Fernanda Magalhães. Elas – As virgens em cardumes – Grassa Crua com as mulheres da Colônia no Polo, 2016. Foto: Fernanda Magalhães com sobreposição da gravura de André Gustavo, capa do cordel Arthur Bispo do Rosário de Chiquinho do Além Mar.
Mulheres-Gás
Fernanda Magalhães
Nota Editora. Este texto reúne reflexões poéticas, memórias e indagações da artista Fernanda Magalhães a partir de dois momentos de contato com a Colônia Juliano Moreira: com as mulheres dos Núcleos Franco da Rocha e Teixeira Brandão na sua residência em 2016 por ocasião da exposição “Das virgens em cardumes e da cor das auras” no Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea e um ano depois, no seu retorno durante o Encontro Internacional Cuidado como método.
Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo
Eu era ar, espaço vazio, tempo
E gases puroStela do Patrocínio1
As mulheres, seus sorrisos fáceis e desconfiados, com babas e línguas para fora, suas defesas, entregas, ataques e alguns corpos nus que, com rapidez, se movimentam pelos corredores, jardins e pátios. Os remédios provocam as babas e muita fome. Elas disputam atenção, espaços, raivas, medos, danças, risos, dores, aflições. Conversam, algumas gritam agudo, choram, resmungam, murmuram, sussurram. Outras dão risada, risos com diferentes tons.
Fig 1. Elas – Lambes. Núcleo Teixeira Brandão, 2016. Foto: Fernanda Magalhães
O terapeuta diz no vídeo que, até ele ver as fotos que fizemos das usuárias durante as atividades da residência, entre desfiles na passarela e poses para fotografia, que ele nunca tinha visto elas como mulheres. Que foi a primeira vez que ele viu estas mulheres como mulheres.
Rampas, escadarias, portas de madeira dos quartos, algumas maiores, outras menores, todas de madeira. Casas com nomes de flores, as paredes com decalques coloridos, cozinha e refeitório coletivo. Pintadas por fora de azuis, verdes, rosas e brancos. Alguns lugares sem reboco, muitos gatos nos jardins, salas de televisão, ambulatórios. Com quadros e objetos esparsos pelas paredes, o espaço tem uma certa organização, os enfeites preenchem alguns lugares com algumas emoções possíveis. Intenções que não se concluem, devem ser muitas as outras urgências, mas percebo sentidos naquelas tentativas de aconchegos. A televisão ligada com o som alto, quase ninguém assiste, porém, o som invade o espaço pelo meio das outras vozes. De repente, frases e desenhos pelas paredes, rabiscos, rascunhos, intervenções. Espaços confusos, barulhentos, vazios, ensurdecedores e o caos entre as solidões.
Fig 2. Elas – Decalques, Núcleo Teixeira Brandão, 2016. Foto: Fernanda Magalhães
Este lugar, onde tantas memórias somam-se em camadas superpostas, tem histórias que não se contam num espaço onde o tempo é um outro. Ali morou por muitos anos o artista Arthur Bispo do Rosário. Sua residência artística iniciou no dia em que visões lhe indicaram uma missão a realizar nesta vida.
É dito: pelo chão você não pode ficar
Porque lugar de cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
Pelas paredes você também não pode
Pelas camas também você não vai poder ficar
Pelo espaço vazio você também não vai poder ficar
Porque lugar de cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpoStela do Patrocínio, 2001, 52
A Colônia Juliano Moreira hoje é um bairro do Rio de Janeiro, maior do que Copacabana. Lá foi um engenho que se transformou em uma colônia agrícola para doentes mentais e logo em seguida em uma colônia psiquiátrica. Contou com um conjunto de hospitais e pavilhões que chegaram a abrigar mais de 5.500 internos, além de um grande número de funcionários, famílias de pacientes, e outros que se somaram e foram se apropriando do lugar.
Não sou eu que gosto de nascer
Eles é que me botam pra nascer todo dia
E sempre que eu morro me ressuscitam
Me encarnam me desencarnam me reencarnam
Me formam em menos de um segundo
Se eu sumir desaparecer eles me procuram onde eu estiver
Pra estar olhando pro gás pras paredes pro teto
Ou pra cabeça deles e pro corpo delesStela do Patrocínio, 2001, 79
A Patrícia Ruth é muito simpática, querida e pinta paisagens incríveis. São casas, morros e barcos além de bolsas e outras produções que comercializa em seu dia a dia pela Colônia. Ela é de Belém do Pará, mas fez o caminho até a Colônia muito jovem, veio solta por estas estradas deste mundão há muito, muito tempo atrás. Entre violências e caminhos tortuosos acabou chegando ali. Interna por muitos anos, ela pulou os muros para namorar e assim construiu família. Foi ela quem nos apresentou a pizzaria, fomos do Polo Experimental2 – centro de convivência, educação e cultura para os usuários da saúde mental da Colônia administrado pelo Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea – até lá conversando e ela nos mostrando como funciona aquele lugar tão especial.
