Lygia Clark. Rosácea, 1974/75. Proposição interpretada pela Gina Ferreira e realizada em colaboração por Ana Vitória Freire com a participação de Márcia Proença, 5 de outubro, 2017, Instituto Nise da Silveira. Foto: Denise Adams

A Rosácea no encontro Cuidado como Método

Gina Ferreira e Ana Vitória1

Ana Vitória (AV) Gina, qual foi o momento/contexto em que Lygia Clark criou a Rosácea em sua carreira?

Gina Ferreira (GF) – A Rosácea é uma da série Relaxação criada por Lygia Clark em 1974/75 com os alunos da Sorbonne, Paris. 2

A série de Relaxação pertence a um grupo de três propostas coletivas que Lygia Clark criou pouco antes da Estruturação do self, 1976: a Baba antropofágica, 1973, as Relaxações 1974/75 e o Canibalismo, 1973. Essas propostas coletivas já trazem conceitos que anunciariam claramente a dialética entre o corpo e o objeto na Estruturação do self.3

A princípio, estranhamos o nome Relaxação, nos soa mais familiar relaxamento, só na experiência é que percebemos que o termo “relaxar” é mais propício ao se referir ao afrouxamento – perda da unidade do corpo.4

AVComo os Objetos relacionais neste contexto em que a Rosácea é criada são utilizados por Lygia Clark?

GF – Na Rosácea, as pessoas se deitam com as mãos dadas e os pés convergindo num ponto. Massageia-se o corpo dos participantes com pequenos objetos de particular sensorialidade (que viriam a ser os Objetos relacionais), para depois o grupo “descansar” por um tempo determinado.

Os feixes de múltiplas sensações criadas pelos objetos (imagens sensoriais indefinidas) acabam por tirar a Gestalt do corpo e é no vazio da perda dessa unidade corpórea que emerge a vivência de um outro corpo coletivo-cósmico. Esse corpo coletivo é que dá o ancoradouro para que o ego corporal não se dissolva, estabelecendo a relação entre a parte (o individual) e o todo (o cósmico).


Fig 1. Lygia Clark. Rosácea, 1974/75. Proposição interpretada pela Gina Ferreira e realizada em colaboração por Ana Vitória Freire com a participação de Márcia Proença, 5 de outubro, 2017, Instituto Nise da Silveira. Foto: Denise Adams

AVO símbolo mandálico traz em sua forma a ideia de um conteúdo circundado, delimitado e protegido. Sua força centrípeta converge para o centro as forças periféricas. A Rosácea criada por Lygia Clark em forma de mandala humana, acolhe os corpos que vão pouco a pouco recebendo e absorvendo elementos da natureza contidos nos Objetos relacionais, tornando-se assim um só corpo. São os pés que formam a base deste corpo e não as cabeças verticalizando-os. Qual a leitura, Gina, que você poderia fazer da escolha de Lygia ao colocar no centro da Rosácea os pés e não as cabeças como eixo verticalizador do corpo?

GF – Na Estruturação do self, Lygia Clark costumava pressionar os pés do participante para criar uma sensação de verticalidade, se contrapondo à intensa perda de Gestalt do corpo.

Esse contato é que vai permitir uma estrutura vertical, preparando o corpo para ficar de pé e buscar uma maior autonomia na sua relação com o mundo, saindo assim do que seria uma regressão, uma sensação da perda do corpo, além do mais, a cabeça colocada para o exterior, e não para o centro da Rosácea, possibilita o melhor contato com o rosto que é de onde se parte para se iniciar o toque no corpo, desenhando suas linhas e marcando seus contornos, preparando-o para entrar em contato com os Objetos relacionais.

