Oficina aberta de música no EAT. Encontro internacional Cuidado como método # 2, 3 de outubro, 2017. Foto: Denise Adams
Oficina aberta de música no Espaço Aberto ao Tempo
Leandro Freixo
O presente texto apresenta a oficina aberta de música, que ocorre periodicamente no CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) Espaço Aberto ao Tempo (EAT) e se realiza através de duas sessões de musicoterapia com duas horas de duração,às segundas e terças-feiras, toda semana às 14hs. Como musicoterapeuta, estas sessões são coordenadas por mim e contam com a frequente participação dos clientes que fazem tratamento de saúde mental no EAT, e com a possibilidade de participação de clientes de qualquer outra unidade pertencente à rede de saúde mental do município do Rio de Janeiro, ou ainda com a presença de qualquer pessoa da sociedade que queira participar, entre essas comparecem familiares e amigos de pessoas em tratamento, músicos, professores de música, artistas, estudantes ou profissionais de ciências sociais, e por vezes artistas ou profissionais da área de saúde, provenientes de outros países.
São também realizadas, periodicamente, atividades em parceria com instituições de cultura e educação como universidades, museus, teatros, pontos de cultura ou com outras unidades da rede de saúde mental do município do Rio de Janeiro ou de outros municípios, onde ocorrem as apresentações da banda Alterado Jazz Band – banda formada por frequentadores da oficina, que realiza os ensaios preparatórios para suas apresentações na própria oficina.
Para que se possa apresentar esta oficina, descrever a dinâmica de seu funcionamento e falar sobre os seus objetivos e seus e/afeitos, é necessário que antes seja feita uma contextualização sobre o local onde este trabalho acontece, que se fale um pouco sobre a história do EAT e sobre como a oficina surgiu e vem se desenvolvendo.
Iniciei minhas atividades no EAT no ano de 1996, ainda como estagiário de musicoterapia até o ano de 1998. Em 1999 e 2000 retornei como residente em saúde mental da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ), tendo sido o primeiro musicoterapeuta no Brasil a fazer este curso. Em 2001, quando o cargo de musicotearapeuta foi criado no âmbito da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, retornei ao EAT como membro da equipe multidisciplinar que compõe o CAPS e permaneci até 2003. Depois um tempo fora do Brasil e focando na minha careira como músico, retornei como integrante desta equipe no ano de 2014, e permaneço até hoje.
EAT: Experimentando novas práticas
O EAT é uma unidade de tratamento em saúde mental que tem, desde os anos oitenta, atuado com uma contribuição de grande importância para a história da Reforma Psiquiátrica no Brasil, no que diz respeito à substituição de um modelo hospitalocêntrico, baseado em internações de longa permanência, por um modelo de atenção diária psicossocial onde a manutenção dos vínculos com a sociedade e a possibilidade de expressão dos conteúdos subjetivos é fundamental para a estruturação psíquica do sujeito, para a continuidade de um estado de saúde mental e social e para a produção de prazer e alegria em atividades criativas como método comprovadamente eficaz na promoção de saúde e do exercício de cidadania.
A Reforma Psiquiátrica no Brasil sofreu forte influência do trabalho realizado pela doutora Nise da Silveira, e da reforma psiquiátrica Basagliana que aconteceu na Itália. O EAT, em seu início nos anos oitenta, começou a partir de uma proposta de transformação de uma enfermaria psiquiátrica do Centro Psiquiátrico Pedro II (hoje Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira) em uma enfermaria que passou a ser chamada de EPA (Enfermaria de Portas Abertas) onde as pessoas que comumente estavam realizando tratamento psiquiátrico em regime de internação de longa permanência, com oferta exclusiva de remédios e reclusão como recursos terapêuticos, passaram a ter autorização para sair da enfermaria e retornar ao local de tratamento quando bem quisessem e quantas vezes quisessem. Começou-se então o trabalho com o conceito de que não se devia privar o indivíduo de seu direito de ir e vir, e de que a decisão de iniciar e permanecer em tratamento também seria de direito exclusivo deste sujeito.
