Bloco Carnavalesco Loucura Suburbana, Desfile 2015. Foto: Fernando Maia

Loucura Suburbana: “vamo que vamo!”1

Ariadne de Moura Mendes

Aos 16 anos, conheci um dos maiores hospícios brasileiros, um grande depósito de pessoas, cujo cheiro, a miséria e a situação de abandono me impressionaram – foi a partir desse momento que cresceu em mim a ideia de ser psicóloga, de lutar por essa população.2 Um pouco antes de me formar em psicologia, li nos jornais sobre um movimento de contestação num famoso hospício do Rio, iniciado por um médico jovem que denunciava maus tratos e péssimas condições de trabalho – e tive uma imensa curiosidade de conhecer este hospital. Soube que ali também se desenvolvia uma experiência de comunidade terapêutica, uma gestão democrática de funcionamento de uma enfermaria, e fui conhecer. Ao sair daquele lugar, desejei um dia trabalhar ali. Era a década de 70 e o local era o Centro Psiquiátrico Pedro II (CPPII), no Engenho do Dentro, bairro do subúrbio do Rio de Janeiro, atual Instituto Municipal Nise da Silveira.

Décadas depois, no início dos anos 2000, após trabalhar no processo de reconstrução da instituição desde a década de 80, passo a dirigir o Ambulatório Central 3 no qual é criada a Oficina de Artes. E foi aí, revertendo a proposta dos pacientes de uma festa de carnaval dentro da instituição, que surgiu a ideia de “romper” os muros e criar um bloco de carnaval que ganhasse as ruas, uma importante iniciativa de promoção da integração social e de luta contra o estigma da loucura. Assim nasceu o trabalho de arte e cultura do Bloco Carnavalesco Loucura Suburbana e, mais tarde, do Ponto de Cultura Loucura Suburbana: Engenho, Arte e Folia.

Loucura Suburbana se insere no contexto histórico-político da Reforma Psiquiátrica brasileira, marcado por dois pontos principais. O primeiro é a herança do trabalho pioneiro na área de arte e cultura em saúde mental desenvolvido pela Dra. Nise da Silveira, verdadeiro marco, que começou no final da década de 1940, criando o Museu de Imagens do Inconsciente em 1952 (no próprio hospício) e demonstrando para a sociedade que era possível ter uma abordagem de arte extremamente benéfica para o estado mental dos pacientes. Existindo como um espaço de liberdade e de nova compreensão e abordagem da questão da loucura, o museu era, no entanto, como um oásis no deserto. A estrutura hospitalar até a década de 80 era ainda de uma instituição total, em que a internação era o método de tratamento por excelência. Portanto, os pacientes que frequentavam o Museu estavam internados e voltavam para seus pavilhões “prisionais” após suas sessões naquele setor de vanguarda do então CPPII.

Assim, o segundo ponto fundamental facilitando este salto de arte e cultura foi o movimento dos trabalhadores de saúde mental dessa instituição, iniciado na década de 80 e continuado principalmente na década de 90, trabalho no qual me incluo, que permitiu toda uma reestruturação, uma verdadeira revolução na instituição para que ela fosse perdendo seus contornos manicomiais em direção à abertura que seria de fato o fim do hospício.

Outra forma de cuidado: o cuidado institucional


Fig.1. Desfile Bloco Carnavalesco Loucura Suburbana, 2018. Foto: Marcelo Valle

Se a cultura e a arte têm hoje espaços em dispositivos próprios ou ainda em serviços assistenciais, foi porque houve um cuidar da instituição. Os trabalhadores de saúde mental não fizeram um trabalho específico de arte, mas cuidaram da instituição – outra espécie de cuidado, em que se foi promovendo grandes transformações na assistência para que hoje, algumas décadas depois, a arte pudesse se expandir, para que o trabalho cultura e arte em saúde mental pudesse ter espaços cada vez mais amplos.

O trabalho de reestruturação dos serviços e de mudança da lógica manicomial aconteceu de forma lenta, estabelecendo uma nova ordem na conquista da liberdade, pela busca de novos espaços de trabalho, de novas práticas institucionais. Um dos fatores fundamentais dessas mudanças foi a constituição de equipes multidisciplinares, em que categorias profissionais, antes subalternas e secundárias, se tornaram protagonistas, constituindo um saber coletivo no lugar do discurso médico hegemônico de tantos séculos. Assim, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, além de outras categorias, conquistaram igualdade na própria equipe, também composta por médicos, e puderam promover a reestruturação dos serviços com mais humanidade, numa luta diária contra a violência e o desrespeito, característicos da vida manicomial.