 
Fig 3. Lygia Clark. Rosácea, 1974/75. Proposição interpretada pela Gina Ferreira e realizada em colaboração por Ana Vitória Freire com a participação de Márcia Proença, 5 de outubro, 2017, Instituto Nise da Silveira. Foto: Denise Adams

AVFoi a partir da minha experiência com a Estruturação do self que venho vivenciando a mais de um ano com Gina Ferreira em seu consultório, que tive contato direto com os Objetos relacionais. A dimensão plástica que penetra o meu corpo, e suas sugestões sensório-conceituais, vêm me ajudando no alargamento e aprofundamento da minha perspectiva criativa. Esta é uma experiência solitária de certo. Porém a presença de Gina e sua “maternagem”, assim como Lygia o fazia, assegura – pelo laço de confiança que vamos construindo – que a angústia da travessia e contato com a “fantasmática”5 que se revela em partes do meu corpo sejam conduzidas em segurança. Para além da “prova do real” da pedra em minha mão, há também o que Dra. Nise da Silveira chamou de “afeto catalizador” 6, aquele que está ao lado, acolhendo nossos passos.

Gina, pela sua experiência e relatos ouvidos ao longo de anos de investimento neste trabalho, como se dá então a Rosácea como uma experiência coletiva e de que forma atuam os Objetos relacionais quando são vivenciados conjuntamente?

GF – Os Objetos relacionais estão sobre cada corpo e a experiência é, a priori, individual. Os objetos vão sim, sensibilizar este corpo que está se preparando para absorvê-los. É a partir das sensações que estes objetos causam ao serem incorporados que o corpo se torna mais fluido e o corpo coletivo emerge.

Os Objetos relacionais nem sempre são de imediato incorporados. Para que isso aconteça depende de uma entrega, de uma introjeção. É uma experiência nem sempre fácil e se dá mesmo com o tempo.

A Rosácea não é da mesma ordem de experiência que a Estruturação do self justamente neste ponto, o do tempo. Na Estruturação do self esta experiência se aprofunda, justamente por ser individual e também pelo vínculo que vai se intensificando com quem está ao lado. Isto requer tempo para se transformar num processo mais profundo.

Na Rosácea, são essas mãos dadas e os pés juntos que dão uma ancoragem, um contorno ao grupo. O que permite que as pessoas se aventurem nessa fluidez das sensações que vão atravessá-las. Assim, esse corpo que está ali quase que se diluindo em sensações é reencontrado neste corpo coletivo.


Fig 4. Lygia Clark. Rosácea, 1974/75. Proposição interpretada pela Gina Ferreira e realizada em colaboração por Ana Vitória Freire com a participação de Márcia Proença, 5 de outubro, 2017, Instituto Nise da Silveira. Foto: Denise Adams

AVO convite de Gina para realizar a Rosácea no espaço que acolhe seu projeto “Arte, Corpo e Sensibilidade”, no Museu de imagem do Inconsciente, me deu a oportunidade de experienciar, em outra dimensão, a sensorialidade implicada nas proposições clarkianas, uma vez que estar do outro lado, daquele que cuida e acolhe, escuta e manipula os objetos em função de um bem-estar do outro, é de uma outra ordem de vivência deste trabalho.

Gina, como o encontro Cuidado como Método #2 se insere no seu projeto – Arte, Corpo e Sensibilidade – e porque você escolheu a Rosácea como proposição para receber este encontro?

GF – A Rosácea foi proposta na Sala dos Espelhos para o encontro Cuidado como Método como um espaço mais amplo para um grupo, mas o projeto Arte, Corpo e Sensibilidade é realizado em uma outra sala totalmente adequada para a Estruturação do self, que visa também criar outras alternativas de trabalhos corporais ou de sensibilização, nem sempre ligados ao trabalho da Lygia Clark. Neste sentido, eu acolho, neste espaço, dentro deste projeto, outras formas criativas de reintegrar o eu fragmentado de pessoas em grave sofrimento psíquico.

Eu entendo o Cuidado como método como uma tentativa de unir diversos trabalhos entre arte e clínica, buscando traços em comum que aproximem grupos diversos que estão trabalhando com um mesmo objetivo: o cuidado com o outro.


