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Programa Marés em Rio Grande, RS. Foto: Cristiane Barcellos

Ressurgências poéticas: o Programa Marés e a cidade

Rafael Silveira (Rafa Éis)

Em nove edições da Bienal de Artes Visuais do Mercosul, sediada em Porto Alegre, no Rio Grande de Sul, muitas pessoas incríveis se dedicaram ao Projeto Pedagógico deste grande evento de arte contemporânea, tornando-a um reconhecido centro experimental poético-educativo1. Falo de mediadoras, professoras, estudantes de todas as idades, artistas, produtoras, visitantes, curadoras, pesquisadoras, famílias, enfim, pessoas que vivenciaram a arte como invenção de si com o outro através das ações do Projeto Pedagógico dessa instituição. São gerações de educadores da arte e artistas da educação formados nos interstícios da poética e da pedagogia, criando assim territórios extradisciplinares2, lugares à sombra das luzes do espetáculo institucional.

É deste lugar que – no intuito de produzir pensamento com a experiência de um especial programa com educadores e, também, gerar testemunho deste tão pouco falado acontecimento – lhes trago notícias3.

Em 2013, a 9ª Bienal do Mercosul | Porto Alegre –, sob o título Se o clima for favorável – trouxe como mote a “interação entre natureza e cultura e os modos como os artistas visuais referem-se ao desconhecido, ao imprevisível e aos fenômenos aparentemente incontroláveis”4. Metodologicamente independente e conceitualmente entrelaçado ao projeto curatorial, o Programa Redes de Formação desenvolveu e articulou uma série de ações experimentais não apenas em Porto Alegre – capital gaúcha e sede das principais mostras –, mas também em diversas cidades, como veremos mais adiante. Sob a coordenação pedagógica de Mônica Hoff, também uma das curadoras da 9ª Bienal, e voltado aos mais diversos públicos, o Redes trouxe o mais experimental e ousado conjunto de ações já desenvolvido com o Projeto Pedagógico na Bienal. Nas palavras de Mônica Hoff:

Possibilitar encontros, ativar relações, atuar como corpo-corporal e corpo-social é o que propõe o projeto pedagógico da 9ª Bienal do Mercosul | Porto Alegre com o Programa Redes de Formação. Como uma iniciativa de formação integrada para educadores, mediadores e público curioso e aficionado da arte, a educação na 9ª Bienal se amplia no espaço e no tempo a fim de colocar em diálogo, numa única rede, agentes comumente situados em redes isoladas.5

O Redes reuniu um conglomerado de programas6 que celebravam poéticas da alteridade e pedagogias da invenção. Entre eles havia um a ser pensado para professoras e professores: o Programa Marés. Foi nele que mergulhei. É sobre este mergulho que eu falarei um pouco, tentando trazer, pelo menos, a brisa de suas “ondas-memórias” para este pequeno copo de “palavrágua”.

O devir-maré da arte

No ano de realização do Programa Redes de Formação, as ruas de inúmeras cidades do Brasil foram campo de uma série de embates pelo espaço comum. O direito à cidade, a disputa pela mobilidade urbana, as tomadas de territórios sensíveis e simbólicos, as privatizações dos espaços públicos, as remoções, o estado de exceção na instauração da Copa do Mundo de Futebol, o controle e a violência do Estado foram temas postos em pauta por meio de multidões nas ruas7.

Por Ramiro Furquim/Sul21
Manifestação na cidade de Porto Alegre (RS). Junho de 2013. Foto de Ramiro Furquim/Sul21. Imagem extraída da matéria escrita por Samir Oliveira: “2013: O ano que não terminou”. Veja aqui

Com intensa agenda de manifestações e protestos, estudantes, coletivos, professores e movimentos sociais tomaram cidades de todas as regiões do país, inundando ruas, avenidas e praças com um mar de gente. Neste ano ganham evidência no país o MPL (Movimento Passe Livre), as táticas de ação direta black blocs, a Mídia Ninja e diversos outros grupos e movimentos sociais. Inúmeros coletivos de comunicação independente protagonizaram cobertura e transmissão das manifestações, em especial através da rede com a produção de testemunhos imagéticos e audiovisuais da violência do Estado. A rua é experienciada e narrada de muitas perspectivas.

