Grupo experimentando a obra oBichoSusPensoNaPaisaGen, do artista Ernesto Neto. Registrado por alunas do curso de fotografia da Spectaculu – Escola de Arte e Tecnologia. Leopoldina, Rio de Janeiro, 26 de setembro de 2012. Foto: Kelly Malheiros. Parceria: Spectaculu.

A arte, no mundo
Tania Rivera

Se “museu é o mundo”, como já dizia Hélio Oiticica em 1966, isso não significa apenas que se deve levar a arte para além dos muros institucionais. A afirmativa de que o mundo todo pode ser lugar para a arte implica no pressuposto de que a arte já existia fora do museu: na vida. A frase completa do artista explicita esse ponto: o que Hélio escreveu foi “museu é o mundo: é a experiência cotidiana”1. Na reflexão do artista, trata-se portanto de alargar o campo institucional da arte de modo a colocar em primeiro plano a experiência – e não apenas aquilo que se convenciona entender como experiência artística, mas sim a experiência do dia a dia. A própria vida.

Refletir sobre o alargamento crítico do museu e as práticas artísticas, curatoriais e educativas que o acompanham obriga-nos, de fato, a retomar a difícil porém fundamental questão do que é a experiência da arte. Não para encontrar uma resposta para essa questão sempre em suspenso, sempre problemática, e que é objeto de reflexão para a própria prática artística, assim como para campos conexos como o da estética. Mas sim para assumir a impossibilidade de defini-la como aquilo que, justamente, nela realmente interessa: a falta de limites bem definidos que faz dela algo discreto e não necessariamente espetacular. Uma relativa indeterminação que permite uma notável capacidade de dispersão e de disseminação da arte na experiência cotidiana.

Com o termo dispersão proponho nomear o fato de que a arte faz parte da massa de percepções e acontecimentos que é a vida, mas dela se destaca em algum momento, graças a um gesto do artista e à sua destinação ao olhar de um outro. Tal gesto pode ser mínimo, uma apropriação que destaca um elemento do mundo comum – como por exemplo o pedaço de asfalto que Oiticica encontra na obra da avenida Presidente Vargas no Rio de Janeiro e, por lhe parecer ter o formato da ilha de Manhattan, nomeia como Manhattan Brutalista (1978), para em seguida tirar dele algumas fotografias. Ou pode ser complexo e consistir em um projeto longo, envolvendo eventualmente outras pessoas e interferindo na massa da vida de modo a nela introduzir alguma modificação – como é o caso de Memorabilia, trabalho realizado por José Rufino, a convite do Andy Warhol Museum, com pessoas atingidas pelo mal de Alzheimer, e que o leitor encontra nesta primeira edição da revista Mesa.

Já por disseminação entendo o fato de que tal elemento destacado do mundo pelo gesto artístico ganha, em retorno, uma grande potência de contaminação poética de outros elementos do mundo. As pranchas de Rorschach e a escrita dos pacientes com Alzheimer e seus familiares, trabalhadas pelo gesto de Rufino, são capazes de mudar algo na vivência dessas pessoas que colaboraram com ele. E de mudar o meu olhar sobre essa doença, assim como, de maneira mais ampla, sobre nossas capacidades e incapacidades, sobre a memória e sobre as relações entre as pessoas. Para dizer de modo vago, mas sem grandes pretensões: sobre a vida. A arte lança, assim, algumas sementes ao vento. A disseminação tem a ver com esse potencial de ressonância transformadora da arte sobre o sujeito e o mundo. Não se sabe, porém, se as sementes lançadas encontrarão um solo propício, se o vento não as levará longe demais (ou perto demais), se elas não encontrarão um terreno pedregoso, ou se a chuva contribuirá para que elas se instalem e cresçam. Mais do que da implementação de um programa com claras intenções ideológicas, trata-se na disseminação de algo errático, do qual é impossível medir a “eficácia”, e que pode ou não atingir seu alvo. O importante é perceber que há no movimento de disseminação um certo endereçamento – como uma garrafa de náufrago lançada ao mar. Não se sabe se um dia ela será encontrada por alguém, e dentro dela não há mensagem inequívoca (apesar de talvez toda e qualquer mensagem ser aí uma espécie de SOS: pedido de socorro, radical apelo ao outro).

A disseminação por vezes se faz reconhecer, muitas vezes através de sinais mínimos. Me chamou a atenção um deles, a respeito da experiência de visita ao trabalho de Ernesto Neto oBichoSusPensoNaPaisaGen (2012) por um grupo de cegos e videntes, relatada e discutida por alguns textos desta revista. Virgínia Kastrup nota em determinado momento que uma das participantes do grupo está recostada ao lado de uma mediadora, e esta passa a mão em seus cabelos, de modo bastante íntimo e natural. A experiência artística se dá sempre entre pessoas – mesmo que estejamos sozinhos na sala de exposição –, e ela é sempre radicalmente íntima – mesmo que não se trate do toque e da presença do corpo.

O museu, os centros culturais e as galerias comerciais são locais de convite à experiência artística, mas nada garante que neles ela efetivamente tenha lugar. Boa parte da prática artística contemporânea desloca a ênfase do objeto a ser contemplado para ações ou proposições, tornando sua recepção mais complexa e por vezes até problemática. Como pode o museu abrigar esses produtos híbridos sem constrangê-los a se materializarem em objetos que possam ser vistos? Como podem as galerias comerciais conciliar seu objetivo de venda – que pressupõe, obviamente, um produto que possa ser admirado e comprado – com o respeito à dispersão e à disseminação da arte no mundo, em propostas eventualmente imateriais (ou que não se esgotam em um objeto a ser contemplado)?

