A mão de Alistair, Workshop da Artlink, julho de 2017 Foto: Laura Spring

Experiências sensoriais: uma outra linguagem a aprender

Laura Spring

Em alguns momentos, no Rio, fomos convidados a participar de experiências mais íntimas e sensoriais; essas foram algumas das interações mais fortes para mim. Interações surpreendentes que capturaram emoções brutas e inesperadas – um convite a ficarmos de pé, juntos, formando um círculo em volta de vários objetos (uma pedra, uma vela acesa, um copo d’água e um incenso aceso), com os olhos bem fechados, uma voz suave falando em português e outra voz soprando nos meus ouvidos as palavras traduzidas em inglês: “Pense na sua mãe, pense que no que ela está fazendo agora, pense na refeição que ela está preparando…”; “Pense na sua avó…”. Assim que ouvi essas palavras, lágrimas escorreram pelo meu rosto; meus olhos estavam fechados e aquela voz me levou a um outro lugar. Em uma sala cheia de gente que eu mal havia conhecido na semana anterior, eu pensei na minha mãe e chorei.


Fig 1. Oficina baseada na proposta Rosácea da artista Lygia Clark, Edimburgo, dezembro de 2017 Foto: Laura Spring

Outro convite – desta vez para deitarmos em um círculo de tapetes que haviam sido dispostos pelo chão. Nós nos deitamos, com os olhos fechados, inicialmente segurando as mãos uns dos outros com firmeza e com os pés se tocando no centro do círculo. Com o tempo, nosso aperto de mãos foi se afrouxando e elas passaram a ficar mais soltas, mas o contato continuava presente. O tempo passou a uma velocidade que eu não pude precisar; sobre os nossos corpos, objetos foram suavemente rolados, roçados, apertados, espalhados e arrastados. Meus sentidos estavam alerta, mas eu estava calma e relaxada. Eu tinha plena confiança no que estava acontecendo comigo, e objetos que de início me pareceram pesados logo passaram a parecer levíssimos. Meus sentidos estavam sendo alterados e aguçados, mas mesmo assim eu me senti totalmente à vontade. A experiência foi inspirada nas propostas artísticas, terapêuticas e coletivas da Lygia Clark com seus Objetos relacionais. 1

Essas interações se afinam muito com o trabalho que eu e outros artistas fazemos com a Artlink. De volta à Escócia, no Centro de Aprendizagem Cherry Road – um centro público diurno para adultos com autismo e com deficiências cognitivas e de desenvolvimento complexas. 2 Claire e eu recriamos o workshop de Lygia Clark. Artistas e profissionais do cuidado deitaram em um círculo e objetos foram rolados, roçados, apertados e arrastados. O efeito é exatamente o mesmo. Nenhuma linguagem, apenas sensações tranquilas e relaxantes.

Fig. 2 Alistair e a bola, Workshop da Artlink, julho de 2017. Vídeo: Laura Spring

Semanalmente, eu faço convites e interações com as pessoas com as quais eu trabalho no Cherry Road por meio de objetos, sons, luz, textura e toque. Em um momento, eu entrego para Alistair (um usuário do serviço) uma bola de metal reluzente que emite um som agradável e ressonante conforme ele a movimenta nas palmas das mãos. Nossas cabeças estão próximas e nós estamos sentados de pernas cruzadas no chão de frente um para o outro. Eu coloco a bola em um espelho no chão e ele a apanha. Ele movimenta a bola, que soa ao rolar suavemente pela palma de sua mão. Eu permaneço em silêncio, vendo e ouvindo o movimento e o som da bola. Ele então olha para cima, seus olhos se encontram com os meus e, por um instante, nós ficamos juntos, experimentando o som e a textura daquela bola.


Fig 3. A risada de Isla, Workshop da Artlink, novembro de 2017 Foto: Laura Spring

Isla está rindo incontrolavelmente. A risada mais descontrolada dela que eu já vi. A música pop que estamos ouvindo está alta, as luzes estão piscando e Lauren (outra artista) está fazendo cócegas em seu rosto com um pincel. A risada de Isla é contagiante; estamos sentadas no chão em frente a Isla, em sua cadeira de rodas, e é impossível não se juntar às suas gargalhadas.

É sempre difícil capturar em palavras a intimidade e a importância desses momentos. Pode parecer muito simples – um pincel suave no rosto, uma caneta ultravioleta desenhando no corpo de alguém, uma mão brincando com uma bola, um ruído de deglutição feito cara a cara –, mas na verdade todos esses são momentos de comunicação de um poder incrível. A linguagem comum parece não ser importante. Nós criamos juntos uma nova linguagem por tentativa e erro, ao longo de meses e anos trabalhando juntos. Estou sempre aprendendo com as pessoas com as quais eu trabalho, nunca sei o que esperar delas a cada sessão, um pouco como as minhas experiências no Rio. Eu não tinha ideia do que esperar e a língua não foi importante em todos os momentos, pois para algumas comunicações as palavras não são necessárias. Há sempre uma outra linguagem a aprender.

 

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Laura Spring
Designer e criadora de têxteis, vive e trabalha em Glasgow. Impressões gráficas intensas, combinadas com cores brilhantes transformadas em produtos belamente criados estão no cerne da prática de design. Com uma paixão pela cor, impressão, padrão e processo, Laura cria uma coleção panos de casa funcionais e acessórios em coleções anuais. Em 2011, Laura estabeleceu sua própria marca e estúdio de serigrafia no coração de Glasgow, a partir de onde mostra sua coleção em todo o mundo. A colaboração sempre foi parte integrante de seu trabalho tanto no design como na Artlink. Laura valoriza a partilha de conhecimentos e habilidades com os outros como forma de aprender, projetar e realizar. A partir deste trabalho, ela experimenta com outros meios de comunicação além da palavra falada, dando ênfase ao menor gesto como forma de estabelecer relações de trabalho.
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1 Essa experiência terapêutica chamada- Rosácea, é inspirada no trabalho de Clark, usando seus Objetos relacionais. Foi-nos proposto pela terapeuta Gina Ferreira, em diálogo com seu projeto Arte, Corpo, Sensibilidade, que ela coordena no Museu de Imagens do Inconsciente e que utiliza as práticas relacionais de Clark como parte do tratamento psiquiátrico no Instituto Municipal Nise da Silveira. [Nota Editora N.E.: Para mais informações sobre os Objetos relacionais e as práticas artísticas terapêuticas de Lygia Clark, ver os ensaios de Lula Wanderley [http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/5/portfolio/lula-wanderley-ha-no-canavial-oculta-fisionomia-como-em-um-pulsar-do-relogio-ha-possivel-melodia/] e o diálogo entre Gina Ferreira e Ana Vitoria [http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/5/portfolio/ana-vitoria-e-gina-ferreria-a-rosacea-no-encontro-cuidado-como-metodo/] nesta edição.

2 O Centro de Aprendizagem Cherry Road oferece experiências customizadas e personalizadas para dar suporte a adultos com dificuldades de aprendizagem e a adultos com autismo. Antes baseado em um modelo mais tradicional de cuidado, o serviço se reformulou em colaboração com a Artlink, organização líder em artes e assistência a pessoas com deficiências. Isso possibilitou o desenvolvimento por parte do serviço de experiências criativas e enriquecedoras para as pessoas e melhorou significativamente a forma do suporte dado a pessoas com necessidades muito complexas, levando a uma mudança positiva prolongada e contribuindo para a diminuição do uso de serviços de saúde e cuidado.