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Le Serret, 1973-1974 © Thierry Boccon-Gibod. In Fernand Deligny, Œuvres, Paris, L’Arachnéen, 2007, p. 1234-1235

Think Piece: Notas sobre o contemporâneo

Peter Pál Pelbart

Criação

Conta a tradição talmúdica que 26 tentativas malogradas precederam a criação deste mundo. O Gênesis não teria sido aquele milagroso instante inaugural tão celebrado, nem a eclosão repentina de uma totalidade redonda saída de um Nada através do Verbo. Mas tentativa e erro, experimentação, fracassos, remontagens, recolagens a partir de destroços anteriores. Portanto, este mundo guarda dessa sua origem uma fragilidade constitutiva. Ele está constantemente e sempre exposto ao risco do fracasso e do retorno ao Nada. A qualquer momento o sucesso da empreitada pode desfazer-se, e tudo pode vir abaixo. É sempre por um triz que tudo existe. É sempre graças a um misto de engenhosidade e de acaso que as coisas se sustentam. E elas levam a marca inapagável daquela incerteza originária, de um início que poderia não ter vingado. E que, segundo esta interpretação, acabou vingando porque havia ali um Deus que torcia, que dizia Halevai sheyaamod: “Oxalá fique de pé”. Quando pela primeira vez li essa interpretação ela me seduziu muito. Pois desafiava a ideia de criação como um ato único, simplório, redondo, inteiriço, enfiando na criação o tempo e o desejo, a ruína e o fracasso, o inacabamento e a precariedade. Ainda mais que na época eu estava às voltas com a questão da loucura e do tratamento da psicose. E na psicose, quando se fala em tempo, é disso que se trata: uma criação. Mas não da criação de objetos, e sim de uma criação de si mesmo, de uma re-criação de si a partir dos destroços das tentativas anteriores, de uma trans-criação. De montar-se com os destroços de que se dispõe, com aquilo que sobrou de uma vida arruinada.

Intolerável

Gilles Deleuze nota que no neorrealismo italiano as personagens passam o tempo se espantando, com o que é demasiado ignóbil, ou terrível demais, ou excessivamente belo. Elas já não interagem com as situações num encadeamento sensório-motor, no sentido em que uma percepção se prolongaria em ação. As personagens são condenadas a presenciar o intolerável numa espécie de paralisia motora, de vidência, com imagens vindas do tempo ou do pensamento. É uma nova subjetividade que se anuncia nesse cinema do pós-guerra, menos motora e material, mais temporal ou espiritual. É todo o contraste com o cinema americano. O cinema europeu tentando, nessas imagens, atingir o mistério do pensamento e do tempo: à impotência motora da personagem corresponde agora uma mobilização total do pensamento, do tempo, da memória, do passado. Se isso anunciava um novo regime de imagem, também era sintoma de uma ruptura. Como diz Deleuze no Imagem-tempo: “O fato moderno é que já não acreditamos neste mundo. Nem mesmo nos acontecimentos que nos acontecem, o amor, a morte, como se nos dissessem respeito apenas pela metade (…) É o vínculo do homem com o mundo que se rompeu.”1 De fato, quando a totalidade orgânica do mundo se desfaz, o vínculo entre o homem e o mundo torna-se impensável. É o que Artaud teria visto com justeza, ao dizer que o cinema privilegia não a força do pensamento, mas seu impoder, o seu desmoronamento central. O pensamento só pode pensar uma coisa, o fato de que ainda não pensamos, a impotência de pensar o Todo e a si mesmo. Ora, qual é a saída sutil que Deleuze evoca e que caberia ao cinema realizar? Justamente, filmar a crença, mas não num outro mundo, e sim na vinculação com esse mundo, “no amor ou na vida”, diz Deleuze, “acreditar nisso como no impossível, no impensável, que, no entanto, só pode ser pensado”.2

Paradoxalmente, assim o pensamento é o ato que está sempre nascendo, sempre por vir, tempo puro, do qual cabe ao cinema extrair uma potência superior. Apesar de que o fascismo e Hollywood se apoderaram da arte das massas e o próprio mundo passou a fazer cinema, e a virar cinema ruim, nada impede que a sétima arte continue a exercer-se como onda nervosa, como choque ou vibração, como aquilo que faz nascer o pensamento, e até mesmo o corpo. Como mostrou Schefer, o cinema estende sobre nós uma noite experimental, e nela lança-se como grãos dançantes, poeira luminosa.3 Assim, faz nascer como que por trás de nós um outro corpo, desconhecido, virtual, nervoso. Deleuze reitera: “O certo é que crer não significa mais crer em outro mundo, nem num mundo transformado. É apenas, e simplesmente, crer no corpo. Restituir o discurso ao corpo e, para tanto, atingir o corpo antes dos discursos, antes das palavras, antes de serem nomeadas as coisas”.4 Mas é um corpo de afecção, de afectibilidade pura, particular conjunção entre passividade e atividade, para aquém da linguagem, até mesmo do sentido.

