Hanna e Fiona, Cherry Road. Foto: Wendy Jacob, 2016

Vibrações: do Rio e de Cherry Road

Wendy Jacob

Estamos sentados em uma espécie de anfiteatro a céu aberto no alto de um morro no Rio. De um lado, uma favela se espalha; de outro, um penhasco íngreme e o mar. Estamos esperando um filme começar. Diante do público, um médico vestido com um jaleco branco responde a perguntas sobre câncer de próstata. Um jovem quer saber se ejaculação precoce é um sintoma. O público cai na gargalhada. O médico diz que provavelmente não e conclui sua resposta incentivando todos a fazerem sexo seguro. Começa o filme. Um vídeo feito pelo coletivo de jovens artistas brasileiras Mulheres de Pedra é projetado em uma parede caiada. A fluidez com que aquela multidão passa de pacientes a público de arte me impressiona, bem como o fato de tudo estar acontecendo em público.1

Ao contrário do Rio, em Midlothian, na Escócia, está fazendo frio e o céu está cinza. As portas de correr de vidro do Centro de Aprendizagem Cherry Road – um centro público diurno para adultos com autismo e com deficiências cognitivas e de desenvolvimento complexas 2– se abrem para uma sala luminosa, com o pé-direito alto e com um leve cheiro de desinfetante. Uma mulher pequena, com cabelo loiro puxado para o ruivo num corte estilo bob, abraça uma das pilastras de ferro fundido que sustentam o teto. Ela envolve, abraça e por vezes beija essa pilastra. Um homem ali perto sorri. No linguajar de Cherry Road, a mulher, Fiona, é uma usuária do serviço. Ela não usa a linguagem falada, mas demonstra aprovação levantando o polegar. O homem, John, é um provedor de cuidado e conhece Fiona há muito tempo. Ele fala com um sotaque escocês carregado. Eles se entendem harmoniosamente.

Eu sou o terceiro nesse trio: um visitante dos Estados Unidos, um convidado da Artlink, um artista contratado para desenvolver uma obra para o Cherry Road. A pilastra que Fiona está abraçando é o resultado disso. Em outros contextos, eu diria que essa pilastra é arte, mas aqui no Cherry Road é também algo a mais: entretenimento? terapia? um reflexo das várias horas que passamos aqui?

Embora a pilastra envolta nos braços de Fiona pareça silenciosa e inerte, ela é barulhenta por conta dos ruídos gravados da máquina de lavar do Cherry Road. Se você encostar nela a orelha e envolver a circunferência com os braços, pode ouvir o som com o corpo todo, especialmente no último ciclo de lavagem. Eu projetei a pilastra para Donald e Nicola, dois usuários do serviço que já passaram a maior parte da vida adulta no Cherry Road. Assim como Fiona, eles não usam a linguagem convencional e não podem nos dizer o que estão sentindo, o que gostam ou o que querem fazer. No entanto, a equipe de cuidado está trabalhando com eles há muito tempo e entende as nuances dos gestos e das expressões. Por mais de um ano e meio, a equipe de cuidado e eu prestamos atenção aos sons aos quais Donald e Nicola prestavam atenção e criamos uma playlist com os que pareciam ser os favoritos deles. A playlist inclui os zumbidos e barulhos da máquina de Coca-Cola, da máquina de lavar e da chaleira elétrica do centro Cherry Road, todas funcionando no ápice, bem como as vozes da equipe de cuidado de Donald e Nicola chamando seus nomes. Donaaald… Niiiicolaaaaa … NicoLA! Com a ajuda de um engenheiro de som, eu gravei os sons e os coloquei na pilastra, onde podem ser vivenciados a qualquer momento sem assistência.


Fig 1. Entradas do Diário de Sons. Foto: Wendy Jacob, 2015


Fig 2. Adriana Minu gravando som, Cherry Road. Foto: Wendy Jacob, 2016

O saguão do Cherry Road é o local mais público da instituição. É ali que visitantes se reúnem, que se fazem entregas e que motoristas embarcam e desembarcam usuários do serviço. De manhã e no fim da tarde, fica agitado com a entrada e saída de pessoas dizendo olá e até logo. Donald e Nicola fazem parte desse público. A pilastra de som é feita para eles e se mantém como um testamento público de seus desejos. Mas não é só para eles. Fiona gosta dela e me disseram que os funcionários e os demais usuários do serviço também gostam. A pilastra é para todos que entram pelas portas do saguão.

No alto da montanha no Rio, a discussão sobre saúde pública e a exibição do filme se transformam em uma festa de samba, com público, artistas e crianças da vizinhança, todos dançando noite adentro. No Cherry Road, Donald e Nicola são os DJs: eles escolhem os sons. Agradeço a Cristina, Izabela, Jessica e Zacca.

Agradeço também a Adriana, Alison, Brenda, Dawn S, Dawn H, Hanna, John, Kingsley, Lisa, Liz, Miriam, Rachel e Zara pela possibilidade dessas trocas.

 

***

 

Wendy Jacob
É uma artista americana cujo trabalho inclui escultura, instalação e design, e explora as relações entre o corpo e o mundo físico. Seus trabalhos incluem paredes e tetos que respiram, cadeiras que abraçam e pisos que ressoam com som sub-audível. Ela trabalhou com engenheiros, atletas e músicos; com o cientista animal Temple Grandin e com crianças autistas. Em um projeto recente, trabalhando com Artlink, Edimburgo, ela explorou a física dos sons ambientais diários no contexto de um centro de dia para adultos com dificuldades profundas de aprendizagem. As obras de Jacob já foram expostas no Kunsthaus Graz, no Centro Georges Pompidou, no Museu Whitney de Arte Americana e no Museu de Arte Contemporânea de San Diego.
_______

1 Estes filmes foram exibidos no Macquinho, Boa Viagem, Niterói como parte do evento Macquinho ON e com a curadoria de JV Santos. [Nota editora N.E.: Para mais informação, ver a secção de “Intervenções: Abrindo uma janela: Filmes no Macquinho” organizada por JV Santos nesta edição: http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/5/portfolio/jv-santos-abrindo-uma-janela-filmes-no-macquinho/]

2 O Centro de Aprendizagem Cherry Road oferece experiências customizadas e personalizadas para dar suporte a adultos com dificuldades de aprendizagem e a adultos com autismo. Antes baseado em um modelo mais tradicional de cuidado, o serviço se reformulou em colaboração com a Artlink, organização líder em artes e assistência a pessoas com deficiências. Isso possibilitou o desenvolvimento por parte do serviço de experiências criativas e enriquecedoras para as pessoas e melhorou significativamente a forma do suporte dado a pessoas com necessidades muito complexas, levando a uma mudança positiva prolongada e contribuindo para a diminuição do uso de serviços de saúde e cuidado.