Fig 5. Lygia Clark. Rosácea, 1974/75. Proposição interpretada pela Gina Ferreira e realizada em colaboração por Ana Vitória Freire com a participação de Márcia Proença, 5 de outubro, 2017, Instituto Nise da Silveira. Foto: Denise Adams

 

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Ana Vitória Freire
Bailarina e coreógrafa baiana. Doutora em Artes Cênicas pela UNIRIO na linha de performances do corpo. Coordenadora da Pós-Graduação em Preparação Corporal para as Artes Cênicas da FAV (desde 2010) e Professora Universitária da Faculdade Angel Vianna (desde 2001). Coreógrafa premiada; APCA-1997, MAMBEMBE-1998 e RIO DANÇA-1999. Há 18 anos vem desenvolvendo e aprofundando sua pesquisa artístico-pedagógica de criação a partir da memória e autobiografia, apoiada nos Estudos da performance. Seu Sistema investigativo – (Re) Aprendizagens Afetivas – posiciona-se no entrelaçamento entre vida e arte e ação poético-performativa, este é o tema da sua tese, que será lançada em livro em 2018.

Gina Ferreira
Psicóloga, doutoranda em psicologia Social pela Universidade de Barcelona. Trabalhou com Nise da Silveira, como coordenadora técnica da Casa das Palmeiras durante cinco anos. Estagiou com o psiquiatra R.D.Laing em Londres, na Comunidade Terapêutica de Mayfield Road em 1980, passando a se dedicar à clínica da psicose. Implementou a primeira residência terapêutica para psicóticos pelo Ministério da Saúde. Estudou com Lygia Clark o método da Estruturação do Self, sendo autorizada pela artista à utilização do método. Professora da Escola Superior de Saúde Mental do Ministério da Saúde e da Escola Superior de Dança Angel Viana.
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1 Agradecimento a Márcia Proença por sua colaboração junto à artista Ana Vitória na condução da proposição Rosácea.

2 Ver: MACEL, Christine. “Lygia Clark: At the border of art.” Catalogo da exposição Lygia Clark: The Abandonment of Art, 1948-1988. Nova York: The Museum of Modern Art, 2014. Também disponível online em três partes segue o 1º link: http://post.at.moma.org/content_items/1005-part-1-lygia-clark-at-the-border-of-art [Acessado 24/05/2018]

3 Para maior aprofundamento ver: BRETT, Guy. “Lygia Clark: In Search of the Body.” In Art in America. Vol. 82, no. 7 (Julho, 1994): 56-63, 108. Disponível em PDF na internet. http://www.luhringaugustine.com/attachment/en/556d89b2cfaf3421548b4568/Press/5880fdab8cdb50ce377aa1ca [Acessado 24/-5/2018]

4 [Nota Editora N. E.: Em Paris, Clark fez análise com o psicanalista francês Pierre Fédida. No entanto, seu método extraiu mais diretamente das técnicas de relaxação desenvolvidas pelo psicanalista russo-francês Michel Sapir. Aqui a proposta não é “relaxar”, mas sim “relaxação”, palavra que Lygia apropria do francês, que é uma espécie de escuta profunda do corpo. Aqui “o psicanalista-relaxador, através de suas induções, verbais, táteis ou de outra forma, permite ao sujeito ouvir as sensações que surgirá nele, os colocará em mundos e fará conexões com sua história.” Veja https://www.cairn.info/revue-de-psychotherapie-psychanalytique-de-groupe-2007-1- page-93.htm # pa10].

5 Os termos, “maternagem”e “fantasmática” são usados pela própria Lygia Clark em suas proposições por Estruturação do self. Ver: FERREIRA, Gina org. Memória do Corpo – Glossário de casos clínicos de Lygia Clark. Disponíveis na Biblioteca do Museu do Inconsciente e na Biblioteca da faculdade Angel Vianna – Rio de Janeiro.

6 MELLO, Luis Carlos. Nise da Silveira: Caminhos de uma psiquiatria rebelde. Rio de Janeiro: Automática Edições, 2015, 23.