Esse movimento que toma corpo nessa década e que é possível graças à constituição das equipes multidisciplinares, vai quebrar o ciclo dominante até então – internação/reinternação/cronificação –, com a construção gradual e coletiva de um trabalho que aposta no modelo extra-hospitalar e territorial de atendimento, com a criação do Ambulatório Central e a concomitante redução gradativa dos leitos, a criação das moradias internas, a criação dos Centros de Atenção Psicossociais (CAPS), etc. Foram-se criando oficinas, serviços foram introduzindo arte e cultura em seus dispositivos.

Nossa história: O Bloco e sua importância histórica


Fig 2. Desfile Bloco Carnavalesco Loucura Suburbana, 2018. Foto: Arquivo Loucura Suburbana

Foi exatamente assim, nesse contexto, que no início dos anos 2000, por um processo de transformação institucional que já vinha acontecendo, foi possível ter-se a ideia de um bloco de carnaval que, ao invés de reproduzir festas manicomiais intra-muros, como era a prática quase secular, fosse para as ruas para se integrar na maior festa popular brasileira que é o Carnaval, e que envolve música, dança, fantasias, criação e muito vinculada às raízes brasileiras, portanto encontrando uma identidade fundamental com a população.

Criado em 2001, e não é demais reafirmar – como parte do processo de desconstrução do modelo asilar do Instituto Municipal Nise da Silveira – o Bloco Carnavalesco Loucura Suburbana rompeu os muros do hospício e teve importância histórica em três aspectos: revitalizou o carnaval de rua do bairro do Engenho de Dentro, representou uma alternativa de ocupação cultural de uma área carente em equipamentos culturais e com altos índices de violência e colocou a saúde mental como protagonista dessas ações, criando ainda o primeiro bloco de carnaval na área de saúde mental da cidade. Reunindo usuários, familiares e funcionários da rede pública de saúde mental, além de moradores do bairro e adjacências, criou um movimento de integração com a comunidade tendo como motivação a maior festa popular brasileira. Desde então, abre o carnaval do bairro, arrastando foliões e o que temos visto é a transformação do preconceito contra a loucura em admiração, respeito e desejo de integrar-se. O grande desfile anual pelas ruas do Engenho de Dentro acontece toda quinta-feira antes do carnaval, acompanhado da bateria A Insandecida e Amigos e têm contado com cerca de 1000 foliões de toda a cidade. Para ele, há uma grande mobilização, que acontece meses antes, das oficinas musicais e de confecção e reciclagem de fantasias – ensaios gerais, composições de sambas e Escolha do Samba Enredo, preparação das fantasias das porta-bandeiras e mestres-salas (casal adulto e mirim), confecção das camisetas do ano, de estandartes, reservas e empréstimos de fantasias no Barracão. Uma característica bastante peculiar do Loucura Suburbana é o empréstimo de fantasias e a oferta de maquiagem horas antes do desfile.

Por seus desfiles e seu trabalho engajado de integração, o Bloco recebeu algumas premiações durante sua trajetória: duas vezes o Prêmio Cultura e Saúde, concedidos pelos Ministérios da Cultura e da Saúde (edições 2008 e 2010); duas vezes o Prêmio Serpentina de Ouro, concedido pelo jornal O Globo – na categoria Destaque, em 2013, e Organização, em 2016, o Prêmio Ações Locais, conferido pela Secretaria Municipal de Cultura, em 2015, e, no mesmo ano, o Prêmio Cultura de Redes, concedido pelo MINC – avalizando nossa forma de atuação através de parcerias e redes com dispositivos de arte e cultura e de saúde mental – e, em 2017, a Moção de Reconhecimento da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro pela contribuição na Luta Antimanicomial.

