Blots and Figments_Rick José Rufino. Memorabilia (polytych), 2010. Serigrafias de tinta vinil sobre papel velho alinhado junto com depoimentos escritos, impressões, poemas, anotações e documentos coletados dos pacientes, cuidadores e pesquisadores afiliados ao Alzheimer Disease Research Center da Universidade de Pittsburgh. Impressões sobrepostas (monotipias com têmpera e acrílica) à maneira de Rorshach criadas em parceira com o artista e alguns pacientes e suas famílias, além de pesquisadores do Centro.

Curare: José Rufino Manchas de Esquecimento
Jessica Gogan

Quando conheci Lee Strawbridge (um engenheiro nuclear padecendo do mal de Alzheimer), houve um momento desconcertante em que – muito embora aparentemente consciente de sua perda de memória – ele riu para em seguida deixar-se absorver totalmente por uma caneta que estava sobre a mesa.

Em 2004, ao ser diagnosticado com um leve distúrbio cognitivo (e valendo-se de muitos anos de experiência com redação de relatórios), Lee preparou um detalhado relato sobre si, sobre seus pais, sua esposa, seus filhos e amigos como, na eventualidade de ter o diagnóstico agravado – o que, na época, ele esperava –, uma maneira através da qual ele pudesse se lembrar de quem ele era e de quem eram os seus entes queridos.

Seis anos depois, trabalhando em um projeto sobre memória, percepção e perda com o artista plástico brasileiro José Rufino, Lee relia e fazia um esforço para entender aquelas mesmas frases. O artista destacara parágrafos do relatório de Lee para imprimir o texto e uma imagem espelhada desse texto sobre antigas folhas de papel pautado para serem utilizadas como substrato de um processo colaborativo de criação de arte. Juntos, os dois empregariam manchas na superfície das palavras de Lee.

O que está em jogo quando o artista põe em risco os parâmetros do colaborativo, do instrumental ou do político? O que acontece quando a ciência mistura o poético com o pessoal em meio a metodologias regulamentadas? O encontro de Lee e Rufino testemunha a confluência desses mundos e práticas. Sempre que vivenciados como convergência e luta, tais encontros abrem um terceiro espaço no aqui e agora, um espaço “entre”, sempre em fluxo e que só pode ser verdadeiramente conhecido ou compreendido na sua práxis. Afetivo, belo e rico em reverberações, o encontro entre paciente e artista e a subsequente exposição foram resultado de uma sequência incomum de conexões e eventos. Conhecido por sua pesquisa sobre a memória pessoal e coletiva e, em particular, por uma obra desenvolvida com as famílias daqueles que desapareceram durante o período da repressão militar no Brasil (1964-1985), o trabalho de Rufino inclui frequentemente peças de mobiliário antigo encontradas em diferentes condições de abandono evocando cenários burocráticos corruptos e kafkianos que recebem a aplicação de colagens de documentos originais carregados de especial significação histórica e afetiva, e sobre os quais ele imprime manchas que lembram o teste de mancha psicanalítico desenvolvido por Hermann Rorschach durante os anos 1920.

Rufino foi convidado pelo Andy Warhol Museum, em Pittsburgh, nos Estados Unidos, para desenvolver um projeto sobre memória que explorasse a série Rorschach de Andy Warhol e elementos biográficos do famoso artista, e, ainda, outro tipo de “desaparecimento” através de uma colaboração com o University of Pittsburgh Alzheimer Disease Research Center (ADRC). Planejado por vários anos, o projeto resultou na exposição José Rufino: Blots & Figments, inaugurada no Warhol Museum no primeiro semestre de 2010. A mostra apresentava mais de 60 obras inéditas, desde manchas dramáticas sobrepostas a gravuras da imagem-fonte de Warhol (a qual o artista norte-americano utilizara em sua série de Caveiras) até as manchas poéticas, criadas com os pacientes do ADRC, cuidadores e pesquisadores, a partir de desenhos e reflexões manuscritas para eles. Este rico processo com níveis complexos e múltiplos, criando uma ponte entre os mundos da arte e da ciência, está inspirando uma série de iniciativas curatoriais chamada Curare, baseada nas raízes da palavra curadoria, do latim curare, que significa cuidar. As iniciativas ligadas a Curare buscam entrelaçar elementos éticos e estéticos desenvolvidos em colaboração com artistas, público, pesquisadores e diversos contextos, com especial atenção nas relações entre arte e saúde.


Imagem de instalação com Skull, 1976 de Andy Warhol (esquerda), tinta acrílica e de serigrafia sobre linho, The Andy Warhol Museum Pittsburgh; Coleção de fundação, contribuição Dia Center for the Arts (c) The Andy Warhol Foundation for Visual Arts Inc./ licenciado pelo AUTVIS, Brasil, 2013, junto com a série Morbus, 2010 de José Rufino. Foto: Richard Stoner.

Este ensaio pretende salientar tanto a obra de arte como processo, dando ênfase a uma fusão criativa da feitura da arte, quanto a experimentação e a prática ética do cuidado que é essencial a tais empreendimentos colaborativos. Contada pela perspectiva dos encontros – que viabilizaram o projeto (o de Rufino com o ADRC, a minha experiência inicial com a arte de Rufino, e o engajamento do artista com a obra de Andy Warhol), a história do projeto tece um fio temático que considera a resistência criativa um núcleo e abrange a feitura da arte de Rufino e sua construção de novas verdades que ligam a ciência e a arte a uma noção de agência no mundo, até mesmo para pessoas cujo agenciamento é profundamente ameaçado por uma doença debilitante.

“De perto ninguém é normal”1

Nossas memórias nos dão vida, e a arte está ligada ao nosso tão humano desespero para, de algum modo, reter nossas próprias iconografias, pertençam elas à natureza, à sociedade, ou ao nosso universo emocional pessoal.