Do ponto de vista da polícia, uma rua é um espaço de circulação. A manifestação, por sua vez, a transforma em espaço público, em espaço onde se tratam os assuntos da comunidade. Do ponto de vista dos que enviam forças da ordem, o espaço onde se tratam os assuntos da comunidade situa-se alhures: nos prédios públicos previstos para esse uso, com as pessoas destinadas a essa função. Assim o dissenso, antes de ser a oposição entre um governo e pessoas que o contestam, é um conflito sobre a própria configuração do sensível.

Jacques Rancière8

Neste cenário são inevitavelmente aquecidas as disputas por representações: nas redes sociais, propagandas partidárias, matérias televisivas, vídeos e streamings (transmissão audiovisual direta, sem cortes ou edição) de grupos de mídia independentes, mesmo nas conversas informais que ocorrem no ônibus e na fila do supermercado, enfim, em todos os lugares os discursos e imagens eram acoplados às manifestações, puxando e esticando os eventos nas ruas para todas as direções possíveis.

Quando no mesmo ano eu, Luciano Montanha e Letícia Bertagna iniciamos, com Mônica Hoff, o desenho do que seria o Marés, o programa já tinha um nome, mas ainda não tinha corpo. Éramos desde então um “ajuntamento” de artistas com práticas e interesses afins: Letícia tinha em sua poética o desejo de encontro com o outro, Luciano e eu já partilhávamos experiências entre a arte e a educação. Havia ainda, na concepção do projeto, o encontro com o clima.

Mesmo sendo as formações com professores regulares desde as primeiras edições, estávamos interessados em experimentar estratégias distintas, sobretudo em territórios além-muros. Em 2013 o contexto sociopolítico convocava nossos corpos para a ocupação do espaço comum. Os climas eram favoráveis e os solos, férteis para a criação: quinze cidades do estado do Rio Grande do Sul9 para pensar e artistar com professores atuantes em diversos territórios do saber e níveis de ensino.

Logo, vimos ali uma grande possibilidade de experimentação artística, pedagógica e micropolítica10. Pensamos também que, como a teia experimental que integrava o Programa Redes de Formação, o Marés deveria se constituir aberto às singularidades das forças a serem lançadas em cada um dos seus encontros. Assim, envoltos em um complexo plano de forças e encarnando o próprio fenômeno natural das marés como procedimento, desenhamos um possível modo de navegação neste dado percurso físico entre cidades. Abrimos nossas velas aos seus imprevisíveis encontros e afetos.

O fenômeno das marés se dá pelo efeito de interações de forças gravitacionais do sol e da lua sobre os níveis dos oceanos. Tais forças, se combinadas com a ação dos ventos sobre os mares, podem produzir um lindo evento natural chamado ressurgência. Este evento é fundamental para a renovação da cadeia alimentar marítima e se dá quando as águas das camadas mais profundas, ricas em nutrientes, sobem à superfície. Os nutrientes, antes inertes, quando sobem às camadas iluminadas são utilizados por algas que em sua fotossíntese produzem microalgas, alimentos de zooplancton que servem de alimento a pequenos peixes.

O que nos interessa aqui é o modo como essa relação de forças produz, por meio da atualização das camadas mais profundas na superfície, a efetivação dos nutrientes que farão a manutenção da cadeia alimentar nos mares. Atraídos pela beleza desse movimento, tratamos então de deslocá-lo do plano da oceanologia para realocá-lo nos imprecisos limites entre a arte e a educação. Estimular ressurgências afetivas: buscar os discursos e imagens que não estão dispostos ao olhar, trazê-los à superfície tornando-os alimento para a produção poética com a cidade, afetar e ser afetado pelas relações que inventam o comum. “Devir-maré” da arte.