 

O Ponto de Cultura Loucura Suburbana e as Oficinas

Em 2009, constituiu-se o Ponto de Cultura Loucura Suburbana: Engenho, Arte e Folia como primeiro Ponto de Cultura em saúde mental da cidade do Rio de Janeiro, com apoio da Secretaria Estadual de Cultura /RJ, e foi a partir daí que o Loucura Suburbana se estrutura com as oficinas, passando a oferecer atividades permanentes abertas à população, gratuitas, que resgatam a memória do samba e do carnaval, além de outras iniciativas de ensino, cultura e geração de renda antes isoladas. Ao lado de outros apoios, foi possível a contratação de profissionais na área de música, de produção cultural e de design de moda. Essas oficinas permitiram o crescimento e a melhoria indiscutível da qualidade dos desfiles, representando também e, principalmente, espaço cultural tanto para a rede de saúde mental quanto para os bairros do entorno do hospital.

A Oficina Livre de Música acontecia há algum tempo no CAPS Clarice Lispector – serviço que foi parceiro na elaboração do projeto do Ponto de Cultura – coordenada pelo músico Abel Luiz, cuja história de vida se misturava com o bairro e com a instituição.4 Nascido e criado no Engenho de Dentro, Abel frequentou os espaços esportivos do Instituto Nise da Silveira desde criança e desenvolvia uma oficina voluntária de ensino de cavaco naquele CAPS, que foi incorporada ao Ponto de Cultura no início do desenvolvimento do projeto, agregando a composição musical ao ensino do cavaco e do violão. Acontecendo semanalmente, é espaço permanente para dar apoio aos compositores durante todo o ano e, principalmente, durante os meses que antecedem o carnaval. Suas aulas acabam se transformando em encontros musicais com formato de saraus, abrindo espaços para aprendizes de músicos, compositores e cantores.

Essa atividade musical foi uma das que mais revelou talentos ao longo dos anos – muitos compositores surgiram com o estímulo de participar do concurso do samba enredo que acompanha o Bloco durante o desfile a cada ano. Realizamos uma escola do samba, evento anual que escolhe o samba vencedor, tem recebido uma média de 20 sambas concorrentes – a maioria de usuários de saúde mental – e, indiscutivelmente, a qualidade das composições cresceu muito. O acervo do Loucura conta com alguns sambas que marcaram história, que são cantados em todos os desfiles e que já constam em um CD, Sambas Campeões, gravado em 2012.


Gravações de Sambas Campeões.

Se hoje o Bloco conta com sua bateria própria, a Insandecida, foi também somente após a contratação de mestres de bateria e de um trabalho persistente através das aulas da Oficina de Percussão, que acontecem o ano todo duas vezes por semana. Anteriormente a 2011, ano de sua estreia, o Bloco desfilava com a parceria de baterias de diversas escolas de samba do Rio de Janeiro. O atual mestre, Fernando Mesquyta, começou suas atividades como aluno da oficina musical.

 

Desse Núcleo Musical derivaram outras atividades como as Rodas de Samba, as Oficinas de Música Itinerantes e os Encontros de Oficinas. As Rodas se constituíram em importante ocupação cultural de uma praça pública da região – a Praça Rio Grande do Norte – contribuindo para a revitalização desse espaço público e integração com a comunidade local. A maior parte delas, com convidados especiais, personagens emblemáticos da história do samba carioca, teve frequência bimensal em alguns períodos. Foram realizadas 25 rodas, algumas também dentro do Instituto e em bares do bairro. Infelizmente, há algum tempo não acontecem devido à falta de recursos do Ponto de Cultura. As oficinas itinerantes reúnem integrantes das duas oficinas musicais e são realizadas em CAPS da cidade, enquanto que os Encontros de Oficinas, mensais, propõem manifestações artísticas musicais, projeção de filmes e expressões literárias, agregando outras oficinas de demais serviços da rede.

Outro importante núcleo de atividades é o formado pelo Ateliê de Fantasias, Adereços e Moda, que é um espaço de criação e reciclagem das fantasias e de confecção de adereços do Bloco e de artigos para geração de renda e o Barracão, onde estão guardadas mais de 1000 peças de carnaval, fantasias e adereços doados por foliões de escolas de samba que são emprestados durante o desfile anual e outros desfiles ao longo do ano.

 

Cuidando do trabalho e da cidadania

Além destas oficinas, o Loucura Suburbana criou vários outros equipamentos, não só de arte, mas também de educação, inclusão digital e de expressão literária, com a compreensão da importância do cuidado mais amplo que inclui a geração de trabalho e renda e a cidadania. Com esses objetivos, e respondendo a uma demanda social, foram criadas a Escola de Informática e Cidadania Nise da Silveira e a Encantarte Editora.

