JULIANO GOMES
Da medida de um rio: a mediação da nascente à foz. 9ª Bienal do Mercosul, Porto Alegre. Trensurb. Julho de 2013. Foto Juliano Gomes

Uma trama cheia de nós: o sentido do público na formação de mediadores da Bienal do Mercosul

Diana Kolker

A figura do mediador tornou-se familiar para o público gaúcho. Sua função pode não ser muito clara para alguns, mas é sabido que podemos contar com sua disponibilidade para conversar numa exposição. Analisando os números divulgados pela Fundação Bienal do Mercosul1 fica fácil endossar minha afirmação. Foram contabilizadas 5.014.707 visitas às mostras e 1.229.460 agendamentos de visitas mediadas. Dito isto, abro parênteses: por mais cuidadosa que seja a contabilidade institucional a respeito do público que frequenta suas atividades – visto que as instituições e seus patrocinadores são especialmente interessados em dados quantitativos –, essa contabilidade jamais alcançará o número de envolvidos, tampouco a profundidade dos efeitos nesses números de carne, osso e pulsação. Fecho parênteses e apresento outro número: 1.769 pessoas participaram dos cursos de formação de mediadores promovidos pela Bienal do Mercosul. Uma enormidade de pessoas atuantes (ou não) no campo artístico e educativo da região viveu a experiência como mediador na Bienal do Mercosul e a partir dessa experiência exerceu diferentes papeis no quadro de funcionários da instituição (mediação, supervisão, produção, montagem, coordenação, curadoria etc.) e de outros espaços culturais e educativos da região.

Ao longo das nove edições da Bienal do Mercosul, a relação com o público e o papel do mediador foram debatidos, transformados e expandidos. Os cursos de formação de mediadores tornaram-se tão importantes que ganharam tempo maior no calendário institucional do que a própria mostra. Mônica Hoff, ex-coordenadora do projeto pedagógico da Bienal do Mercosul, identificou alguns marcos na história da Bienal que conduziram para o seu reconhecimento como instituição de formação, tendo como principal porta de acesso os cursos de formação de mediadores.2 Segundo o artista e crítico Luiz Camnitzer, primeiro curador pedagógico do evento, a Bienal é uma instituição contínua, dedicada à educação e à arte, cuja mostra é parte de uma pesquisa pedagógica.3 Todavia, ao final da exposição, a equipe do projeto pedagógico, que conta com cerca de 200 pessoas, se desfaz.4 Como se dá a continuidade dessa pesquisa pedagógica? Seria possível afirmar que se constituiu uma escola de mediação na Bienal do Mercosul? Se sim, qual é o sentido do público nessa escola? Talvez possamos falar de uma escola gasosa que se condensa a cada edição e torna a evaporar quando a mostra se encerra. No entanto, corro o risco de afirmar que essa escola formou-se menos por vontade institucional do que pela atuação desses educadores que retornam a casa, seja como mediadores, supervisores, produtores, coordenadores, palestrantes, curadores ou público.

As redes são tramas das mais variadas matérias que se encontram em nós.

“Se cair na rede, é peixe!” – anuncia o dito popular. Todavia, na contemporaneidade a palavra rede abrange significados mais amplos do que aqueles dos tradicionais utensílios ameríndios para pescar ou para descansar. As redes contemporâneas também articulam fios imateriais. Falamos em redes de comunicação, de produção, de serviços, de capital. A imagem das redes comporta o que os pesquisadores Regina Benevides e Eduardo Passos chamam de funcionamentos quentes e frios. São frias as redes hiperconectivas do neoliberalismo, que investem na homogeneização das produções materiais e subjetivas. As redes quentes, conforme definem, são aquelas cujas conectividades (ou os nós da trama) são geradoras de diferenciação e, portanto, impõem resistência às forças da fria trama neoliberal: “É nesse sentido que a experiência do coletivo, do público ou mesmo da multidão deve ser retomada como plano de produção de novas formas de existência que resistem às formas de equalização ou de serialização próprias do capitalismo”5. Com esse calor foi gestado e concebido o projeto pedagógico realizado na 9ª Bienal do Mercosul, que assumiu a forma de rede através do programa Redes de Formação. Teve caráter experimental e micropolítico, fruto do desejo de promover encontros, celebrar as diferenças, provocar fissuras, afetar e gerar afeto.