O território e a estratégia

O desafio consistiria em livrar-se do pseudo-movimento que nos faz permanecer no mesmo lugar, e sondar que tipo de meio uma cidade ainda pode vir a ser, que afetos ela favorece ou bloqueia, que trajetos ela produz ou captura, que devires ela libera ou sufoca, que forças ela aglutina ou esparze, que acontecimentos ela engendra, que potências fremem nela e à espera de quais novos agenciamentos.”11

Peter Pál Pelbart

O Rio Grande do Sul é um estado cheio de nuances e formas que parecem trair a imagem de brasilidade que congrega lindas praias, samba e clima tropical. No extremo sul do país as cores podem amanhecer cobertas pela geada. A paisagem e o inverno rigoroso se entrelaçam às contraditórias narrativas em torno da constituição identitária do gaúcho. Em diversos aspectos culturais e climáticos o sul aproxima-se dos vizinhos hispanohablantes Uruguai e Argentina. Mesmo o gaúcho (gentílico para designar as pessoas nascidas no Rio Grande do Sul) é oriundo do gaucho (ou homem do campo) dos países vizinhos. É forte a influência da cultura europeia (sobretudo em função da colonização italiana e alemã), e as culturas negra e indígena, embora muito presentes nos hábitos e essenciais na constituição do Rio Grande, resistem às narrativas dominantes de construção do estado. Os mares pelos quais navegamos evidenciam a multiplicidade de cores e cheiros, texturas e sotaques que banham o Brasil.

Localização do Rio Grande do Sul no mapa do Brasil. Deslocamentos do Programa Marés pelo estado do Rio Grande do Sul. Ilustração de Luciano Montanha.
Imagem 1: Localização do Rio Grande do Sul no mapa do Brasil.
Imagem 2: Deslocamentos do Programa Marés pelo estado do Rio Grande do Sul. Ilustração de Luciano Montanha.

Nossa estratégia de intervenção com os educadores locais nessas cidades incluía distintos momentos: a criação coletiva de repertórios poéticos; a atenção com a escuta e com o discurso em múltiplas vozes; a criação coletiva de situações poéticas nos espaços comuns da cidade e, finalmente, a partilha das experiências nas ações com discussão sobre desdobramentos na escola. Tal percurso metodológico era realizado em encontros de longa duração. Passávamos oito horas de intensa atividade com os professores. A duração das etapas poderia variar conforme as respostas dos grupos. Cada cidade com seu clima, suas paisagens e seus ventos próprios.

Com a concha no ouvido: a escuta

Butiá era o destino de nossa expedição inaugural. Uma pequena cidade com pouco mais de 20.000 habitantes. Embora carregue o nome da árvore que gera uma pequenina fruta típica do sul, a cidade teve sua economia e sua história erigidas sobre a indústria carbonífera, a qual teve seu auge de produção entre as décadas de 1940 e 1950. Hoje, a paisagem de Butiá possui enormes feridas na terra oriundas de minas de extração a céu aberto.

Em nossa primeira viagem encontraríamos já aquele que seria o nosso maior público: quase 200 professores nos aguardavam. Mas não apenas: havia um mar inteiro contido nas nuvens. Embora a chuva não nos tivesse permitido experimentar qualquer tipo de deambulação nas ruas – apenas projetá-la –, o momento dedicado à escuta condensou o tempo e o espaço.

Éramos artistas estrangeiros em cada cidade visitada (à exceção de Porto Alegre), e, nesta condição, nosso desejo foi fazer com que a palavra pudesse transitar entre distintas vozes e narrativas criando lugares construídos na experiência daqueles que habitam a cidade. Dessa forma, utilizamos, como maneira de disparar uma conversa sobre a história e o atual momento da cidade, algumas cartas por nós produzidas com base numa prévia pesquisa. Nas cartas, notícias, imagens e discursos sobre a cidade oriundos de diversas fontes (matérias de jornais, sites das prefeituras, materiais institucionais de empresas atuantes na cidade, notícias da situação ambiental, contextos políticos etc.)12.

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Professoras falam sobre sua experiência com a cidade. Butiá, RS. Imagens de Letícia Bertagna.