A cidadania e o trabalho são outra vertente importantíssima da nossa atuação, pois vivemos num país de desigualdades, com domínio de uma elite que não dá acesso à cultura e arte, e a população que frequenta os serviços públicos de saúde mental é uma população pobre, desfavorecida, sem acesso à cultura, trabalho, educação e saúde. Nosso trabalho é um complexo de composição, não só de cultura e arte, mas que ao se estruturar com o objetivo de promover a experiência do trabalho e da cidadania, a inclusão social, contribui grandemente para que os pacientes se sintam aceitos em suas famílias e na sociedade. Isto pôde ser demonstrado pelo sucesso da Escola de Informática e Cidadania (EIC), que oferecia acesso à informática e trabalho e que formou mais de 600 pessoas entre usuários, familiares, funcionários e moradores dos bairros próximos ao hospital. Integrando a sociedade e invertendo a hierarquia, pois os professores eram pacientes psiquiátricos, foi um projeto que durou até 2013 quando, infelizmente, foi encerrado o convênio que o sustentava, por parte da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro.

Foi com os usuários formados pela EIC que foi criada a Encantarte Editora – outro projeto pioneiro que abriu a possibilidade para os usuários de se expressarem através da literatura – mais um espaço para dar significado às suas histórias de vida e ao seu talento poético-literário, além de habilitá-los profissionalmente para o campo editorial, já que são os próprios usuários os responsáveis por todo o processo editorial até a publicação dos livros, que já somam 40 publicações, a maior parte de usuários da rede de saúde mental. Foi essa editora que se transformou em laboratório de elaboração de projetos com a aprovação dos quais foi possível a maior parte da manutenção das atividades até os dias de hoje. Vale esclarecer aqui que, embora com importância reconhecida no processo de transformação da saúde mental brasileira que tem como objetivo principal a extinção dos hospícios, as ações culturais desenvolvidas nessa área ainda não foram incorporadas aos orçamentos públicos da área da saúde. Com atividades desde 2003 e inaugurada oficialmente 2005, a Encantarte executa, além da publicação de livros, projetos e peças gráficas para divulgação do Bloco, das atividades do Ponto de Cultura e de eventos realizados em parcerias.



Oficina papelaria. Foto: Arquivo Loucura Suburbana

Reafirmando a experiência do Loucura de experimentação e construção coletiva, que acaba se caracterizando como metodologia, surgiu a Oficina do Papel que, assim como a Encantarte Editora, é um projeto de geração de renda e trabalho e que trabalha com a criação e confecção de objetos de papelaria; estabeleceu-se, a partir de 2012, o Cyber Café, oferecendo acesso livre e gratuito à internet para o público em geral e, anexo ao Cyber, o Espaço de Leitura que funciona com uma biblioteca de cerca de 900 volumes, doados, higienizados e catalogados por usuários que fazem parte da equipe do Loucura.

Integração: “Quem é louco? Eu ou você?”5

Esse trabalho de combate ao estigma permite que as pessoas se sintam mais felizes, pois é um trabalho que envolve solidariedade e acolhimento, onde a patologia das pessoas não importa – não importa o diagnóstico. Ali as pessoas estão vivendo o dia a dia porque a equipe integra pacientes. A pessoa, com isso, vai se sentindo mais livre, vai se livrando desse peso do estigma, vai conseguindo ser mais criativa, desenvolver suas potencialidades tanto na área das artes como na área do trabalho, quando não, dos dois, que é o que acontece muitas vezes – há pessoas que trabalham conosco, que são poetas e que desenvolvem trabalhos em áreas do Ponto de Cultura.

Através da promoção de um trabalho de arte, cultura e geração de renda, promove-se a inclusão social e o exercício da cidadania e se está auxiliando as pessoas, através do desenvolvimento de suas potencialidades, a desenvolver outra potencialidade que é a potencialidade do trabalho, de ser útil à sociedade e a si mesmo, porque as pessoas têm dificuldade real de sobrevivência.

