Limpeza da escola realizada pelos estudantes durante uma ocupação no Colégio Pedro II. Fonte: Ocupa CP2 Real. Disponível em: https://www.facebook.com/ocupaCP2real. Acesso em outubro de 2018.

Escola-corredor: por uma poética da ocupação (a duas vozes)

Isabella Dias
Luiz Guilherme Barbosa

Enquanto eu escrever e falar vou ter que fingir que alguém está segurando a minha mão.

Clarice Lispector 1

 

Penso sobre como me parece muito mais sedutor continuar pelos corredores onde converso informalmente com funcionários sobre o que fizeram no fim de semana, os ônibus que pegam e suas histórias de adolescência. Eles, como eu. Nesses corredores, eu os humanizo e, quando agora paro para analisar essas passagens entre mim e eles, vejo nelas poesia.

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Uma escola acontece mais nos corredores do que nas salas de aula. Assim é muitas vezes, quando conversar e conviver parecem uma dupla inimiga dentro de sala e amiga fora dela. Num corredor entre uma aula e outra, num corredor antes ou depois das aulas, num corredor durante o intervalo, qualquer conversa informal pode revelar qualquer coisa em comum entre aluno, professor, inspetor, diretor, a mesma linha de ônibus que tomam para chegar até a escola, os filmes que viram no fim de semana, alguma memória de infância. Nesses diálogos estarrecedores, é encantador perceber que professores, assim como alunos, comem morangos no café da manhã. Uns e outros preferem um caminho a outro, uma música a outra, uma banalidade a outra. Os corredores, simétricos à sala de aula, liberam uma energia pedagógica que a sala de aula burocratizou.

Mas nem isso basta porque, quando nos juntamos e conversamos, fica clara a necessidade de se trabalhar com urgências. Serventes, seguranças, cozinheiros participam menos dos corredores de uma escola, que fazem a vez de uma fronteira entre os saberes da sala de aula e os saberes que não circulam pelos corredores. O corredor da escola é uma fronteira entre currículos, entre os saberes considerados dignos de serem ensinados, e aqueles alijados do processo de formação tal como instituído pela sociedade e pelo Estado na escola. Os saberes que não participam do currículo escolar nem costumam frequentar os corredores consistem em práticas de cuidado: cuidado com a comida e a alimentação, cuidado com a limpeza e a higiene, cuidado com o patrimônio e a segurança. Cozinheiros (quase sempre mulheres), seguranças (quase sempre homens) e serventes são, quase sempre, negros. Esse conjunto de saberes e práticas Mariana Oliveira, ex-aluna do Colégio Pedro II e hoje universitária, chamou de pilares pretos.

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Muito cedo aprendi de falas atravessadas que a escola é corredor, com seus encontros, dinâmicas e interações. Ao mesmo tempo em que me lembro de que ela é nascente de conhecimento – se quer baderna, vá lá para fora. Aqui é lugar de aula. Na minha época, não funcionava assim, na minha época havia respeito, na minha época – e culpo a minha época por não ser como a outra época sobre a qual os adultos se referem. Época não sei qual, onde as coisas eram melhores, quando certamente eu não sentiria esse enorme desejo de fazer desse espaço outro que não palco das minhas danças, reflexões, cantorias e toques distribuídos entre os que compõem esse espaço. Penso sobre como me parece muito mais sedutor continuar pelos corredores onde converso informalmente com funcionários sobre o que fizeram no fim de semana, sobre os ônibus que pegam e suas histórias de adolescência. Nestes diálogos estarrecedores, me vejo completamente encantada pela perspectiva de que eles, tal como eu, comem morangos no café da manhã.

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Comecei a me dar conta da importância dos corredores da escola depois que me tornei professor do Colégio Pedro II e, dois anos depois, conheci a Isabella Dias. Isabella não foi minha aluna em sala de aula. Conhecemo-nos num projeto de iniciação científica júnior: ela concorreu a uma bolsa para integrar um grupo de estudantes que participou do projeto de formação acadêmica que ajudei a organizar ao lado de outros colegas professores, em 2016 e 2017. Ao longo do ano, Isabella e os colegas bolsistas participaram de um curso de formação para a pesquisa organizado com base nos diferentes gêneros textuais acadêmicos: ali promovemos oficinas para que aprendessem a fazer o fichamento ou a resenha de um texto, pesquisar bibliografia e redigir um artigo acadêmico, e considerar a elasticidade do texto ensaístico em função da pesquisa que desejassem realizar. Para o projeto, Isabella trouxe a ideia de pesquisar a produção cultural das ocupações secundaristas, e daí começamos juntos a estudar.