Deligny

Num contexto inteiramente outro, o poeta e pedagogo Fernand Deligny levou ao extremo uma meditação muito própria sobre o que é um mundo anterior à linguagem ou ao sujeito, regido por outra coisa que não a vontade e o objetivo, o rendimento e o sentido, mas sim o gesto e o corpo, seu poder de afetar e ser afetado. A partir de sua experiência de anos na convivência com autistas, Deligny contrapõe fazer e agir… fazer é fruto da vontade dirigida a uma finalidade, por exemplo fazer obra, ao passo que agir, no sentido muito particular que ele lhe atribui, é o gesto sem intencionalidade, desinteressado, não representacional. Não descendemos do macaco, mas da aranha; como a ela, interessa não um projeto, mas tecer incessante, sem finalidade, e a teia aracnídea, a rede.5 Não é o ser-para-a-morte, mas o ser-para-a-rede. “Respeitar o ser autista não é respeitar o ser que ele seria enquanto outro; é fazer o que é preciso para que a rede se trame.”6 A rede humana como necessidade vital, como escapatória, como intervalo, deserção, dissidência, guerrilha, comum. Como diz Deligny: todo homem é ser de rede. O próprio território que Deligny criou com os autistas, eis uma rede, uma dissidência, um abrigo, sem finalidade nem rendimento. Nem socialização, nem inclusão, nem cura, mas distância daquilo que sufoca, lugar e evasão. Sempre “que o espaço se torna concentracionário, a formação de uma rede cria uma espécie de exterior que permite ao humano sobreviver”7. Mas, justamente, esse humano deve poder desprender-se da unitária imagem do homem que nos impregna, o sujeito… essa antiantropologia, ou antropologia reversa, aquela que seria talvez capaz de ler nossa saturação de sentido e de intenções, de subjetividade e de palavras, de arrogância humanista que nos separa daquela dimensão que Deligny chamaria de inata ou humana, Guattari de inumana, Benjamin de mera vida, Agamben de vida nua, Deleuze de uma vida.

A vida

Não cessamos de estar expostos a essas variações – que não só são terminológicas. Remetem ao que hoje está de fato em jogo, no contexto biopolítico, a vida. Tomada de assalto, por fora e por dentro, todos falam em seu nome e pretendem representá-la, ora defendê-la, ora manipulá-la, em todo caso intensificá-la, otimizá-la, capitalizá-la e fazê-la render. Diante desse assalto ou contra-assalto, talvez seja preciso outra coisa, mais sóbria, tênue e obstinada. Não render-se aos discursos paranóicos, que fizeram do campo de concentração o paradigma biopolítico do ocidente, e que no suposto estado de exceção planetário enxergam por toda parte a vida nua, vida reduzida a seu estado de atualidade biológica, disformidade, impotência, banalidade, mera matéria para manipulações de toda ordem, seja em Guantánamo, nas vielas palestinas, nas favelas brasileiras, nos loucos ou autistas. É outra, sem dúvida, a perspectiva de Deligny, que vê entre suas crianças, ao contrário, algo que resiste, que persiste, que na sua mudez reitera uma humanidade comum, para aquém da justiça ou da injustiça, do bem e do mal, da glória ou do sofrimento. Um pouco como Deleuze, quando se refere a uma vida, é a vida concebida como virtualidade comum, como potência impessoal. Ou Muriel Combes, para quem a vida não é objeto nem sujeito, mas aquilo que é capaz de condutas, ela é maneiras de ser, “allures”, modo de ser. Ou Foucault, que ao final de sua obra já não pode pensar a relação entre o poder e a vida sem um interstício, uma mediação, uma dobra, a saber, as técnicas de si e suas variações. Talvez seja preciso desfazer-se de uma diabolização claustrofóbica, assim como de seu oposto, um vitalismo não menos eufórico do que ansiolítico, a fim de atingir um plano outro, onde se pudesse relançar uma experimentação tateante, hesitante, rente à matéria vital, numa suspensão de errância e indeterminação, onde se detectam modos de existência os mais diversos, mínimos ou improváveis, inomeados ou inexplorados. Como diz Étienne Souriau, a própria existência como esboço, inacabamento, trajeto, e sobretudo instauração: os seres devem ser instaurados, mesmo o corpo, a alma, a obra de arte.8 Também uma vida deve ser instaurada, há uma “arte de existir” que sofre modalizações, e nos seus modos intensivos, na sua força e fraqueza, atravessa hesitações, corre o risco de sucumbir antes de vingar, mas em seu trajeto afirma modos de existência que lhe cabe talhar, por assim dizer, na própria matéria da existência. Nada está dado, tudo está por vir, por fazer, na esteira eventual de uma virtualidade em processo de instauração.