Nas vozes das professoras predominaram as marcas do passado carvoeiro: o renascimento daquele que é resgatado do desabamento de uma galeria subterrânea, o cuidado que os mineiros têm entre si – cúmplices de vida, o corte no coração gerado pelo apito ao anunciar que não seriam todos os mineiros que retornariam para casa13. Aos poucos, sendo aquela a nossa primeira experiência com a cidade, fomos levados pelas presentes memórias das professoras às profundas galerias da história do carvão na subjetividade de Butiá. Tornou-se visível como os modos de vida da cidade podiam ser envoltos por essa nuvem de pó de carvão, que só ganha matéria quando encontra uma superfície qualquer para aderir, seja a superfície das casas, da pele, dos pulmões ou da memória. Por outro lado, ouvimos também sobre outras vocações da cidade, como a agricultura, e mesmo a expressão da vontade de novos caminhos, sobretudo através da arte e da cultura14.

Se não há, inventemos!

Na primeira capital do estado, o município de Viamão, os grupos de professores converteram falta em abundância. Fundada no ano 1.741, às margens da Lagoa dos Patos, a cidade conta com 239.384 habitantes e com vasta extensão territorial que se alterna entre centros comerciais e grandes áreas verdes.

Quando conversávamos sobre o contexto educacional da cidade, muitos professores se referiram à falta de espaços de escuta para a troca de experiências e estratégias em suas práticas pedagógicas no âmbito escolar. Essa lacuna, embora descrita como um problema da estrutura da instituição escola, reflete a crescente perda de espaços de participação popular na gestão das cidades, em prol da burocratização do tempo e da imposição de um ritmo de trabalho e produção que frequentemente se sobrepõe aos espaços de análise e transformação participativa de microcontextos.

Em um momento no qual a “crise da representação” retornava com força nas discussões sobre a política contemporânea, tornava-se urgente atuar de modo a reduzir as mediações, trabalhar na produção de falas na primeira pessoa e criar zonas de contato direto entre pessoas e contextos.

Foi, então, em um belo movimento que a maioria dos grupos de professores, em sua deriva pela cidade, produziu como intervenção a proliferação de dispositivos de escuta. As derivas caminhantes eram realizadas em pequenos grupos e pelo menos três dos cinco grupos que atuaram no encontro criaram modos de ouvir os moradores em relação à própria cidade em uma estratégia que não era outra coisa senão fruto de um desejo de contágio do cuidado com o outro. Um desejo de mudança expresso na ação.

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Programa Marés na cidade de Viamão, RS. Foto: Grupo de professores, autor não identificado

Entre as estratégias de escuta desenvolvidas pelos grupos estava a criação de uma caixa/urna e de varais que acumulavam desejos e expectativas dos habitantes em relação à sua cidade. Entre tiras de papel depositadas e penduradas por passantes em ruas, praças e escolas, encontramos desde pedidos pela instalação de shopping centers e hospitais públicos até relatos sensíveis e íntimos. Brotavam pesquisas de metodologias artísticas sobre a produção de desejos no contexto da cidade.

Não nos preocupávamos em solucionar os problemas discutidos no momento que precedia à deriva, mas deixá-los abertos para as possibilidades de desdobramentos através da produção artística. Cabia aos participantes do jogo inventar sua própria estratégia de deslocamento e ação. Afetar-se pelas intensas conversas e constituir com elas uma ação no percurso ou ir ao encontro do inesperado, disponível ao acaso. Um dos grupos de professores no encontro realizado em Caxias do Sul atuou de maneira a atravessar essas duas estratégias.

Encontrando o outro que sou

Trata-se de uma aventura. O objetivo dessa aventura é ela mesma. Percorrer. Experienciar. Basicamente a disposição para o encontro: o encontro com o outro, o encontro no outro, o encontro como território que se modifica a cada acesso. No encontro realizo o outro. E realizo a mim mesmo como (o) outro. Ao mesmo tempo, cada um de nós se torna fragmento desses encontros com o mundo. O encontro realiza a tradução efetiva de um evento de criação.”