Aos poucos, fomos descobrindo outros pequenos lugares, o mercadinho, padaria, casa de sucos, tapioca, praça e outros lazeres para aquela comunidade. São 150 alqueires de terras entre matas, rios, cachoeira, represa, construções históricas e os outros prédios. Ali encontra-se um aqueduto de oito arcos e setenta metros de extensão, um dos três primeiros a serem erguidos no Rio de Janeiro, na metade do século XVIII. Entre a senzala, o coreto e outros prédios está a Igreja de N. S. dos Remédios inaugurada em 1862 e construída em estilo neoclássico. Conta ainda com uma escola municipal e um conjunto de prédios do programa do governo federal Minha Casa, Minha Vida, onde foram assentadas famílias de várias localidades, entre elas as que foram removidas da Vila Autódromo3 para a construção da Vila Olímpica.
Performance, Arlindo nas celas. Foi longa e muito forte.
Ele viveu lá com o Bispo, nas celas para os pacientes “perigosos”.
Arlindo prendeu várias pessoas nas celas hoje, do público.
Dos onze pavilhões do Núcleo Ulisses Viana ainda resta um, os outros foram demolidos. O Pavilhão 10 é justamente onde Arthur Bispo do Rosário habitou e produziu suas obras. Ali também passaram tantos outros pacientes considerados violentos. Arlindo, quando era jovem, conviveu com Bispo neste pavilhão.
Hoje todo o entorno foi modificado com as novas vias, trens, viadutos e a TransOlímpica4 que cortou no meio a Colônia e trouxe o metrô até ali. O lugar tem muito mais, com entrada, portal, campo de futebol, cavalos soltos, núcleos femininos, masculinos, mistos, de surtos, várias CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e outras tantas construções. Tem as casas daqueles que vivem em tratamentos constantes, mas constroem vidas, famílias, negócios.
Fig 3. Núcleo Franco da Rocha, 2016. Foto: Fernanda Magalhães
Experimentamos ficar neste lugar onde se concentram muitas exclusões e em que transbordam muitas emoções. Intensidades e vidas que pulsam.
Falaram que as cuidadoras mudaram depois de nossa passagem lá. Que elas entenderam a potência da arte como possibilidade para atuar com as usuárias de outra forma, e que é possível ir por outros caminhos e atingir as pacientes não só dando remédios para elas.
Há muita dor naquelas paredes abandonadas. Dentro de uma natureza exuberante, almas aprisionadas, aflitas, absurdas, em tormentas diárias. As camas, os cheiros e ambientes de hospital. Um grupo de cuidadoras troca uma delas que está em uma maca, fedendo, gritando, doendo. As que tentam cuidar com a falta de tudo, naquele lugar precário, debatem-se, enquanto outras cruzam o ambiente devagar, em câmara lenta. Umas tortas, outras bravas e outras tantas bem risonhas. Uma carência absoluta. Tem as autônomas e as que frequentam o estúdio coletivo Atelier Gaia, que é parte do Polo Experimental (chamado “Polo”).
O morro Dois Irmãos, muito semelhante ao seu homônimo do Leblon, impõe-se por onde quer que se vá. Atrás de nossos quartos, uma mata estendia-se até os pés das montanhas e morros que nos rodeavam. Muros, espaços vazios e portões, campo de futebol, alguns vigias e funcionários de plantão, as noites contavam ainda com densas nuvens de mosquitos que adentravam os quartos. Nos envolvíamos em roupas e cachecóis cobrindo o que dava, para não sofrer com possíveis picadas. Mas era quente. Um ventilador nos auxiliava. Os ônibus de linha que cruzavam a Colônia passavam atrás de nossos quartos, entre o prédio e a mata, davam a volta pelo lado e paravam no ponto em frente ao CAPS, ao lado do Polo, onde ficamos em residência.
