Arlindo. Trêsformance. Performance realizada por Arlindo no Pavilhão 10 da Colônia Juliano Moreira, zona oeste do Rio de Janeiro, no dia 04 de outubro de 2017 como parte do Encontro Internacional Cuidado como método #2. Foto: Denise Adams.

Arlindo, O artista

Ricardo Resende

Quem define o artista e quem não é? Quem define o que é arte e o que não é? Arlindo se define como artista. Artista do Ateliê Gaia dos mais antigos – o estúdio/coletivo composto de artistas residentes que foram internos do antigo sistema manicomial na Colônia Juliano Moreira. 1Beira os 30 anos sua frequência nesse lugar de criação e convívio.

Perguntado o porquê de fazer arte, justificou fazer sua arte para agradar as crianças. Embora homem maduro, pensa com a inocência e malícia de uma criança.

Em um primeiro momento de contato, o que vi foi um Arlindo arredio, mal-humorado, desconfiado de nossas intenções. Bravo, não admitindo que o questionassem, que o fotografassem e nem que tocassem nas suas obras sem sua autorização. E, muito menos, sem dizer o por que, se fotografasse sua obra. Sim, pode-se dizer obra, no caso de Arlindo. Possui uma enormidade de trabalhos organizados em uma sala. Esse conjunto, que poderia ser entendido de autoria de um acumulador, parece uma procissão do artista Nelson Leirner.

 

Passaram-se mais de três anos daquele primeiro contato, em que ao dirigir-se a minha pessoa, o novo curador do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea (2014), me disse em tom bastante reivindicativo e desafiador: por que o Bispo e não eu?

Isso fez com que prestássemos ainda mais atenção no artista que, com o tempo, foi se mostrando pessoa atenciosa, carinhosa e profissional. Tinha os seus propósitos ao trabalhar, não só o de vender seus trabalhos. Mas também constituir uma obra.

Arlindo coleta materiais descartados nas ruas de Curicica e Taquara e os ressignifica. O seu ambiente natural desde sua adolescência, quando chegou para ser internado na Colônia Juliano Moreira. Desde lá, muito mudou. Melhor, Arlindo se transformou e foi com a arte e pela arte. Hoje é um homem mais tranquilo, conciliador, consciencioso e que exige o seu espaço, os seus direitos e cumpre com os seus deveres. É um artista.2

 

Tem responsabilidades com o mundo e seus colegas. Mais recentemente, absorvendo o que tem visto e vivenciado nas ações do Museu Bispo do Rosário, me refiro à exposição “Das Virgens em Cardumes e a Cor das Auras”, 2016, com curadoria de Daniela Labra. Depois de ver as inúmeras performances e ações que aconteceram no decorrer dessa mostra que teve como proposta expositiva pensar a obra de Arthur Bispo do Rosário como uma grande performance de vida, nos propôs fazer uma em que incorporaria a figura de Bispo. Vimos a possibilidade nesse desdobramento em colaboração com o Projeto arte_cuidado na ocasião do Encontro Internacional: Cuidado como método # 2. Foi proposto para Arlindo que apresentasse sua performance inspirada no Bispo do Rosário. O ambiente seria sua cela. O artista foi vizinho de cela do Bispo, no Pavilhão Ulisses Viana.3

Arlindo nos conta desse convívio quando está disposto. Bispo não era de muitas palavras. Meio arredio. Arlindo de certo modo encarna essa figura hoje.

Pois bem, veio a possibilidade de convidá-lo para performar na Cela onde viveram por décadas, um ao lado do outro. Arlindo se superou. Nos surpreendeu com sua atuação contundente, cenográfica e bem desencadeada. Levou alguns a emocionarem-se. Deixou perturbados outros diante daquela experiência forte. Realista. E dramática. Arlindo se superou como artista que ressignifica materiais descartados transformados em aviões, carros de polícia, figuras humanas, bichos, cemitérios, caixões de defunto, uma verdadeira fixação por esses temas.

Arlindo, nesse processo de transformação provocado pela Arte, é outro na extroversão, tanto que lhe permite ser na frente de uma plateia, de performar, de ser ator de si mesmo. Representar portanto, a loucura. Retomar o seu lugar para si. Que não volte nunca a ser o mesmo. Depois desse encantamento de ser artista, Arlindo é resultado.

O artista é fruto de um trabalho livre das amarras de uma arte orientada. Arlindo é hoje a liberdade de criação.

Performance de Arlindo. Trêsformance. Filme de Daniel Murgel 2017. Registro de performance realizada por Arlindo no Pavilhão 10 da Colônia Juliano Moreira, zona oeste do Rio de Janeiro, no dia 04 de outubro de 2017 como parte do Encontro Internacional Cuidado como método #2. Duração original 40 minutos.

 

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Arlindo Oliveira da Silva
Usa suportes variados e técnica mista, juntando elementos como madeira, luzes, vestimentas, brinquedos e objetos coletados no território onde vive e trabalha. Desde 2017, desenvolve performances relacionadas à sua vivência como interno numa instituição manicomial. Há quase 30 anos integra o Atelier Gaia, programa do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, que atualmente conta com a orientação de Diana Kolker. No Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, participou das exposições “Quilombo do Rosário”, com curadoria de Roberto Conduru (2018); “Sobrevivências: Sobre Vivências”, com curadoria de Ricardo Resende (2017); “Play”, curadoria de Marta Mestre e Fernanda Pequeno (2013). Em 2017, participou da exposição “Constelar”, curadoria de Marcelo Campos, na Instituição Pro-Saber. Participou da mostra “Lugares do Delírio”, curadoria de Tania Rivera, no Museu de Arte do Rio (2017) e no SESC Pompeia, em São Paulo (2018) apresentando esculturas, instalações e uma Performance. Tendo sua obra adquirida pelo acervo do MAR. Recentemente foi um dos artistas selecionados para a Bienal Naif, realizada em 2018, pelo SESC Piracicaba.

Ricardo Resende
Mestre em História da Arte pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é curador do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, Rio de Janeiro; antes, foi diretor geral do Centro Cultural São Paulo, de 2010 a 2014. É autor do primeiro livro sobre o artista Hudinilson Jr, Posição Perigosa, com apoio do Itaú Cultural.

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1 O Ateliê Gaia é parte do Polo Experimental, centro de convivência de educação e cultural para os usuários de saúde mental e suas famílias na Colônia, administrado pelo Museu Bispo do Rosário. Para mais informação: http://museubispodorosario.com/polo-exp/o-polo-experimental/

2 N.E. Para um depoimento do artista ver parte 2 do vídeo Cuidado como método nesta edição [link]

3 http://museubispodorosario.com/colonia/cela/