Se em edições anteriores o projeto pedagógico buscou preparar os mediadores para oferecer ao público uma experiência significativa com a exposição, na nona edição, as fronteiras entre público e mediador, educação e arte foram dissolvidas. Ainda que algumas atividades fossem pensadas para um grupo específico, estavam abertas a quem desejasse participar. A curiosidade era o único pré-requisito. Assim, seria mais apropriado falar em atividades com o público do que para o público. As atividades do programa Redes de Formação não estavam a serviço de uma experiência posterior. Elas eram em si uma experiência. Nas palavras de Mônica Hoff:

Não me interessa instrumentalizar para que se crie retórica sobre obras de arte ou sobre espaços, mas me interessa discutir e viver o campo político disso. O quanto isso modifica a maneira como a gente se coloca e está no mundo.”6

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Rente ao Chão: a invenção da mediação. Coordenado por Jorge Menna Barreto. Parque Farroupilha. Porto Alegre, julho de 2013. Foto Juliana Peppl

Puderam se inscrever para participar do programa, e posteriormente atuar como mediadores, estudantes universitários a partir do 3º semestre e profissionais de todas as áreas de conhecimento. Contamos com pessoas de artes, pedagogia, filosofia, biologia, arquitetura, museologia, psicologia, ciências sociais, história, comunicação, design, agronomia e astronomia. Sem dúvida, tal abertura produziu efeitos nos discursos sobre a exposição e conferiu legitimidade para pessoas que não possuíam formação em artes visuais para falarem sobre arte. Maria Soledad, tradutora, formada em psicologia e mediadora na 9ª Bienal do Mercosul, afirmou: “Eu não sou formada em arte, e o meu primeiro contato formal com trabalho em arte é a partir da formação e do trabalho enquanto mediadora da nona bienal. Então, nesse sentido me sinto próxima do sentido do público”.7 Segundo Mônica Hoff, a abertura do curso de formação de mediadores para estudantes de diversas áreas8 se deve especialmente à percepção de que os mediadores são o público primeiro da Bienal do Mercosul:

E quando eu penso no público ou nessa palavra no sentido da esfera pública ou do público como essa entidade construída, eu penso muito nessa figura do mediador, por entender nele talvez essa intersecção ou por não ver diferenciação entre o público que está pra lá da instituição e o público de dentro da instituição.”9

Todos os envolvidos nos processos artísticos e educativos do programa Redes de Formação já possuíam suas próprias vivências com educação – seja como educadores ou educandos na escola, na universidade, em museus, na própria Bienal, na comunidade. Portanto, já traziam inscrito em si um determinado sistema de representação que nos modela conforme os códigos perceptivos, os modos de relação e de produção nos quais somos iniciados desde muito cedo. Segundo Felix Guattari, um empreendimento educacional “coloca de imediato toda uma série de problemas micropolíticos”.10 Entre eles, podemos mencionar os paradoxos relacionados ao sistema de financiamento dos grandes eventos culturais e o lugar ocupado pelos projetos educativos a eles associados. Apesar do calor das redes quentes ser por vezes engolido pela fria rede neoliberal na qual as instituições tramam e se alinham, o inverso também acontece. Talvez um dos maiores efeitos dessa experiência tenha sido produzir fissuras em algumas vigas que sustentam a arquitetura dessas relações para as quais somos modelados. Para tanto, foi preciso romper os muros da instituição, ganhar a cidade, tocar os corpos, plantar os pés no terreiro de encontros, do qual nos fala o artista Ricardo Basbaum:

O termo terreiro é aqui utilizado sem qualquer sentido religioso ou místico, mas enquanto referência a um espaço múltiplo e plural aberto a trocas, transformações, conversas, celebrações, jogos narrativos, referências históricas etc., sendo atravessado por ritmos, pulsações e forte corporeidade.”11

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Um arbusto no vale: A mediação onde aparentemente não está. Coordenado por Helena Mouschoutis, Federico Testa e Potira Preiss. Jardim Botânico, Porto Alegre, agosto de 2013. Foto Diana Kolker.