Terminei minha fala ontem citando uma frase da música de autoria do “Não Recomendados”: “A placa de censura no meu rosto diz não recomendado à sociedade, a tarja de conforto no meu corpo diz não recomendado à sociedade…” Gaguejei e errei a citação, tive que pegar o escrito, não conseguia ler…
No Núcleo Teixeira Brandão conheci uma interna que cuidava do jardim. Independente, segundo relatos das cuidadoras e diretora deste núcleo, ela acorda cedo, se lava, coloca sua roupa de trabalho com chapéu, toma café, pega suas ferramentas e se dirige aos jardins. Passa o dia rastelando folhas e galhos e fazendo pequenos montes entre as árvores. Faz o intervalo do almoço e à tarde, com o mesmo empenho, continua sua atividade. Não fala uma palavra. Volta para o lanche da tarde, senta em uma mesa, sozinha. Sobre a mesa um gato deitado tranquilo. Ela abre uma revista de moda. Dirijo-me a ela, cumprimento, peço licença para fazer algumas fotografias. Ela tem uma expressão ótima e tranquila. Em silêncio, ela concorda com um aceno de aprovação com os olhos. Enquanto faço fotografias ela estabelece comigo um diálogo com as mãos e olhares, entre gestos pequenos. Abre a revista, me aponta imagens e palavras, olha para mim, olha para o gato, aponta outras coisas, acena com a cabeça, olhares diferentes, posa para as fotos. Parece-me que gosta, mas não esboça nenhum sorriso, somente aquele olhar tranquilo com suas considerações. Quando acabo, agradeço.
Apresentei as fotos em looping enquanto falava. Foi rápido, 15 minutos, fiquei nervosa, muito emocionada, a gente nem sabe o quanto é forte tudo, gaguejei, citei errado… mas os debates foram ok. Fiquei feliz com os retornos.
Meu olhar percorre as cadeirantes e encontra com uma poltrona e uma senhora nua de pernas cruzadas. Me aproximo. Esta fala o tempo todo, em tom médio discorre sobre assuntos incompreensíveis. Me aproximo um pouco. Ela reclama de algumas coisas que não consigo entender. Num ímpeto, levanta-se e sai da sala. Mais tarde retorna vestida. Fiquei me perguntando se ela não gostou de minha aproximação. A máquina fotográfica é sempre invasiva. Algumas gostam, é sempre uma possibilidade de se tornarem de alguma forma visíveis, ao menos para alguém que se interessa por olhar e escutar o que elas têm para expressar. Outras devem sentir-se invadidas, ameaçadas e violentadas. A imagem muitas vezes é perversa.
Já fodida
Botando o mundo inteiro pra gozar e sem gozo
NenhumStela do Patrocínio, 2001, 125
O Polo é amplo. Os dois quartos de residências para artistas ficam em uma grande varanda em L com mesas de sinuca e colchões empilhados, utilizados para ginásticas e alongamentos. Uma cozinha grande com churrasqueira e algumas mesas. Os espaços vazios da varanda são usados pelas turmas que vêm fazer exercícios durante a manhã e para as outras atividades diversas que acontecem ali. Outras portas dão para a varanda, com banheiros, salas para ensaios, trabalhos comunitários, dança, teatro, costura e trabalhos manuais. A varanda comunica-se com um grande pátio aberto com bancos de concreto, um varal meio improvisado e alguns canteiros de flores com plantas misturadas e outros de terra sem nada plantado.
No meio do pátio uma estranha construção de tijolos à vista, pequena, com janelas mas sem portas e nem telhado, inacabada, me chamou atenção desde o início. Nada perguntei, pois são tantas as perguntas por estes espaços. Todo dia olhava tentando entender. No muro ao lado alguns desenhos e frases cheias de sentidos. A luz do final da tarde é magnífica, dourada e bate neste muro, e na mata logo atrás, quando o olhar sobe além muro.
Em meu retorno à Colônia5 em 2017, um ano depois de minha residência, descubro que a construção estranha de tijolos à vista é obra de um dos artistas residentes, Daniel Murgel, que passou por aqui antes de mim. Construiu com a comunidade. Me instigou o tempo todo. Incrível trabalho. Não há portas.
Eu disse ontem que sentia que não tinha feito nada, tão pouco, uma gota naquele oceano. A Bianca [ex-gerente de educação no museu] respondeu que uma gota pode significar muito para elas.