José Rufino2

Atos cumulativos de deslembrança podem levar um indivíduo ou a sua família a procurar o diagnóstico e o apoio do ADRC. Quando se entra no Centro, é fácil imaginar a sensação dos pacientes ao serem submetidos a testes após testes: desde a cópia de formas geométricas e o desenho de relógios até a memorização de endereços ou o relato de tarefas do dia a dia. A assim denominada “bateria de testes” mensura a cognição do paciente contra uma pontuação média normal. O resultado será para sempre o ponto de Arquimedes de seu declínio.

Seja na psiquiatria, na pedagogia ou no diagnóstico da doença, o teste é uma das ferramentas principais para a homogeneização da ordem. Essa fixação ritual e científica localiza a individualidade da pessoa em sua particularidade ao mesmo tempo em que posiciona essa mesma particularidade em sistemas mais amplos de poder e de ordem. A partir dele, o sujeito será para sempre uma estatística, sucessivamente mensurado contra uma norma referencial. No contexto da perda de memória, o peso dessa norma é significativo. Acostumamo-nos a tratar nossas mentes como se fossem uma ferramenta disciplinar, uma máquina de cognição e de capacidades. Quando ela nos falha sentimo-nos perdidos, não apenas em nosso funcionamento cotidiano, mas também na maneira como pensamos sobre nós mesmos. O terapeuta Rick Morycz dá ênfase à dupla perda que acompanha um diagnóstico de Alzheimer, no qual não é apenas o paciente que é afetado, como também desaparece – na medida em que vai sumindo a memória do ente querido – parte do mundo da família.3

Lee dedicara sua vida ao seu trabalho como engenheiro na Westinghouse, em Pittsburgh, nos EUA, imerso no tipo de sistema de controle que Michel Foucault identifica como práticas normativas de comparação, diferenciação, hierarquia, homogeneização e exclusão.4 Com a experiência de anos na redação de relatórios, os mecanismos científico-disciplinares lhe vinham com naturalidade. Daí que, ao se sentir profundamente ameaçado pela confirmação do diagnóstico de mal de Alzheimer, ele se voltou para aqueles mesmos relatórios como modo de estruturar sua lembrança, criando um relato detalhado e sistemático sobre si mesmo e sobre sua família. Em um momento de crise, Lee Strawbridge subverteu, instintivamente, as práticas normativas com as quais havia trabalhado por anos, transformando a redação de seu relatório – anteriormente o capital em exercício – em uma resistência à sua perda de memória.

José Rufino. Memorabilia (polytych), 2010. Serigrafias de tinta vinil sobre papel velho alinhado junto com depoimentos escritos, impressões, poemas, anotações e documentos coletados dos pacientes, cuidadores e pesquisadores afiliados ao Alzheimer Disease Research Center da Universidade de Pittsburgh. Impressões sobrepostas (monotipias com têmpera e acrílica) à maneira de Rorshach criadas em parceira com o artista e alguns pacientes e suas famílias, além de pesquisadores do Centro.

Convidada a participar do projeto de Rufino com suas reflexões sobre a doença, Nancy Stabryla (outra paciente com mal de Alzheimer) fez uso do conjunto de habilidades organizacionais adquiridas em seu emprego anterior como técnica e administradora para criar um poema/mapa de palavras que organizasse a desorganização da sua mente. Em seu ensaio “O sujeito e o poder”, Foucault observa: “A relação de poder e a insubmissão da liberdade não podem ser separadas. […] No centro da relação de poder, ‘provocando-a’ sem cessar, está a relutância do querer e a intransitividade da liberdade”. 5

 

José Rufino. Memorabilia (polytych), 2010. Serigrafias de tinta vinil sobre papel velho alinhado junto com depoimentos escritos, impressões, poemas, anotações e documentos coletados dos pacientes, cuidadores e pesquisadores afiliados ao Alzheimer Disease Research Center da Universidade de Pittsburgh. Impressões sobrepostas (monotipias com têmpera e acrílica) à maneira de Rorshach criadas em parceira com o artista e alguns pacientes e suas famílias, além de pesquisadores do Centro.

Diante do diagnóstico de mal de Alzheimer, Lee e Nancy reagiram transformando as práticas familiares do dia a dia para reutilizá-las como ferramentas para investigação pessoal, como suas próprias práticas de memória personalizadas. Morycz sugere que essa prática traz uma noção de continuidade às suas vidas fundamentalmente alteradas.6 De forma significativa, eles usaram recursos de seus mundos para criarem sua resistência em vez de utilizarem alguma fórmula de “diário de memória” predeterminada. Eles criaram a própria forma, produziram suas verdades. Como pacientes, Nancy e Lee talvez sejam únicos, porém suas subversões apontam para o que suas práticas de resistência podem oferecer a outros que padecem do mal. A menos que recalibremos o sentido da normalidade, o mundo das normas pode ter um efeito corrosivo. Como diz a letra de uma das canções de Caetano Veloso, “de perto, ninguém é normal”. Para Lee, Nancy e outros na luta contra o mal de Alzheimer, quanto mais prolíficas as práticas de resistência, mais elas humanizam os discursos institucionais e desafiam as práticas normativas através da conexão e da intimidade. Sua resistência clama por novas compreensões, em última hipótese investindo não apenas em uma (re)conceitualização da face pública do mal de Alzheimer, mas também soando um alerta às percepções da sociedade para com o envelhecimento.

