindicação para maiores abordagens intersetoriais nas lutas raciais, feministas e de genero. de LORDE, Audre. “The Master’s Tools will never Dismantle the Master’s House.” Sister Outsider: Ensaios e discursos. Berkeley, CA: Crossing Press, 2007, 110-114 (publicado originalmente em 1984). Disponível online:
https://collectiveliberation.org/wp-content/uploads/2013/01/Lorde_The_Masters_Tools.pdf