As atividades propostas por mim durante a residência na Colônia culminaram na realização da ação completa, de Grassa Crua – performance de longa duração em que se discute a questão da normatização dos corpos das mulheres na sociedade contemporânea, que surgiu dos embates do meu corpo em busca de seus próprios pontos de relações. O projeto iniciou-se e foi desenvolvido como pesquisa de pós-doutorado junto ao Lume Teatro Unicamp, entre 2015 e 2016. Na Colônia, com as mulheres usuárias dos núcleos Franco da Rocha e Teixeira Brandão, propus várias situações trabalhadas na ação performática como propostas para ativar emoções e relações dos corpos e suas formas de se expressarem. Foram momentos de danças, desenhos, cantorias, arrumações, aplicar maquiagens, arrumar os cabelos, vestir capas coloridas, enfeitar-se, desfilar em passarelas vermelhas, subir nos banquinhos baixinhos e vermelhos, nossos micro palcos, e posar para fotos e vídeos. Os dias transcorreram entre estas atividades, cada dia com propostas diferentes, entremeadas com outros momentos que surgiam inesperados. Pode-se dizer que quase tudo foi inesperado.
No último dia da minha residência, que aconteceu no período de 25 a 30 de agosto de 2016, a ação finalizou-se com a apresentação pública da performance Grassa Crua, no hall do Museu Bispo do Rosário, contando com a participação do público, inclusive as mulheres que participaram das atividades da residência.
Voltando à vivência nos espaços do território… O Polo continua para o lado com hall de entrada, administração, secretaria, salas de pintura, escultura e outras salas, multiplicando-se com outras varandas e um pequeno pátio. Esculturas inacabadas, madeiras e fragmentos de outros materiais ficam espalhados pelo chão de cimento no espaço aberto em frente ao Atelier Gaia, e serão transformados pelas mãos dos artistas que recolhem o que encontram e os interessa. Tem ainda alguns canteiros pelo meio onde se vê algumas flores e ervas para chá, um pé de boldo e outros achados.
Estou sentindo o percurso trajetória-Bispo, Bispo pulsando. Encontros de vida.
Durante a residência, Bianca, uma usuária do sistema do Núcleo Teixeira Brandão, falava entre os dentes serrados, sussurrando. Difícil captar todas as palavras ditas de forma rápida e atropelada, ao pé dos ouvidos. Para cada uma de nós ela soltava algumas pequenas confissões, aos borbotões. Muito foi dito aos nossos ouvidos que queriam estar abertos, mas as informações vinham de muitos lados. Adentrar ali talvez seja como em mata densa, há muitos detalhes para ver e sentir, é necessário muitas aproximações.
A fome e os desejos por alimentos gostosos, o doce, as bebidas-refrigerantes: “me traga um doce”. Elas pedem de tudo, bolachas, um olhar, sucos e dinheiro para comprar comidas. Suplicam amor, atenção, socorros, contatos …. Assustador deparar-se com as solidões. Encontrei pessoas que moram ali desde a sua infância, somente mudando de núcleos, infantil, juvenil e adulto. Alguns moraram em celas e pavilhões destinados aos considerados perigosos e violentos. Outras transpuseram os muros dos núcleos, porém, nunca escaparam da Colônia. Muitas famílias desaparecidas para sempre. Outra contou-me que sua família estava para vir buscá-la dali alguns dias, entretanto, estes sonhos, na maioria, transformam-se em frustrações e outros tantos são delírios alimentados pela esperança e desejos de uma vida, qualquer que seja, fora dali.
Sobre ontem no Museu Bispo, durante o Encontro Internacional Cuidado como método, falei de novo sobre nosso trabalho e também falaram Raquel Fernandes, Ricardo Resende, várias profissionais que nos acompanharam e algumas usuárias que participaram. Muitos aspectos abordados, falaram das mudanças que provocamos. A Raquel falou que a gente chegava até as usuárias de uma forma muito horizontal, sem uniformes, comandos de poder e remédios. Que abrimos um outro canal de contatos com elas. Foi lindo. Parece tão pouco o que fizemos diante de tudo aquilo mas não foi pouco, foi muito intenso, chegamos no coração de todos. Outros artistas que estiveram residentes também falaram e até a Patrícia falou. Vida que pulsa aqui.
Habitam este lugar também os que vêm ali para cuidar. Médicos, psicólogos, psiquiatras, enfermeiras, cuidadoras, artistas, curadores e muitos mais. Alguns poucos para tudo aquilo. Fazem, desdobram-se, amam, conversam, irritam-se, tentam, algumas vezes fracassam, sofrem junto e conseguem coisas incríveis. Algumas milimétricas, mas que movem o mundo. Ali existe riso, amor, existem emoções, muitas emoções. Também existem violências, agressões, embates, contenções, sofrimentos, dores, angustias e sujeiras. Dia a dia complexo.