A caixa de ferramentas do artista: o teste de Rorschach e o substrato

No artigo “Artistic Education of the Public” publicado na revista e-flux em 2010, o crítico Adrian Rifkin pondera sobre a natureza da profissão de artista e aquilo que ele percebe como sendo a sentença do artista em tornar visível.7 Rifkin identifica com perspicácia as compulsões criativas internas e externas e as demandas do processo artístico. Rufino consegue precisar o momento exato de seu sentenciamento. No começo dos anos 1980, ao herdar documentos de família (em particular, cartas de seu avô, que havia sido senhor de engenho de açúcar no Nordeste brasileiro), o artista descobriu incontáveis histórias e segredos familiares. Os riscos pessoais e familiares de exportar tal material coincidiam com uma compulsão para desenhar, para tornar visível esse universo íntimo, trazendo-o até o presente e transformando, assim, aquilo que estava lendo para construir um novo modo de conviver com o passado. Rufino cita o seu engajamento com esse material e a decisão de expô-lo e de transformá-lo através de suas marcas e desenhos (em última análise expondo esses documentos como a série Cartas de areia, de 1990) como o momento preciso em que ele se tornou um artista.8

Cartas_RufinoCartas de Areia (série). 1990 – 2000. Desenhos em técnica mista sobre antigos envelopes de correspondência de família/ Pinturas variadas sobre antigas correspondências de família / Têmpera sobre cartas de família, monotipia à maneira de Rorschach modificada. Dimensões variadas.

Filho de ativistas políticos que foram presos durante a repressão militar no Brasil nos anos 1960, Rufino conhece de perto o sentido de ação secreta. Ainda criança na época, hoje se lembra de reuniões na casa, conversas em surdina e da clandestinidade. A política de seus pais opunha-se à de seu avô. A dicotomia do passado paradoxalmente grandioso e radicalmente ativista dentro do qual Rufino cresceu faz com que a complexa simetria estética e psicológica da mancha de Rorschach seja para o artista uma escolha interessante.

Com longa história de uso na arte, na psicologia e no espiritismo, as manchas inspiraram o psiquiatra suíço Hermann Rorschach nos anos de 1920 a criar a famosa série de dez manchas conhecida como o teste de Rorschach. Baseado na noção de que o indivíduo responde ao estímulo externo (e, por extensão, ao mundo) com padrões pessoais específicos, o teste convida seus candidatos à livre interpretação de uma série de dez manchas ao mesmo tempo em que estão sendo registrados por um analista. Segundo Rorschach, a chave para um sentido aberto à interpretação das manchas se encontra na simetria de suas formas.9 Atraído pelos aspectos estéticos e psicológicos da forma Rorschach, o interesse de Rufino se aguçou quando ele descobriu que Rorschach parecia ter sido influenciado por Justinus Kerner (um espírita, escritor e artista do século 19, que publicou um livro de poesias no qual cada poema havia sido inspirado por uma mancha). Utilizado na época em sessões espíritas, acreditava-se que a mancha de tinta facilitasse uma invocação e uma incorporação do espírito. Tal riqueza de dimensões fez com que a mancha de Rorschach se tornasse um dos principais suportes de Rufino ao longo das duas últimas décadas.

1_frente da Prancha de Rorschach III - (tamanho 17,80X24,35 cm)_1400px2_frente da Prancha de Rorschach IV - (tamanho 17,80X24,35 cm)_1400px
RORSCHACH, Hermann. Psychodiagnostik – Psychodiagnostics: Tafeln Plates. Impressão Hans Huber. Bern/Suíça: Medical Publisher, 1948.

Por ser paleontólogo além de artista, outra ferramenta essencial utilizada por Rufino é o substrato – uma superfície com um passado registrado, muitas vezes documentos de arquivo e/ou textos manuscritos advindos de diversas fontes: autoridades portuárias, companhias ferroviárias, bancos, companhias de seguros e papéis pessoais. A esses documentos originais “habitados” Rufino sobrepõe manchas, valendo-se do duplo potencial do teste de Rorschach (como forma aberta e como especificidade analítica) e criando, assim, superfícies altamente evocativas e psicologicamente densas.

7_Nausea (foto divulgacao) copy José Rufino. Nausea. 2008. Mobiliário de aço (arquivos, escrivaninhas, fichários) e conjuntos de gravuras à maneira de Rorschach sobre documentos bancários e contábeis. Acervo Banco do Nordeste.

Em seu livro Performing memory in the Americas: the archive and the repertoire, Diana Taylor nota que a equação escrita = memória tem importância central para a epistemologia ocidental, o arquétipo cognitivo governante que “engendra o desaparecimento do conhecimento incorporado que ele tão frequentemente anuncia”.10 Como contraponto à equação escrita = memória e, por extensão, seu depósito no “arquivo” como única fonte de conhecimento, Taylor defende a ideia do “repertório”, no qual tradições, performances e memórias corporificadas são transmitidas através da ação viva.11 Valendo-se do arquivo e do repertório, a prática de Rufino explode essa distinção pois, como paleontologia, o arquivo é coisa viva, repleta de histórias e desempenhos incorporados, ao mesmo tempo em que, como arte, a escavação do arquivo por Rufino apresenta uma performance ritualística, revelando aquilo que Jacques Derrida chama de “as rasuras, espaços em branco e disfarces” da escritura e de sua inevitável história de repressão.12 As práticas de resistência entremeiam-se às práticas do poder.13 Ao lembrar da recusa radical do educador brasileiro Paulo Freire daquilo que ele apelidou de “educação bancária”, na qual o aprendizado é “depositado” nas mentes dos estudantes e ocorre a transformação do processo educador em um processo dialógico através da participação, Rufino resiste à força repressora do arquivo através de uma escavação participativa e reivindicativa.14 Caçando arquivos, procurando coisas em lugares insuspeitos e persuadindo ativistas políticos e suas famílias a liberarem documentos privados, o processo é iterativo, ético e afetivo. A sobreposição final do teste de Rorschach sobre documentos individuais ou colados (collage), sempre pautada na forma aberta da mancha simétrica e (aparentemente) sempre corporificada, encena um contato ritual que cria a presença de uma memória corporificada, como se essas obras fossem agora o sudário.15 O curador Luiz Guilherme considera essa noção de incorporação e memória viva um aspecto vital da obra do artista:

Rufino segue a linhagem rara daqueles artistas que, pela contundência caósmica, conseguem romper a acomodação das camadas de memória e histórias privadas e públicas depositadas ou aprisionadas em sedimentos mistos de saudade e dor. Recupera para a arte o que a história enterrou para o silêncio.16

3_Murmuratio 3 colecao Museu da Vale José Rufino. Murmuratio, 2001. Instalação montada com documentos e móveis recolhidos em estações de trem do Espírito Santo. Acervo Museu Vale.