Nosso trabalho é aberto a toda a população e serve como coadjuvante dos tratamentos terapêuticos, com inovações que promovem inversões na hierarquia como a EIC, em que os usuários estão absolutamente inseridos na equipe e se sentem iguais. Há um convívio diário onde há uma naturalização, por isso, da loucura, que não é vista mais como uma questão patológica, mas um estado de ser e estamos ali para conviver com ela, para troca. E são oferecidas oportunidades para que suas potencialidades sejam desenvolvidas em vários terrenos: no terreno musical da percussão, da criação de músicas, do canto, no aprendizado de um instrumento como o cavaquinho, no terreno da literatura, quando se promovem oficinas para que textos surjam e uma possibilidade de transformar em livros esses textos, marcando assim uma coisa muito importante que é a história de cada um, a oportunidade de dizer à sociedade o que se sente e o que se passou.

De forma inovadora dentro de um ambiente que não é assistencial, mas sim aberto e cultural, essas práticas vão possibilitando que as pessoas naturalizem a sua loucura. Você não está aqui como um doente que precisa se tratar, você está aqui como uma pessoa que é igual, e que está aqui exatamente trocando com todo o mundo o que tem para dar. E isso serve para tirar o peso, para diminuir a carga do preconceito, a carga de carregar esse rótulo do louco como um ser perigoso, abominável, inútil, que é o que o imaginário popular tem na cabeça aqui no Brasil.

Então, através dessa convivência e dessa abertura para uma troca com a sociedade a gente vê surgir novas identidades. Porque as pessoas ficam mais leves desse peso do estigma da loucura, porque encontram solidariedade, alegria, receptividade, acolhimento enfim para sua pessoa e para seus potenciais – então a possibilidade de desenvolver potenciais acaba produzindo novas identidades, que no terreno da saúde mental é fundamental. Os loucos trocam de identidades de loucos para artistas (como na época de Nise da Silveira). Então, a pessoa já se sente outra coisa, tem o que dizer de si mesma: eu sou uma passista, uma escritora, uma pintora, uma porta-bandeira, não pelo título, mas pela riqueza que essas atividades trazem em si.


Vídeo Bloco Carnavalesco Loucura Suburbana, 2012. Dir: Júlio Stotz

Retrocesso e resistência

Para além do sofrimento mental, que já o coloca num lugar de diferença e incompreensão, há a exclusão social por diversos fatores que se somam e que fazem a vida de um paciente dos serviços públicos da cidade muito difícil: pelo preconceito à loucura, por pertencer a um extrato social carente, por morar mal, distante do centro da cidade. Assim, a exclusão não é só por causa da loucura – é exclusão social pela situação da inserção numa classe social com recursos limitados e uma má qualidade de vida.

Além de tudo isso, ainda assistimos a um Estado e um Município falidos, que retiram as possibilidades de ofertas do acesso diário, se necessário, aos serviços de saúde e à circulação pela cidade, promovendo quase um retorno à situação de “internação” dos usuários dos serviços de saúde mental, só que dessa vez internação doméstica, porque os pacientes, sem o passe público dos transportes, não têm dinheiro para custear seus deslocamentos pela cidade. Assiste-se assim a um retrocesso, a uma diminuição da frequência às atividades culturais e mesmo aos serviços assistenciais, tanto por restrição das passagens gratuitas, quanto porque, na crise da saúde mental, muitos serviços de atendimento diário e integral (os CAPS) tiveram diminuição da oferta de medicamentos e mesmo da alimentação. E ainda pairam as ameaças de retrocesso na política de saúde mental por parte do Ministério da Saúde, privilegiando o financiamento do setor privado, em detrimento da acertada política pública dos serviços territoriais que são os CAPS.

A sustentabilidade real e majoritária do Bloco e do Ponto de Cultura tem sido de recursos oriundos da contínua participação em editais de cultura nos âmbitos municipal, estadual e federal e, muito raramente através de patrocínios ou doações da iniciativa privada. O setor público da saúde sustenta a infraestrutura e apenas uma pequena parte da equipe.

Atualmente, e devido à pouca oferta de editais em cultura nos últimos dois anos, o Loucura Suburbana passa pela pior crise de sua existência, não só pela falta de recursos para sustentabilidade da equipe, mas também pelo sucateamento do setor saúde, com efeitos, como vimos acima, na vida das pessoas. Por tudo isso, e pela primeira vez, tivemos que recorrer ao financiamento coletivo para conseguir colocar o bloco na rua, no desfile de 2018.