Ericson Pires15

As representações hegemônicas das cidades disputam os possíveis e impossíveis da efetivação de encontro com o outro. Caxias do Sul – cidade que há muito fora chamada “Campo dos bugres”16 em virtude da presença de indígenas do povo Kaingang – recebera na segunda metade do século XIX um grande número de imigrantes italianos que tornaram o cultivo da uva e a produção do vinho as principais bases da economia de Caxias. Este processo levou a cidade a constituir sua identidade em torno da imagem do imigrante italiano.

fig7 fig8 (4)
Identidade Coletiva. Ação e imagem produzida por professores da cidade de Caxias do Sul

No momento da escuta com o jovem grupo de professores esta imagem totalizante foi duramente questionada. Tornou-se evidente que a cidade não mais cabia no já gasto modelo que para ser erguido teve de exterminar os bugres do campo. Na atual Caxias do Sul, o imigrante não vem da Europa, mas da África, em especial de Gana e de Senegal. A situação socioeconômica desses países tem deslocado uma grande quantidade de migrantes, que na cidade gaúcha tentam vida nova trabalhando na indústria e no comércio, porém quase sempre de maneira ilegal e com baixos salários.

O questionamento em torno da imagem do caxiense teve início no momento de conversa e escuta, mas ganhou outra linguagem no encontro com a diferença, no corpo a corpo com a cidade. Patrícia Parenza, professora de arte em espaços não formais de educação em Caxias, nos conta sobre a ação criada pelo grupo de professores que integrou no encontro do Marés:

A pessoa que era abordada contava um pouco de sua história: a origem do seu sobrenome; de qual cidade era natural; e se ela se identificava com a cidade. Após isso, ela segurava uma placa em que dizia: “Essa cidade sou eu / sou eu essa cidade”. Todas foram fotografadas e recebiam como lembrança sementes de girassol […] Foi dado um título a essa atividade: Identidade Coletiva. A partir disso, senti que cada um preserva um pouco de história, de identidade com o lugar em que vive.”

Patricia Parenza 17

Identidade Coletiva produziu um testemunho visual de uma cidade distinta daquela pintada pelos discursos defensores de uma unidade identitária no município de Caxias. Nos retratos produzidos, distintos moradores da cidade criavam um conjunto em nada homogêneo. A frase “Esta cidade sou eu esta cidade”, repetida em todas as fotos, assinala uma espécie de aliança poética que afirmava a diferença (e não um contrato burocrático que sela a desigualdade). O nome ao pé da composição da foto escrito no chão da rua produz uma marca que situa no mapa da cidade o local do encontro. A partilha de sementes de girassol celebra este encontro, vida em potência a ser cultivada.

fig8 (1) fig8 (5)
Identidade Coletiva. Ação e imagem produzida por professores da cidade de Caxias do Sul

Mares e ventos

Seria impossível abarcar nestas páginas a complexidade dos contextos e das ações produzidas nos encontros com professoras e professores das quinze cidades visitadas no Programa Marés. Haveríamos de falar do voo realizado no Morro Ferrabraz pelas professoras de Sapiranga, da escuta em Novo Hamburgo, dos exercícios de urbanismo coletivo em Santa Maria, da performance com o tempo e da pintura na calçada em Porto Alegre, das interrupções de fluxos em Rio Grande, das cartografias coletivas, enfim. Cada um dos grupos de professores atuantes produziu muitos encontros que mereceriam longas conversas.

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Grupo de professores atuando na cidade Guaíba. Foto: Luciano Montanha.

A vivência do programa fez evidente a importância da dissolução de uma centralidade ou hierarquização discursiva em qualquer tipo de relação que se pretenda de potência e não de poder. O diálogo só é possível quando há escuta, e escutar é ir contra um modo de operar instituído pelos velhos resquícios de práticas colonizadoras que especulam e definem o lugar do outro, lhe retirando a voz. É necessário escapar das falas em nome do outro, que se pretendem como representantes do outro através de um discurso que o torna inferior.