A relação que se estabeleceu, desde então, foi tecida nos corredores e no pátio, entre uma aula e outra. A atividade de pesquisa, numa escola, representa o reconhecimento do corredor como espaço fronteiriço do currículo. É nos encontros fora de sala de aula e ainda dentro da escola, no âmbito de uma relação pedagógica liberada da temporalidade de aprendizado que uma aula requer, em projeto de pesquisa de longo prazo, que uma outra escola se desenha. E se desenhou ainda mais quando, no final daquele ano de 2016, os estudantes, em assembleia, e resistindo às medidas de arrocho do governo triste de Michel Temer, decidiram ocupar o campus Realengo do Colégio Pedro II. A ocupação não apenas adiou o trabalho de pesquisa que vínhamos desenvolvendo, como trouxe o objeto da pesquisa para dentro do cotidiano escolar, e a Isabella participou ativamente dos dois meses de ocupação da escola.

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Foi na roda de samba, na coreografia de funk e nos festivais de rap que minha geração vivenciou um reencontro com suas subjetividades. Esse reencontro, que despertou nos jovens a perspectiva de vida prazerosa, os transforma de figura inexpressiva e subordinada a figura autônoma dona de si. Os laços estabelecidos a partir das experiências afetivas não podiam ser adquiridos na esterilidade das escolas ou das universidades, porque se opõem às práticas de punição, silenciamento e violência. Ao contrário, promovem autonomia e libertação necessárias para que se retorne ao processo de descoberta da própria identidade. A consciência promovida pela afetividade subversiva é a de que o autorreconhecimento só será possível em uma trajetória conjunta, de respeito e preservação das particularidades do outro.

A composição de uma identidade se torna real quando, através do amor, o equilíbrio é estabelecido. A arte como manifestação significa também manifesto e assume caráter materno, de orientação: como uma mãe, ela revela os caminhos sem que, com isso, nos tome a elaboração de nosso próprio percurso. Pela arte e livre das amarras da racionalidade, buscamos conhecer nos lugares, nas pessoas, no toque experiências que os discursos não são capazes de, sozinhos, conferir. Assim, não nos separamos do mundo para entendê-lo, vivemos o mundo para que, com ele, o sintamos e possamos narrá-lo.

O engajamento pelo trabalho da arte – e pelo trabalho do amor – é, portanto, a maneira mais democrática de aprender. Ama-se o outro porque lhe é inevitável, ama-se porque existe troca e amar é a única forma de respeitar e valorizar. Esse amor é tanto doar como receber, sem que nessa troca haja esgotamento de uma das partes. Nele, não há hierarquias. Com essa percepção afetiva e, por isso, revolucionária, ocupar escolas – espaços públicos, sem a rotina facilitada promovida na casa dos pais – se exilou da utopia para se converter numa proposição real e numa construção cotidiana dos estudantes.


Fig. 1 Produção de faixa, instrumentos de limpeza, e a vestimenta cotidiana dos estudantes acolhida pelo espaço escolar. Fonte: Ocupa CP2 Real. Disponível em: https://www.facebook.com/ocupaCP2real. Acesso em outubro de 2018.

Falas se disseminaram, falas sob formas muito diversas, durante as ocupações secundaristas de 2015 e 2016. Faixas, entrevistas, cabelos, fake news, sentenças, fraturas, jograis, discursos, canções. Ou cantos de guerra. “Mãe, pai, tô na ocupação, e só pra tu saber eu luto pela educação”. Cantos por uma comunidade filiada à escola, mãe, pai, eu, hinos filmados por uma comunidade em rede social, paródias de funk como queríamos demonstrar. “O governador diz não ter dinheiro, pode apostar tá lá no bolso do empreiteiro”. Uma ocupação é performativa, e por isso uma ocupação precisa de vozes, corpos, em coro. E uma ocupação escolar produz currículo: doação de aulas, oficinas, assembleias, aulas públicas. Abre, sob a lição etimológica dessa palavra, currículo, dessa palavra, curso, caminho para uma aprendizagem pela urgência erótica do coro: produzir e afirmar os corpos negros, femininos, transgêneros, periféricos contra a explosão terrorista dos corpos, contra a implosão estatal dos corpos.

Uma ocupação dura com os saberes exilados das aulas, saber limpar a escola, saber alimentar a escola, saber guardar a escola. São pilares pretos, funções exercidas muitas vezes por pessoas pretas, saberes subterrâneos que, no gesto de ocupar, vêm à tona, imediatos, e demandam estudantes como seguranças, merendeiros, auxiliares de serviços gerais. E uma ocupação dura enquanto saberes alienados do ensino são uma demanda incontrolável: como cuidar da escola, da sua instituição, da sua comunidade. Ali, os alunos são parte do corpo da escola, e produzem – como os indígenas, parte do corpo da terra, com a floresta – o direito de ocupá-la.2 O que uma ocupação põe a nu: os saberes são intraduzíveis a um corpo, que por isso ocupa, ou então: os saberes são um intraduzível dos corpos.