Empregadas no contexto do mal de Alzheimer, essas práticas de memória e as ferramentas do artista – o teste de Rorschach e o substrato – se entrelaçaram com a resistência dos próprios pacientes. Trechos do relatório de Lee, as reflexões poéticas de sua esposa Donna a respeito da inversão de seus papéis e o poema/mapa de palavras de Nancy tornaram-se o substrato de documentos que Rufino então duplicou, imprimindo a nova imagem espelhada em velhas folhas de papel pautado. O efeito era como se – de alguma forma – o original sempre tivesse sido assim, como se já tivesse sido escrito ou achado em duplicata, preparado para receber as manchas que o artista convidava pacientes, cuidadores e pesquisadores para criar com ele.

Intituladas Memorabilia, as obras da série resultante são profundamente comoventes. Texto e imagem se entrelaçam. Palavras fortes ressoam em meio a belas e evocativas imagens. A simetria das manchas conduz o olhar simultaneamente ao centro e às bordas, criando uma noção de movimento e uma presença corporificada. De acordo com as diferenças de pressão e tinta no momento de manchar, cada forma evoca uma criatura cintilante e incomum que, por vezes, parece prestes a levitar para fora da página. Em outros momentos, as imagens são como uma força centrífuga atiçando as fúrias da perda, e outras mais estoicamente poéticas. Na qualidade de artista/pesquisador/catalisador, Rufino subverte a paleontologia através da arte para sugerir que, além de nomear, podemos, também, (re)criar nossas memórias. Aliada à facilidade interpretativa do senso de possibilidade do teste de Rorschach, essa (re)construção do passado efetua através da arte um alívio, uma cura e uma renovada percepção da memória. Aqui a memória se faz presença em vez de lembrança. Assim, tanto a feitura dessas obras como o olhar sobre elas tornam-se experiências altamente ritualizadas.

4.6_Rufino_Memorabilia_7 copy

4.5_Rufino_memorabilia_6 copy

4.4_Rufino_memorabilia_5 copy José Rufino. Memorabilia (polytych), 2010. Serigrafias de tinta vinil sobre papel velho alinhado junto com depoimentos escritos, impressões, poemas, anotações e documentos coletados dos pacientes, cuidadores e pesquisadores afiliados ao Alzheimer Disease Research Center da Universidade de Pittsburgh. Impressões sobrepostas (monotipias com têmpera e acrílica) à maneira de Rorshach criadas em parceira com o artista e alguns pacientes e suas famílias, além de pesquisadores do Centro.

Essa experiência ritual ocorreu não apenas no processo da criação artística; na verdade, começou com o próprio convite à participação. Por aliar a reflexão, o pessoal e o criativo, este projeto contrariava as práticas normativas institucionalizadas. De maneira crucial, ele reforçou a forte ligação já existente entre o ADRC e seus pacientes, através de um processo de planejamento entre o centro e o Warhol Museum, que durou um ano. De maneira vital, esse cuidado encontrava equivalências na aceitação e na valorização da experimentação.

Meses antes da chegada de Rufino, a coordenadora do ADRC, Mary Ann Oakley, havia recrutado possíveis pacientes e cuidadores para o projeto. Aqui, os mundos da ciência e da arte se encontraram sob os auspícios do experimento. Para pesquisadores e pacientes o processo criativo aberto estipulado pelo artista encontrava paralelo em sua fé na pesquisa experimental e em fazer algo que pudesse beneficiar outras pessoas no futuro. Antes de conhecer Rufino, pacientes, cuidadores, membros da equipe e pesquisadores do ADRC foram convidados a juntar documentos que eles acreditassem que poderiam ser relevantes para a colaboração e que pudessem ser doados ao processo artístico. Eles foram incitados a refletir sobre a doença e, muito importante, a anotar à mão seus pensamentos. O convite realçava a importância da forma aberta, suas “reflexões [poderiam] ser desenhos, anotações ou ideias sobre memória, histórias pessoais, desafios, temores; poderiam escrever um parágrafo, algumas linhas, rabiscos ou páginas; seriam da forma que escolhessem abordar o tema”.17 Esse convite foi um componente fundamental no processo.

Dr. Morycz valeu-se de seu encontro e de seu trabalho com Rufino para examinar a fundo décadas de arquivos e anotações sobre terapia, servindo-se das palavras e das frases comoventes nas histórias contadas por pacientes e cuidadores. A oportunidade e tudo que se seguiu foram catárticos. Outros pesquisadores e membros da equipe contribuíram com histórias de entes queridos, desafios éticos, reflexões, exemplos de testes com pacientes; um indivíduo ajudou com uma lista comovente de palavras que ele associava ao mal de Alzheimer, preenchendo cuidadosamente uma página inteira. Cada texto manuscrito e/ou desenho espelhado tornava-se uma superfície para as manchas feitas em colaboração com outros ou com o próprio Rufino. Ao longo desse processo, a presença autoral de Rufino constituiu uma relação alquímica essencial. O que parecia ser de transcendente importância era a percepção do papel do artista na sociedade, simultaneamente marginalizado e numinoso nas mentes das pessoas. Respeito, talvez, associado a uma vida dedicada ao “tornar visível”. Qualquer que fosse a interpretação, estava claro para Lee e Nancy, bem como para suas famílias, os pesquisadores e o pessoal do ADRC que a presença de Rufino seria fundamental para o evento.

Novos encontros: Rufino e Warhol

“Sou um artista muito sombrio”, comentou Rufino, sorrindo; sua paleta, negra e cor terra de siena, bem distante das cores fluorescentes da famosa arte pop. Educado em um ambiente de política radical e de antiamericanismo, o artista descreve em seu comentário sua perplexidade literal e metafórica durante uma primeira residência (em 2009), que marcou o início de seu encontro e de seu envolvimento com a arte e a prática de Warhol, com Pittsburgh, e com o mal de Alzheimer.