Estar internada é ficar todo dia presa
Eu não posso sair, não deixam eu passar pelo portão
Maria do Socorro não deixa eu passar pelo portão
Seu Nelson também não deixa eu lá no portão
Eu estou aqui há vinte e cinco anos ou maisStela do Patrocínio, 2001, 55
Nos desfiles muitas olhavam para o chão. Outras exibiam-se e foram muitas risadas, felicidades e pura diversão. Entre todo o alvoroço existe muita vida. Raquel, uma de minhas companheiras de trabalho, tentava organizar e dava comandos. Pelo meio, outras circulavam, gritavam, cantavam e caiam atravessadas sobre as passarelas. Movimentos cotidianos, xixis, babas, ataques, risadas, gritos, felicidades, choros, dores, medos e murmúrios. O banquinho foi um desafio. Elas subiam, desciam, pediam ajuda. Baixo, bem baixinho, o pequeno banco era provocação para pensar nos espaços que nossos corpos habitam. Para sentir algo sobre estes pequenos espaços que nos aprisionam, estes micro palcos ilusórios de destaques e aprisionamentos. Nestes momentos de desfile, com maquiagens, cabelos, enfeites e capas, elas encontravam o banquinho e a maioria quis subir. Umas eram mais ousadas, subiam e posavam para lindas fotografias, flashes em poses de destaque. “Meu sonho é ser capa de revista. Se ela pode eu também posso”. Sambaram pela passarela, dançaram, divertiram-se e uma luz viva nos olhos delas mostrava-me que a chama acesa permitia um átimo de liberdade. Ainda que em cadeiras de rodas, elas giraram e divertiram-se. Houve as que ficaram inseguras ao subir, umas se recusaram ou simplesmente se desviavam, mas outras pediam ajuda e as mãos dadas eram momentos de encontro, confiança, afetos e cumplicidades.
Eu estou num asilo de velhos
Num hospital de tudo que é doença
Num hospício, lugar de maluco louco doidoStela do Patrocínio, 2001, 47
Fig 4. Elas – Fabiana, Núcleo Franco da Rocha, 2016. Foto: Fernanda Magalhães
Sentamos para tirar fotos de todas em cadeiras de plástico brancas enfileiradas no Salão do Núcleo Franco da Rocha. Elas vestiam roupas diversas. 1. Vestido sem manga, branco com flores azuis e verdes. 2. Shorts de praia com camiseta verde e capa de crepe branca com detalhes delicados em verde. 3. Calça comprida, camiseta listrada, saia florida sobre a calça e casaco esportivo azul marinho com listras brancas. 4. Saia azul e branca, camisa branca e casaco vermelho. 5. Saia florida, blusa de malha moletom azul e capa listrada preto e branca.
Algumas vinham para os encontros com roupas muito bem escolhidas, tudo bem combinado. Outras mais desgrenhadas. As roupas foram mudando ao longo da semana e a cada dia nossas participantes foram voltando mais bem arrumadas. Formavam um mosaico de cores e modelos diversos espalhados por aquele grande salão. As fotografias seduzem, tiramos muitas fotos e selfies também e algumas fizeram algumas fotos com as nossas câmeras e celulares. Os sofás em um canto ficavam próximos à televisão e ao Mural de Fotografias. O sofá verde era destaque. Tinham portas que iam para a cozinha e os banheiros. No canto, uma grande mesa em que sempre havia alguém distribuindo papel, caneta, bolachas e outras coisas. Do outro lado do salão, um palco com aparelhagem de som e, ao lado, um pequeno brechó de roupas usadas e óculos. Elas gostam de dançar e cantar. Algumas de desenhar e pintar com lápis de cor.
Difícil explicar o que foi o dia hoje. Emocionante, de descobertas, ver de outras formas, com outras emoções, por outros poros…
Nos relatos das experiências, durante nosso retorno à Colônia, dentro da programação do Encontro6, pudemos ouvir alguns artistas que participaram das residências artísticas do Museu Bispo do Rosário, além de outros convidados. Uma observação me pegou. O artista contou sobre suas andanças pela Colônia e suas saídas para o entorno, reconhecendo espaços e conhecendo a região e frequentando alguns bares ali por perto. Passeios noturnos. Imediatamente lembrei de duas situações.
