Anthony Schrag. Um dia de pai perfeito? Cabo de Guerra, 2011. Deveron Arts. Foto: Jan Holm.

Territórios e práticas em processo
Jessica Gogan e Luiz Guilherme Vergara

Presenciamos nas últimas décadas o que vem sendo chamado por críticos europeus e americanos de “viradas”. Sejam etnográficas, sociais e educacionais, estas viradas apontam para um desejo de escapar os valores do mercardo, por buscas de novas formas de criticalidade e convergências entres as práticas artísticas, curatoriais e pedagógicas. Mas, talvez, seja menos a questão de uma virada específica, que poderia implicar uma certeza com relação ao seu direcionamento, e mais um indicativo de estado de mudança e questionamentos contínuos que subvertem os papéis e valores dos territórios e práticas de produção e recepção dos sentidos públicos da arte. O famoso desenho do artista uruguaio Torres Garcia, Mapa Invertido da América do Sul, 1936, onde o norte está ao sul e o sul ao norte, hoje poderia ser inspirador para uma cartografia de reversibilidades ou simultaneidades – centro/periferia. Outras dicotomias ou hierarquias de fronteiras entre criação–criadores / recepção–espectadores igualmente estariam sendo re-viradas. Este estado de re-virando nas mudanças do fazer artístico não implica apenas abrir processos artísticos para a coletividade, colaboração ou novas territorialidades, mas também a ativação e atitude subversiva dos próprios lugares e situações de recepção/espectadores rejeitando fronteiras estabelecidas norte-sul ou centro-periferia para a produção criativa e crítica de imaginários simbólicos compartilhados.

Neste cenário, as cidades e os espaços públicos ressurgem na última década como campo de pulsação vital de invenções e negociações políticas, estéticas e éticas. Sejam urbanas ou rurais, as cidades, as ruas e praças passam a ser contextos de lutas políticas e sociais, como também de poéticas de intervenções cotidianas. Em meio às graves crises de mobilidade, paradoxalmente as cidades vêm retomando sua condição de corpo coletivo de fluxos de interações e criação de múltiplos imaginários simultâneos. Desta forma, muito mais do que um campo ampliado para um segmento artístico, a malha urbana é um território vivo de polifonias. Nesses contextos e situações em reviravoltas, justapondo coerência sensível de agenciamentos ou de rupturas, as práticas e sentidos públicos da arte estão sendo desafiados e desafiantes como territórios de processos. É para esta zona limite que dirigimos nossas lentes multifocadas – é onde as práticas artísticas, curatoriais e pedagógicas se (re)constroem continuamente como potência plástica e crítica de ação e transformação de suas próprias instâncias e instantes, instituições e interfaces, em formas e formatos de interações sociais.

Disseminação e dispersão

A Revista MESA, publicação digital do Instituto MESA, propõe explorar essas instâncias e instantes das interações públicas da produção artística contemporânea em suas complexidades e densidades éticas e estéticas. Nesta edição inaugural reunimos diferentes estudos de casos nacionais e internacionais, artigos, ensaios fotográficos e entrevistas, buscando tornar e-videntes e e-viventes as singularidades das situações e contextos da arte contemporânea com novas lentes críticas. Ressaltamos nesses territórios de processos as práticas pautadas pela escuta, observação, proximidade, cuidado, cumplicidade e testemunho. Tania Rivera, crítica pesquisadora convidada para esta edição, observa que a potência de contaminação poética e a ressonância transformadora da arte sobre o sujeito e o mundo dependem da disseminação e dispersão de seus sentidos e conceitos emergentes. Esperamos que o próprio papel da Revista MESA seja também um território desta prática crítica, criativa e dispersiva.

Proximidade, cumplicidade, cuidado e testemunho

Podemos dizer que os territórios são definidos pelas suas práticas; as práticas, por sua vez, são encarnadas em suas instâncias fixas e fluxos de ritualizações plásticas e sociais. Porém, o material reunido para esta primeira edição, seja a prática de pensar a cidade com o espaço de acontecimentos de Deveron Arts ou o projeto Makers’ Meal, que juntou artistas e artesãos do Scottish Sculpture Workshop (as duas no nordeste da Escócia), ou a vitalidade geopoética da 8ª Bienal do Mercosul, no Sul do Brasil, ou ainda a mobilidade física e simbólica do novo carioca apontado pelo Jailson de Souza e Silva, diretor do Observatório de Favelas no Rio de Janeiro, sugere que, ao invés de uma prática de distanciamento crítico, o trabalho nesses contextos é proximal e de cumplicidade entre arte, artistas, indivíduos, sociedade e territórios. Parte deste processo também exige uma espécie de testemunho, uma documentação que, por sua própria intervenção, como mostra o ensaio fotográfico de Leonardo Guelman da Casa dos Milagres no Nordeste do Brasil, infelizmente perdida num incêndio recentemente, torna visível o efêmero, o desapercebido e o vivenciado, transformando igualmente o sujeito e o testemunho.

A prática criativa e crítica nesses contextos é fundamentalmente desafiada por esses terrenos complexos de proximidade e cumplicidade. Mas, ao mesmo tempo, é dentro desta complexidade que as forças plásticas emergentes estão rompendo os limites e distâncias tradicionais entre ação e crítica. Surgem novos horizontes de possibilidades práticas como poéticas do cuidar e curar, como mostra o processo do artista José Rufino com os pacientes de doença de Alzheimer. Da mesma forma, ressaltamos a atenção aguda com a experiência que a arte inaugura, entendida como uma escultura de vivências e um campo crítico e criativo a ser cuidado, explorado aqui com a instalação suspensa oBichoSusPensoNaPaisaGen, do Ernesto Neto, que nominamos como “bicho feito de nós”.

Agradecemos a todos os contribuidores e colaboradores neste primeiro número e em especial ao Prêmio Procultura de Estímulo às Artes Visuais 2010 de Funarte, pela possibilidade de realização desta e de mais três edições da Revista MESA.