Algo aconteceu

Sabe-se o que diferencia a novela do conto. Num conto, pergunta-se: o que vai acontecer?9 Numa novela, a pergunta é: o que aconteceu? O que será que aconteceu? O que terá acontecido para que tudo tenha mudado, como em Henry James ou Fitzgerald? Não há um fato, um episódio localizável, circunstâncias que explicariam a ruptura ou mudança, e no entanto já nada é como antes, ninguém mais se reconhece naquilo que antes era a mais trivial cotidianidade. Os personagens giram em torno desse acontecimento, sondando o ponto em que tudo teria mudado, mas justamente não é um ponto assinalável, nem mesmo um conjunto de fatores nomeáveis, mas microfissuras, micromovimentos, contrafluxos moleculares que não atingem o limiar ordinário da percepção, vibrações que redesenham nossas linhas – em todo caso, nada mais será como antes. Se um tal Acontecimento é da ordem do devir, não da História, é porque é muito difícil inscrevê-lo na ordem do tempo: o que o caracteriza é justamente o fato de escapar à linha do tempo, desviar do encadeamento das causas e efeitos, influências e consequências, fatos e circunstâncias. O acontecimento se dá no entretempo, no tempo morto, na “espera e na reserva”.10

Os gregos já entendiam que ao lado de Chronos — tempo da medida, que fixa coisas e pessoas, que desenvolve uma forma e uma direção — há um outro tempo, Aion, tempo sem medida, indefinido, que não cessa de dividir-se quando chega, sempre já ali (o imemorial) e ainda não ali (o inédito), sempre cedo demais e tarde demais, o tempo do “algo vai suceder” e simultaneamente o “algo acabou de acontecer”, esse jorrar do tempo, tempo bifurcado, não métrico, não pulsado, tempo flutuante que vemos por vezes na psicose, no sonho, nas catástrofes, nas grandes e microrrupturas, coletivas ou individuais, no cinema etc.

Crise

Há um ponto na vida individual ou coletiva onde nada mais parece possível. É a crise. A crise revela as forças que estavam em jogo, ou melhor, ela as redistribui, respondendo à questão: será que as coisas irão no sentido da vida ou da morte? A crise é uma espécie de decisão, não o resultado de uma série, mas antes o começo, que cria um espaço e um tempo próprios, sem obedecer às coordenadas de um mundo dito objetivo ou ôntico. François Tosquelles, psiquiatra catalão que percebeu similaridades entre os campos de concentração e os hospitais psiquiátricos onde trabalhou durante a guerra, e que foi um dos inovadores e pioneiros da abordagem institucional em meio psiquiátrico, escreveu um livro sugestivo a propósito, que se poderia traduzir como O vivido do fim do mundo na loucura.11 Agida e sofrida, essa experiência da catástrofe nos doentes é vivida como abalo existencial, com seu cortejo de imagens perturbadoras: terremoto, fim do mundo, morte, ressurreição em uma vida espiritual. Mas há uma tarefa que se impõe sempre, apesar da destruição em curso: a da criação. Pois em cada doente, para além dos processos de dissolução da personalidade, há um esforço, uma “necessidade vital”, um impulso para chegar a uma “nova forma de vida unitária”12. A experiência vivida do fim do mundo não é considerada exclusiva do esquizofrênico, pois para Tosquelles essa matriz catástrofe/criação responde a uma função mais ampla. Donde sua conclusão, nada habitual em se tratando de um psiquiatra: “A loucura é uma criação, não uma passividade”. Da sensação de Nada é possível oscilar-se para aquela outra, em que Tudo é possível. Nada é possível, tudo é possível, nada é possível, tudo é possível. Não é estranho que compartilhamos com os loucos de Tosquelles essa oscilação, tão contemporânea, que se inscreve em nós como um ar do tempo? Estrangulamento, bloqueio, impossibilidade, esgotamento… e depois, algo salta, se destrava, e tudo se abre, como nas manifestações de junho de 2013.