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Soube-se quem eram as merendeiras somente quando elas, não no cotidiano instituído, mas no cotidiano de ocupação, ensinaram os estudantes a cozinhar. Soube-se quem eram os funcionários da limpeza somente quando os estudantes cuidaram da limpeza do espaço. Soube-se quem eram os jardineiros quando eles ensinaram o nome e a função das plantas e das flores, conhecimento que não foi adquirido por eles na escola nem na universidade, mas pelo trabalho. Os saberes interseccionados multiplicavam o interesse e a busca pelo que ainda não fora descoberto. A luta pela resistência naquele território se fez pelos caminhos estranhos das expressões artísticas. O cuidado com o espaço era cultivado pela estima, que substituía o dever diário. De maneira inaugural, a escola comportou práticas sociais periféricas e populares em contexto de ensino-aprendizagem. Palestras sobre candomblé, oficinas de poesia e jongo, rodas de debate sobre sexualidade e samba, improviso de rap, festas, feiras de funk aconteceram justamente ali na escola, que muitas vezes marginaliza todas essas manifestações. O corpo. A arte incluía os corpos reprimidos e invisibilizados, num processo profundo e incontornável de humanização. A estranheza em ver um estudante não uniformizado no ambiente escolar tem a força de uma passeata. A comunidade. Numa ocupação secundarista – assim como nas ocupações universitárias – toda a comunidade do entorno se movimenta junto.

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Uma ocupação fala sobre os corpos porque uma ocupação fala também sobre as redes sociais, os novos modos de comunicação em meio digital. As ocupações foram sustentadas por jovens nativos digitais, para os quais a intimidade com a imagem do corpo do outro, e do seu discurso, parece defasada com as normas sociais de relação erótica no dia a dia de corpo presente. É preciso entender a defesa da ocupação como produção de um sujeito político ao lado de outros sujeitos políticos, um entre outros, cada um, “um cada que vira um mas ainda é cada”, para usar a formulação de Mariana Freitas, outra aluna do Colégio Pedro II. Um texto foi muito importante para nós nesse processo de pesquisa, como referência da qual ora nos aproximávamos, ora nos distanciávamos, mas com o qual concordávamos quando o assunto era a análise das redes sociais em contexto de resistência política:

Antes de conseguir se comunicar ativamente nas redes, você deve se tornar uma singularidade. Os antigos projetos culturais contra a alienação queriam o retorno de você a si mesmo. Combatiam as maneiras pelas quais a sociedade e a ideologia capitalista nos separam de nós mesmos, dividindo-nos em dois, e, assim, buscavam uma forma de inteireza e autenticidade, frequentemente em termos individuais. Quando você se tornar uma singularidade, jamais será um eu integral. As singularidades são definidas por meio de um ser múltiplo internamente e de um descobrir a si mesmo externamente apenas em relação aos outros. Assim, a comunicação e a expressão de singularidades em redes não são individuais, mas corais, sendo sempre operativas vinculadas a uma ação, fazendo a nós mesmos e, ao mesmo tempo, estando juntos.3

A tática de ocupação produziu nas escolas de ensino médio um contexto como que precoce de aviso político. O século é outro, gritam jovens nascidos nesse século. E, daí, desse grito inscrito nas redes sociais como cantos de guerra (foi para se proteger que as ocupações mantiveram comissões responsáveis pelas mídias sociais do movimento), umas formas cancionais ecoaram, cantando, por exemplo, o funk como se o funk tivesse sido composto numa ocupação. Como fizeram atores da Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Penna, do Rio de Janeiro, em performance nas escadarias da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, no dia 9 de março de 2016, que cantaram “Baile de favela”, do MC João, com letra retextualizada. “Quer ler livro, acha que merece, quer ir ao teatro, acha que merece, quer ir ao cinema, acha que merece”, sobre um trecho como: “Ela veio quente, hoje eu tô fervendo”, que é quase o mesmo “Pode vir quente que eu estou fervendo” de 1967, cantado por Erasmo Carlos. De tradução em tradução, o texto permanece provocador, em prol da voz, da tomada de voz como tomada da cultura, ocupando-as, da Jovem Guarda às ocupações, mediado pelo funk, mas com uma diferença: o canto de guerra dos ocupantes encena uma voz inimiga. Em coro. É um problema de tradução, poderia dizer.

