Arthur Bispo do Rosário. Como é que eu devo construir um muro nos fundos da minha casa, s/data. Concreto, madeira e vidro, 11 x 50 cm. Col. Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea.

Uma temporada na Colônia Juliano Moreira

Daniel Murgel

Final de 2013. Recebo um convite das curadoras Fernanda Pequeno e Martha Mestre para participar da exposição coletiva Play, no Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea (mBrac). No início das conversas sobre que trabalho apresentar, o fato que mais chamou atenção foi o tempo que a exposição ficaria em cartaz: algo em torno de 6 meses. Surgiu a ideia de utilizar este tempo como elemento fundamental do trabalho e propus que improvisássemos uma estrutura de residência artística para que eu pudesse desenvolver um projeto enquanto habitava aquele espaço. O museu então cedeu uma sala, que foi convertida em atelier, e um dormitório com banheiro para que eu pudesse dormir quando houvesse necessidade. Esse atelier ficava no Pólo Experimental1 – centro de convivência, educação e cultura para os usuários da saúde mental da Colônia, administrado pelo mBrac, incluindo o Atelier Gaia, um estúdio/coletivo também para os usuários – e por essa proximidade, pude conviver e dividir algumas garrafas de café com os artistas que lá trabalham: Arlindo, Patrícia Ruth, Lobão, Clóvis, Luiz Carlos e Pedrinho.

 

Queria conhecer melhor a história daquele lugar e das pessoas que ali viviam ou que por ali passaram. A figura mais eminente foi Arthur Bispo do Rosário. Entrar em contato, literalmente, como a sua obra e, principalmente, naquele lugar que possui um acervo de mais de 800 obras dele, foi um grande privilégio. Dentre as obras que pude ver, uma provocou-me a curiosidade: Como é que eu devo fazer um muro no fundo da minha casa. Um pequeno sarrafo de madeira com cimento e cacos de vidro, fazendo referência aos tão familiares ofendículos –dispositivos que tem como principal objetivo impedir a invasão de propriedades. Não se sabe se Bispo, ao construí-lo, pensava em invasão ou evasão.

 

Algumas caminhadas, antes dos tempos da TransOlímpica2, revelaram também idiossincrasias daquelas terras. Algumas esquinas dobravam na direção do mato e de um riacho, depois a rua parava bruscamente – “Rua Planejada 1, 2, 3…” Os nomes daquelas ruas sugeriam que em breve não haveria mais riacho nem mata. Do outro lado tinha um caminho de terra que avançava por dentro da floresta com largura suficiente para deixar passar um carro. Ao final deste trecho, antes da trilha dos mountain bikers, os carros estacionavam para que seus motoristas e caronas saciassem o inadiável desejo de por ali mesmo namorar – agora a TransOlímpica atravessa brutalmente este trecho, impondo velocidade. Antes de chegar ao estacionamento dos amantes, era possível descer à esquerda e por uma curta trilha chegávamos ao campo do Montreal, time de futebol da Colônia, em frente ao centro de convivência. Parece romântico, mas havia muito lixo e animais mortos. As ruínas também ainda estão por lá, depois do portal e do aqueduto até o coreto, os casarões históricos, senzalas, tudo vindo abaixo de acordo com a negligência daqueles que preferem olvidar a história. Depois do coreto, chegava-se de volta ao setor das “ruas planejadas”, onde já havia um bairro de moradores que dividiam a vizinhança com alguns equipamentos do complexo de atendimento psiquiátrico, entre eles o desativado e mítico Pavilhão 10 – onde Bispo e outros pacientes homens eram encarcerados.


Daniel Murgel. Vídeo feito na Van na chegada à Colônia Juliana Moreira. Por ocasião do Encontro Internacional Cuidado como método # 2, no 4 de outubro, 2017.

Eu vinha de algumas experiências de construção com terra e quis aquela terra da Colônia para construir, impregnada de histórias, que em breve estaria coberta por camadas de asfalto e concreto trazidos pela urbanização tosca que o governo costuma promover. Projetei uma pequena casa com paredes de adobe, feitos com aquela terra, rejuntados com cimento reforçado para que a ruína daquelas paredes revelasse o rendilhado dos elementos vazados – paredes opressoras desfeitas em pó, o chão transformado em parede torna-se outra vez chão. Na primeira investida contra este chão, percebi que a empreitada não seria fácil, a terra compactada ao longo de décadas era quase impenetrável. Lembrei que o “progresso” traz também maquinário e ferramentas. Pensei em pedir a ajuda de um trator. Economizaria horas de trabalho, sem falar no esforço. Os amigos do museu conseguiram uma caminhonete e prontamente seguimos em direção ao pessoal da prefeitura, e pedimos ajuda do seu maquinário. Com dois movimentos e menos de cinco minutos o trator conseguiu toda a terra necessária para o projeto e encheu a caçamba da caminhonete.