A prática de uma escuta qualificada produz, sobretudo, modos de dizer qualificados. Se pensarmos o exercício do ouvido atravessado pela partilha de práticas artísticas contemporâneas, temos inevitavelmente a criação coletiva de repertórios expressivos. As palavras de Fátima Marques, professora de artes cênicas na cidade de Santa Maria, são exemplares: “Isto para mim é um caminho belíssimo: construir esta cartografia onde eu consiga ir multiplicando minha capacidade de dizer coisas”.18

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Varal dispondo cartas disparadoras. Marés em Caxias do Sul, RS. Foto: Luciano Montanha

Nesta experiência podemos sentir a materialidade da indissociável relação entre política e linguagem. Por isso me refiro ao Marés como um experimento político. Por interferir em uma certa ordem discursiva comum a muitos ambientes de formação e na dada distribuição de lugares sensíveis que recorta a cidade. Segundo Rancière, “a política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo”.19

Estou cada vez mais certo de que é preciso escapar de certos modos de relação pautadas no controle ou tutela sobre a criação ou experiência artística. É exatamente o que nos diz Luciano Montanha, parceiro neste e em outros projetos:

[…] caberia falar de algo que se persegue há muito tempo dentro do campo de arte que é a aproximação arte-vida, essa tentativa de cruzar esses dois territórios da existência, mas que em geral o público vive de maneira indireta através da experiência dos artistas. Nesse caso talvez a produção desses professores-artistas não seja lida como arte pelo sistema de arte, mas se cria, de certa maneira, um espaço-tempo, um estado de arte onde se pode proclamar “aqui é arte e aqui nesse espaço sou capaz de converter o tempo da vida em um tempo de criação e experiência artística”.20

Como artistas cartógrafos, estávamos ali para acompanhar processos e não para supervisioná-los ou orientar sobre direções. Buscávamos intervir o mínimo possível sobre as intervenções dos professores. Desta forma inventamos uma prática que tinha potência de intervenção em certa imagem escolarizada da educação pautada em um gesto missionário-jesuítico e em certa imagem da arte como atividade de produção individual distante do aqui e agora micropolítico. Inevitavelmente operamos uma espécie de dobra na instituição por meio de um esforço permanente de desinstitucionalização de nossas práticas e pensamentos. Adentrar a instituição e inclinar suas velas para os multidirecionais ventos de pulmões coletivos. Propor desvios em trajetórias que tendem à institucionalização da arte e da educação.

Sentimos o desafio de sermos os sujeitos, os artistas, aqueles que modificam o meio, que reorientam a atenção das pessoas. Foi um momento único em que o desafio lançado levou-nos ao encontro de uma nova perspectiva, de uma nova visão da arte.”

João Carlos21

A expressão dos encontros do Programa Marés é a ação dos grupos de educadores-artistas de cada cidade. As ações congregam as conversas iniciais em torno de práticas contemporâneas de arte, o encontro com os estrangeiros que éramos, o encontro com os colegas professores, o encontro com a cidade, com o acaso, com a memória, com o desconhecido. Produzia-se, assim, uma ética da arte pautada no encontro como força criadora. Tal como nos fala Ricardo Basbaum:

O trabalho de arte sendo constituído a partir da habilidade em fazer desviar os fluxos que, em algum momento, deverão passar por ali. Trata-se de cálculo complicado, não linear, que não aponta para a satisfação de uma vontade: qualquer obra de arte envolve uma constante escuta, permanente estado de atenção.”22

Além da experiência prévia dos professores com os contextos, havia todo um plano de forças condensado nos momentos de conversa, para logo expandir-se pela cidade e retornar ao grupo como relato de uma aventura e partilha de repertórios para, depois, deslocar-se para as escolas visando pelo menos acertar seus muros (os de concreto e aqueles microscópicos que cercam nossa relação com o mundo). Ou mesmo, quem sabe, derrubá-los em uma ética da partilha e do contágio.

Realizei com meus alunos intervenções dentro do bairro onde está inserida a escola, com caminhadas, relatos, fotos, desenhos do mapa do bairro, envio de ofício para os responsáveis pelo poder público reivindicando as melhorias necessárias para o bairro. Dentro da nossa escola revolucionamos também, limpamos o pátio, limpamos canteiros, fizemos canteiros […]. Fiquei muito empolgada e consegui empolgar alunos e muitos professores também.23

Helenize Ortnau Cirio

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Professores partilham experiências realizadas nas derivas em Porto Alegre. Foto: Luciano Montanha.