Salvação

Num ensaio recente, Giorgio Agamben chama a atenção para a dupla dimensão presente em Deus, conforme certa tradição.13 Por um lado, Deus é o criador, por outro, é o salvador. Cria o que ainda não existia, salva aquilo que ele mesmo criou e que tende a degenerar, ou perder-se. A criação todos conhecemos e prezamos. Mas como salvar aquilo que foi criado e que se perde, seja porque foi destruído, ou porque foi esquecido, ou porque se corrompeu, ou porque se perdeu, moralmente ou espiritualmente ou historicamente ou ontologicamente? Não é menos importante salvar do que criar, talvez faça parte do ato de criação a preocupação em salvar aquilo que dessa criação se perdeu. Removida a camada teológica, podemos nos perguntar se essa dimensão não está posta como um desafio contemporâneo, a prova é que tantos trabalhos artísticos de hoje giram em torno dessa tarefa.

Espaço-tempo

Já podemos voltar à crise de que falava Deleuze, ao seu diagnóstico sobre a ruptura entre o homem e o mundo. O que foi abalado, segundo ele, é a crença de que o mundo ainda pode afetar-nos, suscitar em nós efeitos, despertar nossas forças, engendrar possibilidades. Como diz Lapoujade, numa perspectiva próxima: “O diagnóstico de James é vizinho daquele de Nietzsche: não acreditamos mais em nada. Aquele que não acredita mais, aquele que não tem mais confiança permanece imóvel e sem reação, desfeito. Ele está atingido por uma morte da sensibilidade”.14 Mas não se trata de voltar a acreditar em coisas que justamente caíram em descrédito, Deus, o Eu, a Revolução, o Progresso, cuja pregnância esfarelou-se justamente porque se ofereceram ou foram impostos como universais ou absolutos. De diferentes maneiras, Nietzsche, James, Bergson, Deleuze fustigaram essas crenças, em nome de uma relação outra com o tempo, com a terra, com o corpo, com a vida. Como não há ponto de apoio seguro, dependemos ainda mais de uma confiança, de uma crença, de uma força em esposar o movimento do mundo, em simpatizar com seu devir e o nosso, em mergulhar na áspera colisão entre seus elementos e no choque entre os pontos de vista, e assim, quem sabe, desentocar novos acontecimentos.

Numa entrevista memorável, Negri perguntava a Deleuze nos anos 90: qual política pode prolongar na história o esplendor do acontecimento?15 Para responder, Deleuze retomou a frase escrita no seu livro sobre cinema anos antes, e que citávamos no início de nossa fala: “Acreditar no mundo é o que mais nos falta, nós perdemos completamente o mundo, nos desapossaram dele”. Mas desta vez ele a desdobra numa direção mais ampla, política, cuja urgência ressoa em nós cada dia mais vivamente: “Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, mesmo que pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos. É ao nível de cada tentativa que se avaliam a capacidade de resistência ou, ao contrário, a submissão a um controle”.16

[Uma versão deste texto foi originalmente publicada em inglês na revista: OEI # 60–61: “Extra-disciplinary spaces and de-disciplinizing moments (in and out of the 30th Bienal de São Paulo)”, Stockholm, 2013]

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1 Gilles Deleuze, L’image-temps, Paris, Minuit, 1985, p. 222.

2 Idem, p. 220.

3 Jean-Louis Schefer, L’homme ordinaire au cinéma, Cahiers du cinéma/Gallimard, p. 113 – 123, 1980. Veja também, Kuniichi Uno, The genesis of an unknown body, Helsinki/São Paulo, n-1 publications, 2012.

4 Op. cit., Deleuze, p. 225

5 Fernand Deligny, L’Arachnéen et autres textes, Paris, L´Arachnéen, 2008

6 Idem, p. 95

7 Idem, p. 14

8 Étienne Souriau, Les différents modes d’existence, Paris, PUF, 2009

9 Gilles Deleuze and Félix Guattari, Mille Plateaux, Paris, Minuit, 1980, chap. 8.

10 Gilles Deleuze et Félix Guattari, Qu’est-ce que la philosophie? Paris, Minuit, 1991

11 François Tosquelles. Le vécu de la fin du monde dans la folie, Toulouse, Ed. De l´Arefppi, 1986

12 Idem.

13 Giorgio Agamben, Nudités, Paris, Rivages, 2012

14 David Lapoujade, William James, Emprisme et Pragmatisme, Paris, Les empêcheurs de penser en rond, 2007, p. 19

15 Gilles Deleuze, Pourparlers, Paris, Minuit, 1990, p. 239

16 Idem.