Um ano mais tarde o artista havia terminado de produzir vários trabalhos para Blots & Figments, utilizando substratos especificamente warholianos: camadas de manchas poéticas e intensas que cobriam as imagens-fonte das séries Cadeiras elétricas e Caveiras de Warhol; manchas que pareciam evocar estranhas criaturas cobriam antigos álbuns de formatura do colégio Schenley High School frequentado por Warhol; manchas delicadas e líricas no estilo de Rorschach impressas sobre sobras de papel do ateliê de Warhol e páginas do jornal Pittsburgh Post-Gazette publicadas durante as décadas em que Warhol viveu naquela cidade (1928-1949). Em todos esses casos – à exceção das manchas sobrepostas à imagem-fonte da série Caveiras –, Rufino produziu uma camada de substrato adicional através da seleção de partes da série Rorschach de Warhol e da criação de serigrafias dessas imagens, imprimindo essas “manchas” apropriadas do artista americano antes de acrescentar as suas.

1_Rufino_Substantia copy José Rufino. Substantia (serie 1 – 6), 2010. Serigrafias de tinta vinil baseadas na foto usada por Andy Warhol em sua série Electric Chairs. Impressões sobrepostas (monotipias com têmpera e acrílica) à maneira de Rorshach sobre papel velho alinhado e montado em papel arroz.

Um novo vídeo apresentava uma compilação de imagens de velhas fotografias do passado industrial de Pittsburgh, o espelhado por Rufino através de um estilo de manchas que resultou em um belo e elegíaco retrato dessa cidade. Cada obra contribuiu para um complexo palimpsesto criativo, visual, material e textual – uma rica camada de memórias extraídas do passado de Warhol: a cidade na qual ele cresceu, o colégio que frequentou, seu ateliê e seus trabalhos de arte.

1_pittsburg_myriorama_198mix_22752 José Rufino. Myriorama No. 3. 2009/2010. Vídeo criado usando imagens tiradas de fotos antigas de Pittsburgh (revistas, jornais e fotografia em várias coleções), dobradas à maneira de Rorschach. 1 hora aprox.

Meu primeiro contato com a obra de Rufino talvez tenha preparado a cena para o seu engajamento com um universo artístico opositor. Em outubro de 2005, visitei o Museu de Arte Contemporânea (MAC) em Niterói. Empoleirado em uma península e contemplando, do alto, a esplendorosa baía de Guanabara no Rio de Janeiro, o museu circular projetado pelo renomado arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer representa notório desafio para artistas. O edifício, a vista e as imensas janelas de vidro conduzem o olhar do visitante para o exterior. A arte fica sem condições de competir. É raro o artista ou o projeto que consiga se mostrar à altura da ocasião. Mas, ao alcançar esse feito, consegue, também, capitalizar sobre um ambiente afetivo igualmente raro e uma diversidade de públicos provavelmente sem paralelo entre os museus de arte contemporânea.

No dia em que visitei Por que museu?, a exposição do artista brasileiro Nelson Leirner (1932) estava no primeiro andar do MAC. Pop e incisivamente crítico, Leirner lidava com o espaço de modo debochado. A ocupar o espaço central, uma procissão carnavalesca de centenas de bonequinhos culminava ao redor de um estádio de futebol. Ao longo da galeria da varanda que dá para o mar, latas de Coca-Cola, um Cristo, imagens de santos e uma enorme vaca posavam ladeadas por duas espreguiçadeiras e um guarda-sol, todos virados para o mar, como que antecipando o desejo do visitante de desistir de sua visita à exposição para curtir a paisagem lá fora.

No segundo andar, a exposição de José Rufino Incertae sedis (literalmente, aquilo que não tem classificação) abraçava a galeria em forma de “O” com sua grande parede circular forrada pelo prolongamento dos tapetes cinzentos, fechada ao mundo exterior e aberta ao andar de baixo e às vistas do colorido desfile criado por Leirner. Era como adentrar um mundo novo, denso com a presença da história. Trilhas de carimbos burocráticos presos às paredes ligavam escrivaninhas suspensas; raízes ameaçadoras brotavam de armários altamente envernizados; antigas máquinas de escrever cuspiam fitas de texto e uma fileira de belas malas e caixas de diversos tamanhos pareciam afagar pedras brancas como se fossem ovos. Desenhos delicados funcionavam como palimpsestos sobre correspondências antigas. Densas obras escultóricas combinavam mesas, escrivaninhas e cadeiras com etéreas manchas de Rorschach que lembravam sudários sobrepostas em camadas por cima de colagens feitas com documentos de arquivo – uma experiência penetrante de apreensão de memória e esquecimento, de uma violência tangível, e um mundo kafkiano de poesia e administração perdido entre burocracias corruptas e brutais. Para o MAC, Rufino criou uma nova obra baseada em cartas e correspondências que haviam sido doadas a ele por Lúcia Alves, filha de Mário Alves, importante ativista que fora executado durante o período da repressão militar. Ver os papéis do pai cobertos por imagens de Rorschach, coladas à tampa de uma antiga mesa de fisioterapia, parecia engendrar em Lúcia uma transformação, a cura de uma vida escondida e anônima trazida a público e agora, de algum modo, liberadas. O ressonante contraste dessas exposições, uma delas pop e abertamente provocadora, a outra sombriamente poética, metafísica e ética, acrescentou algo à experiência de ambos. Meus anos de engajamento com as superfícies pop de Warhol me levaram a compará-las com as ricas camadas de texturas de Rufino. Ambos os artistas utilizam substratos – Warhol, a imagem-fonte, e Rufino, o documento de arquivo. Ambas as superfícies têm densidade psicológica. As de Warhol se alimentam da instantaneidade do reconhecimento e da ausência universais. Sejam elas de Coca-Cola, de Marilyn Monroe ou da cadeira elétrica, Warhol nos dá imagens nas quais o artista habilmente se ausenta do retrato; é a pletora de associações que trazemos até elas que lhes dá ânimo vital. A presença paira sobre as superfícies que Rufino chama de “contaminadas”. Como camadas de uma escavação arqueológica, suas imagens e esculturas contam histórias habitadas. Warhol dispõe as vibrações; Rufino, os tons etéreos. Como boa parte da obra do artista (e, em particular, de suas abstrações), as manchas de Warhol justapõem o lírico e o banal, o decorativo e o alquímico. Rufino utiliza o Rorschach como meio material, psicológica e espiritualmente.