Seguimos então para o Polo, desembarcamos a terra ali, depois do escanteio do campo do Montreal para começar a transformá-la em tijolos. Mas, sozinho não daria conta de tanto trabalho e a ideia de convocar voluntários veio à tona. Alguns participantes da Escola Livre de Artes (projeto que o museu mantém na colônia) se manifestaram, além de algumas participações espontâneas e esporádicas. Começamos a trabalhar em equipe.

 

Nos encontrávamos algumas vezes por semana para fabricar tijolos. O trabalho físico intenso, muito esforço, e logo percebi que um certo desânimo tomava conta de todos. Percebi a necessidade de profissionalizar o processo de trabalho e então decidi levantar fundos para que todos fossem devidamente recompensados pelo esforço. Conseguimos os fundos através de um edital do IPHAN3. Seguimos adiante no projeto, equipe consolidada. Erguemos uma pequena casa de adobe, um castelo de areia gigante, que lá está à disposição do tempo – ruína planejada.

 


Daniel Murgel. Como fazer as paredes da minha casa. Residência artística na ocasião da exposição “Play” com a curadoria de Marta Mestre e Fernanda Pequeno, no mBrac, 2013. Fotos: Daniel Murgel

Houve também a experiência da oficina em grupo no Polo. Antes do adobe, levamos alguns tijolos de cerâmica e convidamos as pessoas que estavam por ali a adotar um tijolo. Posteriormente, após alguns comentários, cada um projetou no seu tijolo um sentimento e, certamente, a maior parte opressão. Após esta breve cerimônia, cada um arremessou o seu tijolo no chão espatifando-o.

Fizemos alguns churrascos de comemoração e numa dessas vezes eu e Arlindo pilotamos a fogueira. Naquele dia Arlindo me confessou que em algum lugar da sua história trabalhou como churrasqueiro4.

 

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Daniel Murgel
Artista, vive e trabalha no Rio de Janeiro. Bacharel em Artes Plásticas pela EBA/UFRJ. Entre suas exposições individuais destacam-se Labirinto de cruzetas (MUBE, curadoria Cauê Alves, 2017), Arquitetura de superposição (Bogotá, curadoria Valentina Guitierrez, 2016), Máquina de Chover no Molhado (CCBNB, Sousa, PB/Juazeiro do Norte, CE, 2010). Participou de mostras coletivas, tais como Experimentando espaços (MCB, curadoria Agnaldo Farias, 2015) e Amor e ódio a Lygia Clark (Zacheta National Gallery of Art, Varsóvia, curadoria Magda Kardasz, 2014). Trabalhou em residência na Colônia Juliano Moreira no contexto da exposição Play (MBRAC, curadoria Fernanda Pequeno e Marta Mestre, 2014).
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1 [Nota editora N.E.: Administrado pelo Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, o Polo Experimental de Convivência, Educação e Cultura surge para, a partir da convivência, integrar ações culturais da Colônia em um antigo Pavilhão remodelado e transformado que abriga as atividades: da escola livre de artes (ELA); Casa B (Residência artística); Atelier Gaia; o projeto de geração da renda arte, horta e CIA; e o programa de lazer Pedra Branca. Para mais informação: http://museubispodorosario.com/polo-exp/o-polo-experimental]

2 [N.E.: A avenida TransOlímpica foi criada para ligar dois polos de eventos dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016. Sua construção causou a derrubada de 200 mil m² de Mata Atlântica nos limites do Parque Estadual da Pedra Branca, segunda maior floresta urbana do mundo. Custou cerca de 270 milhões de dólares e de modo violento e arbitrário dividiu o território da Colônia Juliano Moreira em duas partes. Sob a avenida, hoje, um pequeno túnel é a única ligação entre o mBrac e o Polo Experimental.]

3 [N.E.: Edital Arte Patrimônio, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, 2015].

4 [N.E.: Esse episódio foi uma das poucas vezes em que Arlindo falou sobre seu passado. Daniel voltou à Colônia apenas em 04 de outubro de 2017, quando foi convidado a participar das atividades do Encontro Internacional Cuidado como método #2. Naquele dia, ele reencontrou Arlindo e filmou sua performance intitulada Tresformance. Esse vídeo, também editado por Daniel, apresenta o trabalho de Arlindo e integra a seção intervenções desta revista: [link]http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/5/portfolio/arlindo-arlindo-o-artista/]