A primeira foi uma fala feita um dia antes em uma mesa de debates do evento. Uma das profissionais de saúde, que trabalhou, durante alguns anos, dentro da colônia, contou que observava como os pacientes homens tinham uma liberdade de circularem dentro e fora da Colônia, enquanto as mulheres estavam sempre confinadas aos núcleos onde estavam internas. Ela nunca observou mulheres circulando livremente pela Colônia.
A segunda foram as lembranças de nossa experiência em residência. Fui a convite, de Daniela Labra, para participar de uma residência artística dentro da programação da exposição “Das virgens em cardumes e da cor das auras”. Para a residência convidei outras artistas para desenvolvermos os trabalhos da Grassa Crua na Colônia. Éramos seis mulheres – as artistas Ana Cristina Colla e Raquel Scotti Hirson (LUME Teatro-UNICAMP), supervisoras na pesquisa de pós-doutorado, provocadoras e diretoras da performance Grassa Crua; Mariana Rotili, fotógrafa; Camilla Farias, atriz, poeta e música e Bruna Reis, psicóloga e atriz.
NASCI LOUCA
Meus pais queriam que eu fosse louca
Os normais tinham inveja de mim
Que era loucaStela do Patrocínio, 2001, 68
Em nosso primeiro dia, o pessoal que cuida do local onde ficamos em residência nos mostrou todos os detalhes, chaves, portas, cozinha, funcionamentos e cuidados a tomar. Nos disseram para que à noite não abríssemos a porta do Polo e não deixássemos ninguém entrar, de jeito nenhum. Nos deixaram os números de telefones para quaisquer dúvidas ou necessidades. Às 18 horas, após os funcionários fecharem o lugar e irem embora, o silêncio tomava conta. Voltávamos de nossas atividades e ouvíamos barulhos da mata, frutas caindo do pé, sons dos animais, galhos quebrando, além do som do ônibus que, de tanto em tanto tempo, passava por trás dos quartos.
Na primeira noite, fomos jantar na pizzaria com a Patrícia e na volta, quando viramos em frente ao CAPS, uma matilha de cachorros nos assustou. O vigia os chamou e passamos. Também tinham cavalos soltos pelo caminho. E para fazer o caminho a pé até o Museu Bispo do Rosário, o portal de entrada da Colônia ou o “centrinho” é necessário atravessar um túnel longo e escuro localizado debaixo da TransOlímpica.
Não houve mais nenhum passeio noturno e, após nossas atividades, voltávamos para o Polo para banhos, anotações e jantar. Nenhuma saída dos quartos aconteceu. Nenhuma noite para ver as estrelas. Aquela natureza exuberante e outras paisagens locais só foram apreciadas de dia. À noite tínhamos medo. Eu quis sair para fazer fotos noturnas, mas ninguém mais topou, tinha o cansaço e o medo. Não fui sozinha.
Não deu tempo
Eu estava tomando claridade e luz
Quando a luz apagou
Tudo ficou nas trevas
Na madrugada mundial sem luzStela do Patrocínio, 2001, 124
Fiquei pensando sobre as questões de gênero dentro daquele contexto e minha surpresa ao ouvir o relato do artista residente, que andou por tudo livremente, conhecendo bem o lugar, reacendeu-me a questão. Imediatamente senti nosso confinamento e, ainda mais uma vez, me surpreendi com esta distância enorme entre as experiências de homens e mulheres no mundo. Por mais que eu me aprofunde neste tema há quase três décadas, ainda surpreendo-me com esta diferença que é tão marcada em todos os ambientes e localidades.
O dia de visita à Colônia foi de emoções à flor da pele.
Aqui cabe ainda lembrar da quantidade de pacientes com gêneros indefinidos que encontramos nos dois núcleos femininos que trabalhamos. Tentei entender se eram lésbicas, sapatões, transexuais, se carregavam estas questões, se problematizavam isto, mas não havia estas marcações claras. Ao menos, em nosso tempo tão escasso, não foi possível chegar nestes entendimentos mais profundamente. Mas eram evidentes as disforias de gênero e os transtornos e conflitos de algumas pacientes. Fiquei me perguntando, então, quantas estavam ali por não se encaixarem aos padrões e não conseguirem lidar com isso.
Reencontrei algumas usuárias, havia aquele olhar meio triste, meio esquivo, meio alegre, meio desconfiado e alguns entusiasmos. Me senti em casa.