PLASMATIO_MAC_2005_1 José Rufino. Plasmatio, 2002. Monotipias à maneira de Rorschach, sobre documentos relativos à desaparecidos políticos brasileiros, móveis de imbuia, caixas de madeira, carimbos e fios. Coleção particular. Foto: Paulinho Muniz

8_Imagens mac niteroi 022 - foto Paulinho MunizJosé Rufino. Plasmatio, (Niterói), 2005. Monotipias à maneira de Rorschach, sobre documentos relativos à desaparecidos políticos brasileiros, móveis de imbuia, caixas de madeira, carimbos e fios. Coleção particular. Foto: Paulinho Muniz

Fiquei curiosa sobre o que aconteceria se houvesse um encontro entre as obras desses artistas. Como essa conjunção poderia oferecer perspectivas diversas sobre a série Rorschach de Warhol – raramente exibida, pouco conhecida e sobre a qual ainda menos se escreveu? De que modo Rufino lidaria com o artista norte-americano? Também me interessava profundamente desenvolver um projeto de residência artística e em um contexto colaborativo para Rufino no qual sua obra poderosa pudesse reverberar de novas maneiras.

RUFINO_DIREITO AUTORAL_ANDY WARHOL Imagem de instalação com Rorschach, 1984 de Andy Warhol (esquerda), tinta acrílica sobre linho, The Andy Warhol Museum Pittsburgh, Coleção de fundação, contribuição Dia Center for the Arts (c) The Andy Warhol Foundation for Visual Arts Inc./ licenciado pelo AUTVIS, Brasil, 2013, junto com a série Substantia, 2010 de José Rufino. Foto: Richard Stoner.

Rorschach de Warhol

Em 1984, Warhol deu início a uma série de pinturas inspiradas pelo teste psicológico idealizado por Herman Rorschach.18 O artista andava fascinado por imagens que pudessem ser lidas simultaneamente como abstratas e decorativas, ainda que estivessem imbuídas de ricas associações tais como na sua série de pinturas Camuflagem. Warhol perguntava constantemente aos seus companheiros: “o que poderia pintar que fosse abstrato, mas que não fosse, de fato, abstrato?”19

O Rorschach se configurava, pois, como a escolha perfeita. Ao mesmo tempo em que funcionava como decoração abstrata, a natureza da simetria aberta da mancha de tinta sempre pode ser lida como alguma coisa específica, por exemplo, “dois homens conversando em frente a uma lareira” ou “um elefante dançando”. Tanto melhor se, por sua vez, essas interpretações revelam nossos padrões psicológicos e se o teste de Rorschach há muito já tivesse entrado para os anais da cultura pop – isso o tornava ainda mais atraente. Decerto, as manchas eram de importância fundamental em um jogo de salão de quiromancia do século 19 chamado blotto.20, 21 Combinadas com a popularidade constantemente em mutação do teste de Rorschach (desde a época de sua introdução até que se tornasse simultaneamente a mais querida e vilipendiada entre as ferramentas de avaliação psicológica), essas características fazem dele uma imagem profundamente adequada22 e uma excelente metáfora para o artista que declarou: “Se você quiser saber alguma coisa sobre Andy Warhol, olhe apenas para a superfície de meus quadros e filmes e de mim mesmo – e ali estou. Não há nada atrás disso”.23 E, no entanto, essa “superfície” é rica na possibilidade de múltiplos significados. É isso mesmo que o crítico Charles Stuckey sugere em sua descrição das leituras contraditórias da obra de Warhol: “ingênua e sofisticada, cara de pau e pastelão, atrapalhada e lírica, berrante e arrebatadora, entediante e provocadora, trivial e profunda”.24 A obra do artista funciona como um teste projetivo. Em sua bela plasticidade abstrata e suas conotações de psicometria séria, psicologia pop, espiritismo e projeção divinatória, o teste de Rorschach não captura apenas as contradições artísticas warholianas; revela, também, suas contradições humanas (de festeiro inveterado e católico devoto a astuto homem de negócios e adepto da cristaloterapia).

Jay Shriver, assistente do artista em meados da década de 1980, nota que Warhol se divertiu tanto enquanto estava produzindo a série Rorschach que fugia até mesmo de seus compromissos.25 É nesse momento que a série se torna uma força reveladora na obra do artista. Warhol não só gostava de estimular leituras vazias de sua obra, cultivava, ainda, a imagem de uma produção fácil, refletida no fato de que ele apelidou seu ateliê de The Factory [A Fábrica]. No entanto, a série Rorschach (e, em particular as imensas telas de 396 x 274cm) implicava complicadas dobras e manchas, na descrição de Shriver, que deixam a impressão de um procedimento artístico difícil, rigoroso e monumental.26 Ainda segundo Shriver, não só estava claro que “a abstração era um elemento importante no qual Warhol queria investir” como também “simplesmente não se encomendavam pinturas abstratas”.27 Parece a maior de todas as ironias que o rei do pop tenha recuperado a abstração como forma de resistir à produção de arte capitalista de seus retratos encomendados. Para Warhol, no entanto, o movimento em direção à abstração jamais poderia ser exclusivamente lírico ou político. O legado de Duchamp esteve sempre por perto. No entanto, o que a forma do teste de Rorschach permite é a possibilidade de reproduzir tanto o alfa como o ômega de duas das influências-chave de Warhol – a ironia inteligente dos readymades de Duchamp e o silêncio poético e experimental das composições musicais de John Cage. De um modo mais amplo, o convite aberto do teste e sua resistência à interpretação oferecem uma metáfora ricamente adequada para a leitura da obra de Warhol como um todo.

