Leonardo Guelman. Casa dos Milagres, 2013.

O universo singular da Casa dos Milagres
Leonardo Guelman

Juazeiro do Norte é uma cidade envolta em ciclos religiosos e lugares sagrados. Todos guardam as marcas e as trilhas da presença de seu padre fundador, Cícero Romão Batista. A cidade também se cosmopolitiza a partir da base de sua economia religiosa, justapondo o arruamento da antiga urbe, no entorno dos santuários de Nossa Senhora das Dores e do Perpétuo Socorro, às avenidas que levam às franjas da moderna Juazeiro. Assim, no próprio fluxo da cidade interpenetram-se continuamente o sagrado e o profano, com suas formas e temporalidades distintas. Foi na vivência desses itinerários que um dos espaços mais singulares da cidade sagrada me veio à cena: era a Casa dos Milagres, imenso depositário de tradições da crença do povo nordestino. Adentrar um desses lugares é uma experiência que articula várias dimensões entre o estético, o simbólico, o espiritual e o cultural. É especialmente adentrar outro tempo. Curiosamente, os horários de funcionamento do lugar variavam. Abria muito cedo e fechava ainda no início da manhã e voltava a abrir-se no meio da tarde. Uma primeira tentativa foi toda uma espera, preparando o êxito de uma segunda incursão. No outro dia, chegando cedo, lá estava a porta entreaberta que conduzia àquele imenso bricolage. Parecia uma carcaça interior de infinitos objetos. O passo lento e delicado marca a incursão pelo espaço que parece conter infinitos mundos. Quadrinhos sem fim subiam pelas altas paredes rendilhando rostos, expressões, testemunhos. Ex-votos de todo tipo, e toda a casa era um tipo particular destes. E tudo aquilo era de um silêncio de múltiplas vozes ecoando pelos meandros da Casa. Fiquei ali por três horas, na eternidade daquele dia, capturado por conjuntos inusitados de peças que formavam arranjos espontâneos. Vi ainda como aquele espaço se convertia num repositório vivo, com a chegada de novos objetos que acompanhavam a prece dos romeiros no canto da sala, junto ao altar do santo Padre.

Casa dos Milagres foi criada em 1936 e possuía acervos devocionais que datavam ainda da época do Padre Cícero (falecido em 1934). Cerca de três meses atrás, no dia 23 de agosto de 2013, um incêndio pôs tudo a perder. As fotos que realizei são do início de fevereiro de 2013 e integram minha pesquisa “Cartografias do Sertão”. Infelizmente, as imagens que produzi são testemunhos de um Patrimônio derruído, por isso também a força do seu testemunho. Aquele imenso inconsciente fica agora à espera de outras produções, em outros lugares, ou talvez ali mesmo, geradas da fé do povo, como o pequeno e infinito espaço sagrado da Casa dos Milagres.