Quando falava no início deste escrito que havíamos encarnado o fenômeno das marés como procedimento não tratava de uma metáfora, mas de algo muito concreto e potente como estratégia para mobilização de forças. Forças que, em movimento, deslocam outras forças, que deslocam outras forças e seguem afetando e sendo afetadas em seus errantes deslocamentos.

É a partir do desejo de deslocamento que a experiência tem início. O deslocamento, ou pôr em movimento, é a própria pulsão de se colocar em outro lugar, se encontrar em outro lugar, que não seja o meu, que eu estou. O movimentar-se é fazer, é produzir a possibilidade do outro, outro lugar, outro eu fora do meu lugar.”24

Ericson Pires

O Programa Marés foi, sobretudo, uma expandida experiência de deslocamento: deslocamento de um fenômeno natural para as práticas artísticas, deslocamento do corpo pelas distintas regiões do estado, deslocamento de práticas poéticas e educativas para zonas de contato com a cidade e com o outro, deslocamento do controle para a disponibilidade, deslocamentos da escuta para a ação, deslocamentos das camadas profundas à superfície, deslocamentos do pensamento, deslocamentos do poder para a potência, enfim, incessante deslocamento do que somos para o que nos tornamos.

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Momento e espaço de ação. Marés em Porto Alegre, RS. Foto: Luciano Montanha.

Talvez este seja um dos mais belos – entre tantos outros possíveis e impossíveis – sentidos do público com a arte: o deslocamento. É o deslocamento que pode multiplicar e entrelaçar os sentidos de arte e do público segundo a qualidade de suas forças na dimensão da micropolítica da arte. Aquilo que se desloca, movimenta na medida em que é movimentado. Quando me desloco me torno o outro que sou, transformo e sou transformado. Sair do que nos é dado, fazer ressurgir o que não está disposto aos olhos criando nutrientes para a prática poético-política. Deslocamentos e ressurgências da diferença. Devir-maré da arte.

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1 Com sua primeira mostra realizada em 1997, a Bienal de Artes Visuais do Mercosul é construída em consonância com o homônimo tratado econômico e pautada no modelo de bienais como as de Veneza e de São Paulo. Com sede na cidade de Porto Alegre, inicialmente o evento contemplava em suas mostras obras de artistas dos países do bloco, mas rapidamente passou a envolver artistas de todo o mundo em suas edições posteriores e a estender suas ações a outras cidades. Hoje o evento – que caminha para a sua décima edição – consolidou-se em Porto Alegre e no estado, sobretudo com seu Projeto Pedagógico, por meio de ações transdisciplinares no âmbito da educação. Cf.: HOFF, Mônica. “Curadoria Pedagógica, metodologias artísticas, formação e permanência: A virada educativa da Bienal do Mercosul”. In: HELGUERA, Pablo & HOFF, Mônica (Orgs). Pedagogia no campo expandido. Porto Alegre: Fundação Bienal de Artes Visuais do Mercosul, 2011, ps. 113-123.

2 HOLMES, Brian. “Investigações extradisciplinares: Para uma nova crítica das instituições”. Revista Concinnitas, volume 1 ano 9, número 12, ps. 7-13, julho 2008.

3 Refiro-me tanto à pouca visibilidade conferida ao programa para professores apresentado a seguir (talvez a condição de existência de ações que se propõem a vergar algumas das rígidas estruturas da instituição), mas também, de modo mais amplo, à pouca presença de discussões inventadas por acontecimentos como este nos meios críticos da arte.

4 CUY, Sofia Hernández Chong. “Se o clima for favorável”. Porto Alegre: Fundação Bienal de Artes Visuais do Mercosul, 2013, (Catálogo), p.32.

5 HOFF, Mônica. “De uma chuva de ideias às Redes de Formação”. A nuvem. In: CUY, Sofía Hernández Chong & HOFF, Mônica. A Nuvem: Uma antologia para professores, mediadores e aficionados da 9ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul | Porto Alegre. Porto Alegre: Fundação de Artes Visuais do Mercosul, 2013, p. 20.