3_DgR_01 1998.1.297_2 Andy Warhol. Rorshach, 1984, acrílico sobre linho, The Andy Warhol Museum Pittsburgh, Coleção de fundação, contribuição Dia Center for the Arts (c) The Andy Warhol Foundation for Visual Arts Inc./ licenciado pelo AUTVIS, Brasil, 2013.

Manchas e invenções: uma práxis de resistência

Mais ou menos na época em que produziu suas pinturas Rorschach, Warhol publicou, também, o livro America, uma combinação de fotografias e comentários. Nele, reflete (no contexto de um grupo de imagens de cemitérios) que para sua lápide gostaria de ter apenas a palavra “figment”28 [“invenção”] como epitáfio.28 Esse pedido oferece outras leituras dos quadros Rorschach de Warhol como memento mori, como mediações sobre a transitoriedade. Apresentado com a intensidade feroz das manchas da Substantia de Rufino, que usa a imagem-fonte da série Cadeira elétrica de Warhol, a luminosidade prateada das manchas em Legatum-Rorschach-Warhol – feito com sobras de papel do ateliê de Warhol – empresta uma ressonância visceral a essa interpretação.

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José Rufino. Legatum Rorschach-Warhol (serie 1 – 8), 2009/2010. Serigrafias de tinta vinil compondo reproduções parciais da série Rorschach de Andy Warhol.  Impressões sobrepostas (monotipia com têmpera e acrílica)  à maneira de Rorshach sobre papel colorido remanescente do ateliê de Warhol.

Essa sensibilidade tem continuidade na série Morbus de Rufino, que utiliza manchas multidirecionais que emanam da cabeça e dos olhos de uma caveira, a mesma imagem-fonte utilizada por Warhol em sua série Caveiras de 1976. Nas naturezas-mortas holandesas do século 17, em meio às frutas suculentas e riquezas, a caveira é um símbolo clássico da natureza efêmera da vida. A imagem de Warhol brinca (e dá continuidade) com a sobriedade passageira do símbolo ao nos dar o que poderia ser um irônico retrato pop do destino de todos nós, a imagem de uma caveira solitária entre amarelos, rosas e azuis ácidos, fundindo os retratos encomendados ao artista pelo mundo da alta sociedade e a energia do movimento punk que eclodia no momento de feitura da série.

1_pittsburg_myriorama_198mix_22752 Morbus (serie 1 – 4), 2010. Serigrafias de tinta vinil baseadas na foto usada por Andy Warhol em sua série Skulls. Impressões sobrepostas (monotipias com têmpera e acrílica) à maneira de Rorshach sobre papel velho alinhado e montado em papel arroz.

No entanto, as manchas de Rufino nos proporcionam uma dinâmica severa, uma resistência urgente, pirata, singular e a energia criativa do pensamento. Rufino vira pelo avesso o sentido do pop de Warhol e, no processo, nos permite virar pelo avesso nossas leituras de Warhol. Ser artista é subverter o palimpsesto da história da arte. É essa escavação e esse ato criativo de derrubar e emborcar que podem oferecer uma estrutura para práticas de resistência que engajam de forma direta as circunstâncias frequentemente alienantes em que vivemos, que reivindicam histórias perdidas, criticam injustiças, registram amor e dor e lidam com perdas.

Conforme havia sido sugerido previamente a Lee e Nancy, ao subverterem práticas familiares para seus próprios fins de recordação, uma prática da memória pode se tornar um meio de resistência e, como tal, um exercício de poder. Essa recordação não é a memória reificada da realização individual abraçada pelos gregos, mas a simplicidade cotidiana de quem somos, daquilo que valorizamos, conhecemos e amamos. Aparentadas à ideia de uma espécie de tekhne da vida, de técnicas de viver, quando libertadas das exigências da capacidade, as práticas de memória podem ser vistas como uma prática consciente da liberdade criativa, do abrir-se para o tempo em lugar de recordá-lo.

A noção dos binários psicológicos que se encontram no cerne das transições do ciclo da vida (criada pelo psicólogo Erik Erikson) nos oferece uma maneira útil de compreender essa abertura para o tempo. Erikson enxerga a constituição do self como um processo em constante evolução, um processo de vivenciar e de vencer embates tais como identidade x confusão de identidade durante a puberdade ou generatividade x estagnação na meia-idade ou integridade x desespero na velhice.30 Nesse contexto, a fim de desempenhar um papel produtivo para o self, as práticas de memória precisam se engajar nos conflitos do self adequados a cada estágio da vida. É nesse sentido, particularmente vital no contexto do mal de Alzheimer, que os processos criativos da memória – sejam eles relatórios (como o de Lee) ou mapeamentos de palavras (como o de Nancy) – tenham menos a ver com cognição e mais a ver com a integridade e os atos conscientes do aqui e agora. Mais importante: não servirão para dissolver essas lutas em alguma espécie de utopia da memória, mas para que se adquiram, como sugere Foucault, “regras de direito, técnicas de gestão e também a moral, o ethos, a prática de si, que permitirão, nesses jogos de poder, jogar com o mínimo possível de dominação”.31

O uso da mancha de Rorschach por Rufino oferece uma espécie de cenário para a performance e o colapso de tais embates, permitindo, a uma só vez, leituras contrárias e altamente específicas que, ainda assim, se emprestam a interpretações múltiplas. Ao encenar a mancha em diversos substratos, Rufino liga mundos passados com o presente e traz esforços e possibilidades à percepção viva e vivenciada. Lidas as obras como memento mori, cada uma delas captura um fluxo de memória e de esquecimento, um testamento simultâneo à recordação e ao reconhecimento da natureza efêmera da vida, da percepção e da perda. Lidas como invenções, as manchas evanescentes e as superfícies contaminadas são momentos transitórios do imaginário criativo e da plenitude da vida, lembradas, vivenciadas e almejadas. Como espécie de paleontologia poética e subversiva, a prática de Rufino medeia atos de consciência no presente que transfiguram o passado e se fundem com o possível. No contexto do mal de Alzheimer essa prática engenhosa oferece uma maneira (ainda que momentânea) de deslocar o discurso sobre a memória da cognição para a integridade.