Lula Wanderley, médico e artista plástico, e os demais integrantes da equipe decidiram que ofereceriam aos clientes que retornassem à enfermaria a possibilidade de atividades expressivas com diferentes linguagens. Os clientes passaram então a realizar trabalhos com pintura, desenho, modelagem, atividades corporais, dança, grupos onde podiam falar ou escrever.
O tempo passou a ser preenchido então pelo movimento de criação com linguagens expressivas. Assim se dava a estruturação do tempo e do sujeito: na medida em que o tempo era preenchido com a liberdade para criar e comunicar ideias e afetos. Um espaço de encontros, trocas de afetos e experiências onde o tempo não assume contorno pré-estabelecido com tarefas rotineiras, mas é o próprio espaço para o devir, para a intuição e para o prazer da criação. A Enfermaria de Portas Abertas (EPA) passou então a se chamar Espaço Aberto ao Tempo (EAT), ainda no final dos anos oitenta.
Nos anos noventa, a equipe do EAT também começou a desenvolver trabalhos fora da unidade, realizando visitas domiciliares a clientes que estavam com dificuldade de vir ao local de tratamento. Nesta época, a equipe também começou a pensar estratégias de reinserção social para uma população que sofria, por causa do estigma da doença mental, uma situação de muita discriminação e isolamento. Se iniciaram então as primeiras oficinas de geração de renda com trabalhos de marcenaria, silkscreen, produção de alimentos e foram pensados eventos festivos ou de apresentação de conteúdos desenvolvidos nas oficinas artísticas, como exposições de trabalhos de artes plásticas realizados pelos clientes. A partir de então o EAT, a Casa das Palmeiras (a clínica criada por Dra Nise da Silveira em 1956) e outros serviços que estavam funcionando no Rio de Janeiro e em Santos (SP) passaram a servir como modelo para a criação e implantação dos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial).
Música no EAT
Quando iniciei a oficina, em 1996, as tardes de cada dia da semana eram dedicadas a realizar trabalhos com diferentes linguagens expressivas – expressão corporal, linguagem escrita, teatro. Me deparei então com o desafio de inserir a música através de uma sessão de musicoterapia com duas horas de duração, inicialmente contando apenas com a participação dos clientes do EAT. Desde então as sessões ocorrem com a participação voluntária dos clientes tocando instrumentos de percussão e cantando com ou sem a ajuda do microfone. Peço a cada um dos participantes que sugiram músicas para que toquemos e cantemos juntos. Também dedico uma parte do tempo para que façamos música instrumental improvisando com os instrumentos. Eu participava nesta época tocando violão e cantando. Desde 2014, tenho utilizado o teclado, instrumento sobre o qual detenho maior proficiência por ser pianista e tecladista profissional desde 1989.
A partir de 1997, passei a utilizar jogos populares de improvisação com a palavra cantada como o repente e o partido alto, e os clientes se sentiram então estimulados a compor canções. Passei então a realizar saraus de música durante as festividades que eram promovidas pelo EAT dentro ou fora da unidade, onde os clientes se apresentavam cantando suas composições, acompanhados por mim e por outros clientes tocando percussão. Percebi então que estava tendo a oportunidade de dividir com eles a experiência que tinha como músico profissional de estar no palco. Nesta época, os autores da reforma psiquiátrica italiana como Benedeto Saraceno, falavam na figura do profissional de novo tipo – o profissional que era capaz de trazer algum conhecimento que possui para a instituição psiquiátrica e compartilhá-lo com as pessoas em tratamento. Decidi desde então realizar periodicamente shows onde os clientes poderiam tocar os instrumentos de percussão e cantar suas composições ou músicas de autores conhecidos.
A partir de 1999, passaram a frequentar a oficina clientes de todas as unidades do Instituto Municipal Nise da Silveira e passamos também a receber visitas de clientes do IPUB (Instituto de Psiquiatria da UFRJ), Instituo Philippe Pinel e CPRJ (Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro), os quais tínhamos a oportunidade de conhecer quando realizávamos nossos shows nos eventos de saúde mental. Nesta época, também começamos a receber visitas de músicos, poetas e grupos artísticos.