O retorno ao Museu foi de grande emoção. Foi em 2017, um ano depois de conhecê-las, desfilar, posar para fotos e quebrar banquinhos com elas, as envolvidas na residência com o projeto Grassa Crua. E também conheci outras usuárias dos núcleos, cuidadoras, profissionais da saúde envolvidas, grupos do setor educativo, curadoria, administrativo e direção ligados à Colônia Juliano Moreira, além de outros envolvidos no Encontro Cuidado como método que vieram de tantos outros lugares e instituições. Todos têm em comum trabalhos desenvolvidos nestas perspectivas.
Conhecer e trocar experiências foi um misto de amor, rapidez e atordoamentos. Muita informação, um mundo de possibilidades, encontros fugazes, comidas que fermentaram ideias e toda uma sorte de trocas e conexões. O que se desdobra, o que engata, faz atrito ou não. Talvez, depois do tempo de assentar e sentir no corpo, seja possível vislumbrar.
Pude ver todo acervo de Arthur Bispo do Rosário na “bolha anóxica”7, sendo tratado, organizado e sistematizado em um processo público, onde todos os visitantes interessados podem ter acesso ao ambiente e ver a “bolha” acontecendo. A importância deste processo para a preservação do acervo é uma conquista para o campo das artes e para todos os profissionais que conhecem o acervo de Bispo. Me emocionei ao ver este objetivo, tão fundamental para a preservação deste importante acervo, sendo realizado. Desde que conheci as obras de Bispo, senti sua força, dimensão e presença performativa. Foi realizando fotografias do acervo8, dentro da sala onde estavam acondicionadas as peças, que eu presenciei a enorme necessidade de organização e preservação deste acervo. Na época, o material encontrava-se em sala própria e tinha um início de organização, higienização e preservação, mas havia muito a ser feito para garantir que toda a obra de Bispo ficasse viva e em bom estado. Assim, me sossegou aquela angústia que me inquietava, uma sensação de medo que gritava dentro de mim, de que os trabalhos de Bispo um dia desaparecessem. Pude presenciar uma equipe trabalhando empenhada para que esta seja uma tarefa realizada e que possam avançar em novas empreitadas a partir desta ação fundamental.
Fig 5. Arlindo. Tresformance. Arlindo em performance, Celas Pavilhão 10, 2017. Foto: Fernanda Magalhães
A performance do Arlindo, a partir de suas vivências e memórias nas celas com Bispo do Rosário, foi marcante. Ele foi Bispo e foi ele mesmo no ambiente das celas, hoje vazias. De uniforme e com alguns objetos ele re-experienciou aqueles dias e ações de sua juventude, confinado naquele pavilhão para os considerados violentos. Foi forte, reperformance de vida, ele planejou, produziu e executou seu plano para aquele grupo que viria até a Colônia, para o evento programado e tão especial. Foi performance longa com relações que foram estabelecendo-se com o público presente. No final, Arlindo prendeu alguns nas celas. Foi incrível e perfurou muitas camadas em mim.
Olha quantos estão comigo
Estão sozinhos
Estão fingindo que estão sozinhos
Pra poder estar comigoStela do Patrocínio, 2001, 65
Em tempos de vidas artificiais que se multiplicam, com emoções controladas por pílulas que regulam as vidas conforme os interesses de mercado, parece ser necessário seguir todas as regras para pertencer. Quanto mais o ser conforma-se e adequa-se às normas regulatórias, mais dentro do sistema ele está inserido e maior o controle sobre corpos, almas e pensamentos. Penso então sobre as escolhas, liberdades e autonomias de cada um. Podemos viver em concordância com nossas emoções ou é necessário simular e performar diariamente para não ser abjeto de sua própria sociedade?
Os considerados normais, aqueles que estão dentro dos padrões, estes, em geral, estão controlados por estimulantes, calmantes, energizantes, barbitúricos, soníferos, anabolizantes, suplementos, antidepressivos e toda uma vasta lista de pílulas que controlam as alegrias, o sono, a fúria e todas as emoções que possam causar algum mal estar. Então, qual será, afinal, a diferença entre os que estão dentro ou fora destes lugares de exclusão?
Conviver com estas pessoas que estão nas margens e que se expressam com tanta intensidade, com força de vida, que extravasam emoções visceralmente, é libertador. Existem os medos e sustos com as diferenças, com o que não está totalmente controlado ou dominado, mas tem-se a percepção principal daqueles que não estão formatados, que são plenamente em todas as suas estranhezas e diferenças.
O que nos amedronta, dentro destas nossas sociedades de controle extremo, talvez seja este descontrole daqueles que não se encaixam, não estão sujeitos às normas e não se conformam.