Assumir a tarefa de alargar o campo institucional da arte é, sem dúvida, uma atitude política e ética. Um ato de resistência contra a diluição da arte no mercado de arte. Um ato de afirmação contra a assimilação da vida na lógica perversa da mercadoria. Um ato artístico, talvez.

Se a arte está dispersa no mundo, o modo de contato com ela é aquele do encontro. Intencional ou fortuito, o encontro se dá sempre de forma singular: posso encontrar arte na esquina de minha casa, assim como posso me deparar com ela em uma exposição em um museu. É claro que tenho mais chance de encontrar com ela em um espaço que lhe é tradicionalmente destinado, mas posso também esbarrar com ela em uma revista, em um livro ou em uma situação mais ou menos banal da vida, desde que eu esteja disponível para tal. Essa disponibilidade é, no “receptor”, no público, a contrapartida do gesto do artista, e pode por vezes tomar seu lugar. Seja como for, tal disponibilidade não deve ser confundida com qualquer capacidade cognitiva. Trata-se de experiência, ou seja, de o sujeito ali ter lugar. Trata-se de se perceber em uma situação singular, mas que acontece em um terreno comum, ou seja, envolve um compartilhamento com outros. Como na vida cotidiana, na arte o sujeito retoma sua condição singular, única, destacando-a do fundo comum no qual estamos todos. Ele comemora e explora, na experiência assim definida, que aquilo que há de mais “íntimo” está fora, no campo compartilhado com o outro (é êxtimo, para usar o termo inventado por Lacan2).

Parece-me útil pensar a arte em termos de situação, em vez de lugar. O termo situação tem a ver com um local (situ) e com um acontecimento, em uma duração temporal. A arte se dá em um lugar no tempo.

A situação em que nos encontramos é apenas em parte determinada por nossas ações e intenções. A vida consiste em situações complexas, em um entrelaçamento complexo de causas, efeitos e acasos, sempre em conexão com outros viventes. Talvez a produção artística atual assuma muitas vezes esse emaranhado como sua estrutura, assumindo-se como não autônoma e sujeita a transformações que a definem de forma mutável, dependendo da situação na qual alguém com ela se encontra. Essa dimensão está hoje em primeiro plano especialmente em trabalhos artísticos com comunidades, como aqueles desenvolvidos na 8a Bienal do Mercosul em cidades do Rio Grande do Sul, e na Escócia na Deveron Arts, em experiências discutidas em alguns dos vídeos e artigos presentes nesta edição de Mesa. Algumas propostas curatoriais/artísticas lidam com a própria questão do compartilhamento e da construção de um comum na prática artística entendida de modo amplo, como acontece em Makers’ Meal, também realizado na Escócia e aqui apresentado.

Mais do que expor um determinado trabalho artístico ou facilitar sua recepção por parte de um público, o papel do curador, da equipe institucional em geral e do arte-educador em particular parece-me ser aquele de (re)criar a situação daquela obra, de modo fiel à proposta do próprio trabalho. Essa fidelidade é fundamental, pois não se trata aí de impor uma “leitura” do trabalho que o desvie totalmente da situação criada pelo artista. Mas é importante perceber que, na medida em que a situação de um trabalho é em parte aberta e mutável, o trabalho do curador e do arte-educador implica sempre algum grau de desvio (intencional ou não), assim como de acaso. Além disso, em muitos casos é o curador quem cria a situação na qual o trabalho do artista será concebido e realizado – especialmente quando se trata de projetos que já consistem eles próprios em um certo gesto de destacamento de um elemento ou questão da dispersão do mundo, comparável àquele que eu nomeei como gesto do artista. A parceria e o compartilhamento são nesses casos condições básicas de surgimento da situação artística.

O crítico, por sua vez, parece-me criar uma situação textual que também deve ser fiel à proposta do trabalho, assumindo a parcela de (re)criação e de acaso que isso envolve. Essa situação textual também deve muito à dimensão do encontro: do crítico com o artista, nas conversas entre ambos, do crítico com o trabalho em situações expositivas ou de ateliê, e também do crítico com textos de outros autores, bem como trabalhos de outros artistas. Em minha opinião, o crítico deve, assim como o curador e o arte-educador, tomar para si a disseminação do trabalho, sob fundo de sua dispersão. Após segurá-la por algum tempo, ele deve relançar ao mar a garrafa do náufrago, atualizando a transmissão dessa situação poética.

Lidar com a arte é sempre reencontrar, com os outros, os gestos e feitos mínimos, por vezes quase invisíveis, pelos quais no dia a dia uma experiência qualquer nos toca e transforma. Seja no sertão nordestino (no ensaio fotográfico Casa dos Milagres) ou na favela carioca (que reencontramos no vídeo Legítimo Novo Carioca), assim como em torno de você, nesse momento, fora de sua janela ou na casa ao lado, lembre-se de que a vida pulsa (e a arte também).

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1OITICICA, Hélio. Programa Ambiental. In: FIGUEIREDO, L.; PAPE, L.; SALOMÃO, W. (org). Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 79.
2LACAN, Jacques. O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.