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A ocupação sofreu o esgotamento esperado. Contudo, o retorno à rotina se revelou não somente angustiante, como também assustador. Sua imprevisibilidade se converteu em ansiedade. Depois de numerosos processos burocráticos em que a instituição registrou as alterações realizadas no campus pelos ocupantes – desde a pintura de uma sala até a instalação de um fogão –, era preciso que se pensassem maneiras de traduzir para a rotina restabelecida as transformações vividas durante os meses de experimentação político-pedagógica no espaço escolar. “Traduzir é como olhar para a direita e para a esquerda ao mesmo tempo”, assim definiu Caio Phillipi, estudante do Colégio, quando foi desafiado na primeira aula pós-ocupação a traduzir literariamente a fórmula de Bartleby: I would prefer not to.4 Uma espécie de exílio pós-ocupação se instaurou junto à nova ordem, nova em tese. Ouvimos do diretor, reitor e representantes dos grandes cargos burocráticos que devemos encontrar formas cabíveis de traduzir as aprendizagens de ocupação à realidade do Colégio, o que soa enormemente ofensivo. Tentamos assumir essa tradução como possibilidade, mas sabemos que traduzir é quase impossível. Os corpos se tornaram a própria linguagem. Comunicamo-nos com os corpos porque eles produzem saberes que não cabem nos livros didáticos. Não desejo que a ocupação vire exclusivamente objeto a teses universitárias, que correm o risco de analisar os fenômenos enquanto os sepultam, atrelando-os ao passado. Não cedemos.

Como ocupantes, insistimos em não ceder porque não há meio termo quando os discursos são antagônicos. Fomos acusados por utopia, e ouvimos impassíveis. Rimos e nos exilamos, mas nessa comunidade imaterial partilhamos a potência do que vivemos. O exílio se torna, portanto, uma experiência de deseroicização. Burocratas tentavam converter o exílio em culpa, sem eficácia. Os saberes sufocados, sem currículo, ao atingirem a superfície, se expandem. Não é possível que se aponte o caminho de retorno. Não há volta. Como jovem, penso sobre democracia, penso sobre educação, penso sobre política e penso sobre afeto, e as ideias não parecem muito organizadas, mas soam razoáveis quando falo com outras pessoas que participam da escola. É assim que um pensamento encontra um inesperado reconhecimento coletivo, falando. E esse é o primeiro gesto de uma ocupação.

 

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Isabella Dias
Estudante de ensino médio do Colégio Pedro II, onde atua, desde 2016, como bolsista em projetos de iniciação científica. Em 2016, desenvolveu a pesquisa de iniciação científica “O corpo político nas ocupações secundaristas”, sob orientação do prof. Luiz Guilherme Barbosa.

Luiz Guilherme Barbosa
Professor de Português e Literaturas de Língua Portuguesa do Colégio Pedro II. Doutor em Teoria Literária pela UFRJ, atua no coletivo Oficina Experimental de Poesia. Em 2018, co-organizou o livro Na lida da escrita: oficinas literárias no Colégio Pedro II (selo Flauta de Papel) e publicou os poemas de Postagens e antipostagens (kza1).
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1 LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Paris: Association Archives de la littérature latino-américaine, de Caraïbes et africanique du XXe. Siècle; Brasília: CNPq, 1988., 13. (Coleção Arquivos; 13)

2 Escrevendo a partir das ocupações secundaristas, Alexandre Nodari aproxima a tática dos estudantes ao direito de ocupação indígena: “Não se trata de uma relação de propriedade, mas de recipropriedade, uma propriedade recíproca: se, como afirma Eduardo Viveiros de Castro, ‘os índios são parte do corpo da Terra’, participam do corpo da terra, é por isso que eles têm o direito de ocupá-la.” Alexandre Nodari, “Ocupação e cuidado”, 2016. (https://partessemumtodo.wordpress.com/2016/10/09/ocupacao-e-cuidado/)

3 HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Declaração – Isto não é um manifesto. Tradução de Carlos Szlak. São Paulo: n-1 edições, 2014. 57.

4 Em Bartleby, The Scrivener (1853), Herman Melville propõe uma novela cujo refrão, “I would prefer not to”, é repetido por Bartleby com variações, como “I prefer not to”, respondendo à demanda por trabalho do seu patrão. A (in)traduzibilidade da proposição foi estudada por Gilles Deleuze (“Bartleby, ou a fórmula”, 1993) e testada num trabalho proposto a estudantes do ensino médio no Colégio Pedro II, que propuseram soluções como: “Eu preferiria não fazê-lo”, “Eu apreciaria não fazê-lo”, “Creio que é melhor não fazê-lo”, “Optaria por não fazer”, “Escolheria não agora”, “Gostaria de não fazer”.