6 O Programa Rede de Formações reuniu os programas Conversas de Campo, Laboratórios de Mediação, Invenções Caseiras, Marés, Escola de Invenções, Momento Pólen, Publicações e, finalmente, as Visitas Educativas. É importante lembrar que além destes programas, houve diversas atividades criadas e realizadas pelos mediadores, tais como as charlas, saraus, cortejos e visitas educativas experimentais.

7 HARVEY, David, et al.Cidades rebeldes: Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013.

8 RANCIÈRE, Jacques. “O Dissenso”. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise de razão. São Paulo: Cia das Letras e Funarte, 1996, p. 373.

9 A saber: Butiá, Campo Bom, Rio Grande, Pelotas, Novo Hamburgo, Guaíba, Osório, Caxias do Sul, Porto Alegre, Viamão, Tramandaí, Triunfo, Lajeado, Sapiranga e Santa Maria. O itinerário do Marés coincidia com o trajeto traçado pelo Programa Conversas de Campo, o qual elegeu suas cidades a partir de suas singularidades na relação entre seus contextos climáticos e sociopolíticos, assim como suas vocações para certos modos de produção de energia.

10 “A problemática da micropolítica não se situa no nível da representação, mas no nível da produção de subjetividade. Ela se refere aos modos de expressão que passam não só pela linguagem, mas também por níveis semióticos heterogêneos.” GUATTARI, Félix & ROLNIK, Suely. “Micropolítica: Cartografias do desejo”. Petrópolis: Editora Vozes, 1986, p. 28.

11 PELBART, Peter Pál. “Vertigem por um fio: Políticas da subjetividade contemporânea”. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2000, p.45.

12 Utilizadas como em um jogo, trabalhávamos com cartas como forma de lançar situações de escuta, de ação e de pensamento. Adotamos essa estratégia em todos os encontros. Nos intervalos entre as viagens, eu, Letícia e Montanha nos encontrávamos para avaliar os encontros, analisar possíveis mudanças metodológicas e realizar a pesquisa sobre os próximos destinos gerando material para as cartas. A partir do encontro realizado em Novo Hamburgo passamos a dispor estas cartas em varais montados, na maior parte das vezes, a céu aberto.

13 Conforme o relato de uma professora, o sindicato dos mineiros fazia soar um apito fora de horário quando houvesse algum acidente fatal no trabalho, na maioria das vezes por “caimento”, ou seja, desabamento das galerias subterrâneas.

14 Em função do mau tempo, ao invés de sairmos às ruas, realizamos com os grupos projetos de ações poéticas a serem desenvolvidas na cidade. Nesses projetos estavam expressos os desejos de ocupação de praças e locais públicos da cidade com atividades que instituíam núcleos artísticos e culturais.

15 PIRES, Ericson. “Cidade Ocupada”. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007, p.11. (Col. Tramas Urbanas)

16 Bugre era um termo utilizado frequentemente para caracterizar grupos indígenas. De carga pejorativa no pensamento escravista, o termo liga o indígena à ideia de selvagem, pagão, inculto ou arredio (virtudes do ponto de vista daqueles que resistem à subjugação da vida por poderes escrotos).

17 Relato enviado por Patricia Parenza através de um questionário que coletou múltiplas perspectivas dos educadores participantes dos encontros do Marés.

18 Relato oriundo do minidocumentário Marés, produzido na cidade de Santa Maria, nosso último destino no âmbito do Programa Marés.

19 RANCIÈRE, Jacques. “A partilha do sensível: Estética e política”. São Paulo: Editora 34, 2005, p.17.

20 Relato oriundo do vídeo “Os sentidos do sentido do público na arte”, integrante desta edição da Revista Mesa.

21 Relato publicado em Cartas Náuticas, espaço virtual de construção coletiva para partilha de experiências no Programa Marés.

22 BASBAUM, Ricardo. “Quem é que vê nossos trabalhos?” Seminários Internacionais Museu Vale 2009 – Criação e Crítica (2009), p.202.

23 Relato enviado por Helenize Ortnau Cirio através de questionário. Helenize leciona e mora na cidade de Rolante e foi a Novo Hamburgo participar do encontro do Marés.

24 Op. cit., PIRES p. 197.