MEMORABILIA José Rufino. Memorabilia (polytych), 2010. Serigrafias de tinta vinil sobre papel velho alinhado junto com depoimentos escritos, impressões, poemas, anotações e documentos coletados dos pacientes, cuidadores e pesquisadores afiliados ao Alzheimer Disease Research Center da Universidade de Pittsburgh. Impressões sobrepostas (monotipias com têmpera e acrílica) à maneira de Rorshach criadas em parceira com o artista e alguns pacientes e suas famílias, além de pesquisadores do Centro.

Se existe um papel na ciência a ser desempenhado pela arte ou mesmo pela arte como uma ciência em si, seria o de estendê-la para além da segurança dos limites da estética até os da ética para tornar visíveis essas bordas, para questionar os discursos de ambas, pondo em risco a resistência às pressuposições e os consensos da prática, abrindo um terceiro espaço – simultaneamente estético e científico, autônomo e instrumental; e poético e curativo. O processo e a obra de Rufino tornariam real tal espaço radical.


1VELOSO, Caetano. Vaca profana. Totalmente demais, 1986.
2Troca de e-mail com o artista, novembro de 2009.
3Dr. Rick Morycz, Conversation: “Reflections on impact and process: a collaboration with José Rufino, The Andy Warhol Museum, and the University of Pittsburgh Alzheimer Disease Research Center” (a ser publicado)
4FOUCAULT, Michel. Discipline and punish: the birth of the prison. Trad. Alan Sheridan. New York: Vintage, 1995 (Publicado na França como Surveillir et punir: naissance de la prison. Paris: Gallimard, 1975, e em português como Vigiar e punir: História da violência nas prisões), p. 183.
5FOUCAULT, Michel. The subject and power. In: James D. Faubion (Ed.). Michel Foucault: power. New York: The New Press, 2000. p. 342.
6Dr. Rick Morycz. Op. cit.
7RIFKIN, Adrian. Artistic Education of the Public. e-flux, fevereiro 2010.
8Cartas de Areia.
9Conversa com Rufino, outubro de 2005.
10TAYLOR, Diana. The archive and the repertoire: performing cultural memory in the Americas. Durham: Duke University Press, 2003. p. 24.
11Ibid., p. 24.
12DERRIDA, Jacques. Freud and the scene of writing. In: Writing and difference. Trad. Alan Bass. Chicago: University of Chicago Press, 1978. p. 197, citado in Taylor, op. cit. p. 25.
13FOUCAULT, Michel. The history of sexuality: an introduction. v. 1. Trad. Robert Hurley. New York: Vintage Books, 1990 (Publicado originalmente em francês: La volonté de savoir. Gallimard, 1978) p. 73 e 96.
14FREIRE, Paulo. Pedagogy of the oppressed. 30. ed. Trad. Myra Bergman Ramos. New York/London: Continuum, 2007 (1ª ed. 1970).
15Sudário. Referência ao pano usado para limpar o rosto de Cristo e a sensação de presença corporificada no tecido.
16VERGARA, Luiz Guilherme. “Arte plásmica: confluências entre arte e existência”. Catálogo da exposição “José Rufino: Incertae sedis”. MAC Niterói, 2005.
17Texto-convite de José Rufino e Jessica Gogan, enviado por e-mail em março de 2010.
18De acordo com David Bourdon em sua biografia do artista, muito embora Warhol parecesse achar que o teste de Rorschach exigia a criação de uma mancha original pelo sujeito do teste em vez de uma mancha existente. BOURDON, David. Warhol. New York: Harry N. Abrams, 1995. p. 393-394.
19Citado por Bob Colacello, um antigo parceiro do artista. Andy Warhol, 365 takes: The Andy Warhol Museum collection/by the staff of The Andy Warhol Museum. New York: Harry N. Abrams, Inc. 2004, p. 324.
20WOOD, James M.; M. NEZWORSKI, Teresa; SCOTT O. Lilienfeld & Howard N. Garb. What’s wrong with the Rorschach? Science confronts the controversial inkblot test. San Francisco: Jossey-Bass, 2003. p. 23.
21NT: Do inglês blot = mancha.
22Op. cit., WOOD p. 1.
23 Entrevista com Gretchen Berg. “Andy: my true story”. Los Angeles Free Press (17 de março, 1967), p. 3 (extraído de East Village Other).
24 STUCKEY, Charles F. “Warhol: backwards and forwards”. Flash Art 101 (janeiro/fevereiro, 1981). In PRATT, Alan ed. The Critical Response to Andy Warhol. Greenwood Press, London, 1997, p.140
25KETNER, Joseph D. Andy Warhol: The Last Decade. Milwaukee Art Museum-Prestel, 2009. p. 30.
26Ibid., p. 45.
27Ibid.
28N.T. Em inglês, o título original da exposição foi “Blots and figments”. Embora o artista e a curadora tenham optado por traduzi-lo como “Manchas de esquecimento”, achamos por bem manter neste trecho do ensaio a palavra “figment”, juntamente com sua tradução (“invenção”).
29Observação feita por Rosalind Krauss em KRAUSS, Rosalind. Andy Warhol, Rorschach paintings. New York: Gagosian Gallery, 1996, p. 5.
30ERIKSON, Erik H. Identity and the life cycle. New York/London: WW Norton & Company, 1980 (1ª ed., 1959).
31FOUCAULT, Michel. “The ethics of the concern for self as a practice of freedom”. In: RABINOW, Paul (Ed.). Michel Foucault. Ethics: subjectivity and truth. New York: The New Press, 1997. p. 298.