Em 2003, encerrei minhas atividades no campo da saúde mental para me dedicar somente ao meu trabalho como músico e só voltei a trabalhar no EAT no ano de 2014. A partir deste ano, alguns clientes passaram a desenvolver interesse em aprender a tocar alguns instrumentos. Um deles queria tocar saxofone e estabelecemos uma parceria com a Escola de Música Villa-Lobos, onde ele realiza estudos de saxofone e teoria musical até o presente momento. Um outro cliente já havia realizado estudos de flauta transversa e outro de instrumentos de percussão. Estruturou-se então a Alterado Jazz Band, composta em sua base por mim, como tecladista, por um saxofonista, um flautista, três percussionistas e três cantores.
Passei então a reservar parte do tempo da oficina para trabalhar alguns conceitos de teoria musical para que a performance da banda pudesse estar em constante desenvolvimento. Os conceitos mais importantes para o saxofonista e para o flautista foram harmonia funcional, improvisação e estudo de melodias de standards de jazz. Para os clientes que se interessam mais pelos instrumentos de percussão, passei a abordar o conhecimento de estilos musicais e ritmos. Para os que se interessam mais por cantar passei a trabalhar técnica vocal e de canto coral através de exercícios vocais e de execução de harmonia vocal em grupo. À medida que uma destas técnicas é trabalhada, todos estão presentes e assim sendo, todos têm a oportunidade de estar em contato amplo e diversificado com os elementos da música.
Nos últimos anos, estamos vivendo no Brasil um processo muito difícil de precarização da saúde pública e o campo da saúde mental vem sofrendo com a falta de recursos e condições ruins de trabalho para os profissionais. Muitos terapeutas que trabalham nos CAPS também têm se desinteressado em trabalhar com linguagens artísticas e o EAT atualmente não tem mais a sua dinâmica original de funcionamento. Esta dinâmica se dava todos os dias da semana com várias salas de atividades expressivas (artes plásticas, marcenaria, silkscreen) abertas pela manhã e uma oficina com linguagem expressiva à tarde. Atualmente, a únicas oficinas que acontecem à tarde são a de música, duas vezes por semana, e a de cinema coordenada por Lula Wanderley, uma vez por semana.
Apesar das dificuldades, a oficina aberta de música do EAT e as atividades da Alterado Jazz Band continuam em curso e com os mesmos objetivos desde os tempos de suas origens:
• Estruturação do psiquismo através do contato e da criação com o fazer musical e com os elementos da música;
• Promoção da liberdade para criar e comunicar ideias e afetos, um espaço de encontros, trocas de afetos e experiências onde o tempo não assume contorno pré-estabelecido com tarefas rotineiras, mas é o próprio espaço para o devir, para a intuição e para o prazer da criação;
• Manutenção dos vínculos com a sociedade e estruturação psíquica do sujeito a partir da expressão dos conteúdos subjetivos através da música;
• Continuidade de um estado de saúde mental e social;
• Produção de prazer e alegria através do fazer musical na oficina e em apresentações públicas da Alterado Jazz Band como método para a promoção de saúde e do exercício de cidadania.
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Leandro Freixo
É músico e arranjador, atuante desde 1989 em grupos de música instrumental e orquestras, dentre os quais a Orquestra Tupi, Orquestra da AMB. Formado em Musicoterapia pelo Conservatório Brasileiro de Música e em percepção no Cigam, onde estudou harmonia e arranjo. Foi aluno de Sônia Vieira. Trabalhou com o Grupo Balaio Brasileiro, no México, de 2004 a 2006, e nos Estados Unidos tocou com a Brian Flynn Band de 2006 a 2007 e realizou estudos de Jazz e Música Cubana no Nashville Jazz Workshop. É integrante do Quarteto do Rio, grupo formado pelos ex-integrantes do grupo Os Cariocas, desde março de 2016 e atua no espaço Aberto ao Tempo como músico terapeuta.