Redes


Porta bandeira do Bloco Carnavalesco Loucura Suburbana Elisama Arnaud dando boas vindas ao Sarau poético-musical Hoje é o dia do sonho, 5 de outubro, 2017. Foto: Denise Adams

Nossa luta diária por recursos pela sobrevivência da própria organização nos identifica plenamente com a luta diária dos usuários pela sobrevivência e por uma vida digna e aponta o caminho que temos trilhado desde a criação do bloco e de todos os outros serviços do ponto de Cultura: a construção coletiva, o trabalho em rede. Só funcionamos porque integramos várias redes, seja a dos serviços de saúde, dos equipamentos culturais da cidade, do comércio local, dos vizinhos do território. São as tramas que nos sustentam. E foi esse trabalho de redes que possibilitou a troca com o projeto arte_cuidado e seus encontros Cuidado com Método # 1 e #2 que, por sua vez, nos inspirou e impulsionou a restabelecer e fortificar a rede interna de serviços culturais do Nise da Silveira, bem como nos aproximou do Museu Bispo do Rosário, do Instituto Juliano Moreira, na produção do bonito sarau poético-musical produzido conjuntamente.6

A resistência do Loucura Suburbana no enfrentamento dessas dificuldades que ameaçam sua sobrevivência e sua capacidade de se re-inventar trazem uma estabilidade reconhecida pela Secretaria de Saúde que nos traz esperanças de estabelecer negociações, através do Instituto Municipal Nise da Silveira, para que a cultura esteja ainda mais contemplada em sua política de saúde mental, de forma concreta, através do financiamento de parte ou de todo o projeto.

O Bloco, bem como o Ponto de Cultura Loucura Suburbana, vem se mantendo em atividade ao longo de todo o ano, sobretudo pela grande dedicação de seus participantes, tanto usuários do sistema público de saúde mental, como da comunidade, e mesmo do público em geral que, com colaboração voluntária, vem proporcionando não só manter a iniciativa viva, como incrementar seus trabalhos.

Essa luta diária pela sobrevivência é muito angustiante e muito cansativa também. Por vezes, não vemos possibilidades de recursos a curto prazo, mas a gente confia no trabalho e um no outro, e é isso que nos tem dado força, até hoje, para superar os diversos períodos muito difíceis pelos quais passamos, muitas vezes. E assim seguimos! E como diz nosso mestre de bateria, vamo que vamo!

 

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Ariadne Moura Mendes
Psicóloga, sanitarista e especialista em Educação em Saúde pela Fiocruz. Coordenadora do Bloco Carnavalesco e Ponto de Cultura Loucura Suburbana. Foi professora de Psicologia da Universidade Celso Lisboa (1977). Psicóloga do Ministério da Saúde com atuação nos seguintes setores: Divisão Nacional de Saúde Mental (1982), Colônia Juliano Moreira (1988), Chefe do Núcleo de Planejamento (1989) e Diretora do Ambulatório (1989) do Centro Psiquiátrico Pedro II, Assessora da Direção do Instituto Municipal Nise da Silveira (2002/2009). Coordenadora da Escola de Informática e Cidadania Nise da Silveira e EncantArte Editora (desde 2002).
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1 “Vamo que vamo” é a expressão popular de vamos que vamos, que significa essa determinação de ir em frente sem arrefecer diante das dificuldades.

2 Felizmente, hoje este hospício, na cidade de Paracambi, Rio de Janeiro, já está desativado, fechado, num processo conjunto de intervenção do Ministério Público, Secretaria Estadual de Saúde e Secretaria Municipal de Saúde de Paracambi.

3 O Ambulatório Central foi criado em 1984, unificou os ambulatórios espalhados pelas várias unidades de internação existentes à época, oferecendo consultas clínicas à população adulta e passando a funcionar como a porta de entrada dos pacientes à instituição, como medida de evitar as internações.

4 [Nota editoria N.E.: Ver o ensaio do Abel Luiz nesta publicação http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/5/portfolio/abel-luiz-por-um-estado-de-mundo-de-onde-se-ve-de-onde-se-aprende/]

5 Frase da letra do samba Loucura Cultural, de André Cabral e Elisama Arnaud, vencedor da Escolha de Samba Enredo 2016.

6 [N.E.: Para saber mais do Sarau, ver o ensaio fotográfico de Denise Adams, vídeo de Pamela Perez e texto de Izabela Pucu nesta edição: http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/5/portfolio/pamela-perez-ensaio-fotografico-ocupa-a-rua-e-refaz-a-cidade-bloco-loucura-suburbana/]