Queriam saber se a gente tem consciência de todas estas transformações. E saber o quanto estes trabalhos nos afetaram e aos nossos trabalhos, à Grassa Crua.
Estar confinado em um núcleo psiquiátrico, em geral, significa tristeza, sofrimentos e muitas vezes tortura, mas também existe uma presença da vida em seus próprios fluxos, fora dos padrões sociais de convivência. Uma energia diferente pulsa ali e são espaços como estes em que acontecem a produção de trabalhos excepcionais como de Arthur Bispo do Rosário, Arlindo, Patrícia, Clóvis, Stela do Patrocínio e tantos mais.
Assim, pude sentir os sofrimentos e também outras forças que estão no lugar, a natureza densa, as pessoas e os acontecimentos.
Uma exuberância transborda e me atinge.
Fig 6. Elas – Pavilhão Bispo, 2016. Fotografia: Fernanda Magalhães.
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Fernanda Magalhães
Artista, Fotógrafa, Performer, Professora de Artes na Universidade Estadual de Londrina. Pós-Doc, LUME Teatro/Unicamp, 2016. VIII Prêmio Marc Ferrez de Fotografia 1995 Minc/Funarte pelo Projeto “A Representação da Mulher Gorda Nua na Fotografia”. Publicou os livros Corpo Re-Construção Ação Ritual Performance e A Estalagem das Almas com Karen Debértolis. Organizou livro fac-similar Eulália Neutra (2011). Obras em acervos: Maison Europèene de la Photographie, Paris; Museu Oscar Niemeyer, Curitiba; Coleção Joaquim Paiva de Fotografia Contemporânea, Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro. Criou e coordena os projetos Grassa Crua, A Natureza da Vida, A Expressão Fotográfica e os Cegos entre outros.
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1 Stela do Patrocínio viveu por quase trinta anos internada na Colônia Juliano Moreira. As falas poéticas de Stela foram gravadas e anos depois as citações foram transcritas e organizadas pela escritora Viviane Mosé. PATROCÍNIO, Stela do. Reino dos Bichos e dos animais é o meu nome. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2001, 82.
2 [Nota editora N.E.: Administrado pelo Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, o Polo Experimental de Convivência, Educação e Cultura, surge para, a partir da convivência, integrar ações culturais da Colônia em um antigo Pavilhão remodelado e transformado que abriga as atividades da escola livre de artes (ELA), Casa B (Residência artística), Atelier Gaia,, o projeto de geração da renda arte, horta e CIA e o programa de lazer Pedra Branca. Para mais informação: http://museubispodorosario.com/polo-exp/o-polo-experimental/]
3 [N.E.: Vila Autódromo – colônia de pescadores – vilarejo onde moravam cerca de 500 famílias à beira da lagoa de Jacarepaguá e hoje está fincado o Parque Olímpico. Para mais informação ver o dialogo nesta edição: http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/5/portfolio/um-dialogo-com-maria-da-penha-macena-luiz-claudio-silva-e-luiza-andrade/]
4 [N.E.: A avenida TransOlímpica foi criada para ligar dois polos de eventos dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016. Sua construção causou a derrubada de 200 mil m² de Mata Atlântica nos limites do Parque Estadual da Pedra Branca, segunda maior floresta urbana do mundo. Custou cerca de 270 milhões de dólares e de modo violento e arbitrário dividiu o território da Colônia Juliano Moreira em duas partes. Sob a avenida, hoje, um pequeno túnel é a única ligação entre o mBrac e o Polo Experimental.]
5 [N. E.: A artista voltou à Colônia em outubro de 2017 para participar das atividades do Encontro Internacional Cuidado como Método #2. Um relato sobre a construção da casa e o processo de residência do artista Daniel Murgel, intitulado “Uma temporada na Colônia Juliano Moreira”, também integra a presente revista junto com um conjunto de imagens e vídeos: http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/5/portfolio/daniel-murgel-uma-temporada-na-colonia-juliano-moreira/]
6 Encontro Internacional Cuidado como Método #2, Rio de Janeiro, 2017.
7 Bolha anóxica é um ambiente criado, atóxico, para a desinfestação de pragas de acervos históricos.
8 Fotografei parte do acervo de Bispo para a pesquisa de doutorado da pesquisadora em História da Arte e professora da Universidade Estadual de Londrina Marta Dantas. As fotografias foram realizadas dentro da sala anexa à reserva técnica do Museu Bispo do Rosário em 2002.