Nossos terreiros de encontros foram muitos e se materializaram através de atividades incluindo Labs de Mediação, Residências em Escolas12, Palestras e uma experiência chamada Momento Pólen.13 Os Labs de Mediação eram encontros experimentais que articulavam o exercício ampliado de mediação à vivência/criação de práticas poéticas. Não possuíam como objetivo criar modelos para mediação da arte, mas promover a tal da arte do encontro, que nos canta Vinícius de Morais.14 Encontro com educadores, artistas, trabalhos de arte, culturas, ruas, textos, técnicos, cientistas, crianças, pesquisadores, políticas, cidade, instituições, ativistas, conceitos, consigo. Nas palavras da mediadora e pesquisadora Helena Mouschoutis:

No encontro a experiência é muito profunda e capaz de ultrapassar as obras, os conceitos e até as paredes das exposições. É um momento de troca entre as pessoas, os corpos, as vidas e as vivências. As experiências que compartilhamos se confundem umas com as outras e é por esse motivo que nenhum outro artifício de mediação dos projetos curatoriais é capaz de substituir o fator humano que um mediador pode trazer. É por conta da ação potencializadora da experiência do mediador artístico que um grupo se forma e compartilha experiências e sensações criando vínculo, dando liga, chegando ao encontro.”15

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Arco celeste: A ideia de refração na mediação. Coordenado por Luciano Montanha e Roger Kichalowsky. MARGS. Porto Alegre, julho de 2013. Foto Cristiano Sant’ana.

Cada laboratório, realizado semanalmente, foi coordenado por um ou mais convidados. Os labs foram presentes (em todos os possíveis sentidos que esta palavra possa ter). E como todo bom presente havia uma aura de mistério e surpresa antecedendo cada um deles. Seus títulos16 eram enigmas poéticos acompanhados por pequenos textos disparadores que relacionavam as práticas poéticas e pedagógicas aos temas presentes na 9ª Bienal do Mercosul17, cujo título “Se o clima for favorável” nos apontava como o clima político, histórico, meteorológico nos afeta individual e coletivamente. Com base nesse material os convidados criaram suas proposições e escolheram algum espaço da cidade para desenvolvê-las. Realizamos labs em museus de arte e tecnologia, mas também no jardim botânico, na orla do estuário Guaíba, na Praça da Alfândega, nas estações de trem, no parque, numa escola de educação infantil, em um terrível porão. Esses locais foram experimentados, ocupados e reinventados conforme a proposta de nossos convidados e o envolvimento dos participantes.

Mais do que uma escola gasosa, promovemos um processo de desescolarização18 da formação de mediadores, em que todos eram potenciais intercessores: os proponentes de cada lab, os demais mediadores (oriundos de diversas áreas de formação), o público curioso, a equipe do pedagógico, os professores, os locais onde a atividade se desenvolvia, os artistas, as obras de arte. Dessa forma buscamos romper com a arquitetura pedagógica que verticaliza os processos de formação e, como escreveu Jacques Rancière, funda a “ficção estruturante da concepção explicadora de mundo”.19 A mim coube estabelecer uma superescuta a fim de favorecer a ativação das potências e a transformação das fragilidades individuais e coletivas na direção de uma invenção de si. Com o cuidado de seguir o primeiro princípio da esquizoanálise recomendado por Félix Guattari: “não atrapalhar”20. Não nos interessava estabelecer um modelo de mediador a ser alcançado ou exercitar estratégias de mediação a serem reproduzidas com o público. Interessava-nos o múltiplo e o singular em cada um. Interessava-nos agenciar os bons encontros. Interessava-nos estimular a autonomia. Interessava-nos que cada um se apropriasse dos acontecimentos da forma mais potente. Interessava-nos que cada um fosse muitos e que se efetuassem na relação com público e obras. Interessava-nos caminhar com um corpo coletivo ao mesmo tempo em que criávamos os caminhos e pensávamos sobre a caminhada.

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El Niño/La Niña: Os fenômenos atmosféricos e as condições climáticas no contexto da mediação. Centro da cidade, Porto Alegre, julho de 2013. Foto Eduardo Seidl

No lab El Niño/La Niña: Os fenômenos atmosféricos e as condições climáticas no contexto da mediação, coordenado pela curadora/educadora Valquíria Prates, o fenômeno natural foi disparador do pensamento sobre o campo de imprevisibilidade inerente à prática da mediação em arte:

El Niño e La Niña são fenômenos atmosféricos opostos. Se o primeiro é ocasionado pelo aquecimento anormal das águas superficiais do Oceano Pacífico, o segundo se deve ao processo contrário, o resfriamento anormal. A chegada de ambos não acarreta alterações e efeitos em uma única região do planeta, mas em todo ele, de distintas formas e simultaneamente, muitas vezes. As mudanças climáticas e os fenômenos atmosféricos são trazidos nesse lab como metáfora para discutirmos o campo das imprevisibilidades no que concerne à relação entre a educação e a arte através da mediação. Interessa-nos dialogar sobre aquilo que não está posto no discurso da mediação, o imprevisto possível e o previsto improvável, sobre o que acontece quando massas de ar diametralmente opostas (escola/museu; metodologias educacionais e artísticas) se encontram, que choques geram e como se comportam e dialogam.21

A partir da proposta da curadora/educadora Valquíria Prates, os mediadores realizaram obras instrucionais das artistas Yoko Ono e Marjetica Potrč, envolvendo as pessoas que transitavam nos espaços públicos do centro de Porto Alegre. Após a atividade os grupos reuniram-se para conversar e debater sobre questões que emergiram da própria experiência. O contato direto com o público, o exercício de persuadir os transeuntes a participarem de uma proposição artística, a experiência de realizar uma mediação simultânea ao acontecimento artístico, a diferença entre o planejamento da ação e o seu acontecimento fizeram emergir questões muito caras à prática dos mediadores no contexto de uma exposição de arte: como lidar com a imprevisibilidade característica da relação entre público e arte?; pode existir o errado quando não existe o certo?; quando usamos a palavra clima no contexto da mediação em arte, quais sentidos e significados essa palavra pode ter?; que elementos e que corpos orbitam no campo da arte?; como se atraem e como se repelem?; a que tipos de intempéries estão expostos?

“Como uma mediação pode ser um rio?” Esta pergunta concluía o texto que anunciava o lab Da medida de um rio: a mediação da nascente à foz, coordenado pelos curadores/educadores Jessica Gogan e Luiz Guilherme Vergara. Nessa experiência interferimos no fluxo, não das águas, mas das pessoas. O lab foi realizado nas estações de trem, que se transformaram em plataformas poéticas, até mesmo (ou especialmente) para aqueles que utilizavam o transporte diariamente. Os participantes receberam uma folha de papel com breves instruções, que incluíam orientações como: respirar, caminhar à deriva, observar, acolher, doar, fazer um inventário de percepções e ideias, “conversar sobre possíveis (i)mediações: Dou-ações poéticas, etnográficas, jornalísticas e afetivas”. Dotados de ferramentas de coleta como papel, lápis, câmeras, olhos, nariz, pele, boca, ouvidos, os mediadores vagaram nos vagões. Alguns passageiros desavisados embarcaram no trem/metáfora e acabaram capturados por um estado de embriaguez de que fomos tomados. Conforme relato da mediadora Renata Siegmann:

Se transporte é metáfora em grego, como seria uma metáfora dentro de uma metáfora? […] Ainda na ideia de fluxo e fixo, decidimos provocar os passageiros, injetando uma fagulha de questionamento. Entramos no vagão e, ao invés de sentar ou escolher um lugar para ficar de pé, ficamos caminhando freneticamente sem parar e, quando as portas se abriram na estação seguinte, saímos do trem e logo paramos, deixando que as pessoas entrassem e saíssem. Paramos quando os outros se movimentavam e nos movimentamos quando todos estavam parados. No fim da manhã os grupos apresentaram seus experimentos, e cada um era totalmente distinto do outro. Pude entender o papel do mediador com muita clareza: ser um provocador, que concede autonomia pro outro experimentar de acordo com o seu repertório; inspirar curiosidade, levantar questionamentos, convidar para brincar de ser um explorador do mundo, através da arte.”22

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Da medida de um rio: a mediação da nascente à foz. 9ª Bienal do Mercosul, Porto Alegre. Trensurb. Julho de 2013. Foto: Eduardo Seidl

Segundo a filósofa Rosa Dias, esse estado de embriaguez acontece quando somos provocados por acontecimentos que nos afetam, que nos movem. Somos, então, inundados por uma força que nos faz sentir mais vivos, mais plenos, mais presentes. “No momento em que nos sentimos tocados por alguma coisa e o nosso ser animal responde por essa provocação, produzimos o estado estético – aquele em que transfiguramos as coisas”23. Juliano Gomes, professor de filosofia e mediador na 9ª Bienal do Mercosul, usuário do trem como meio de locomoção de casa para o trabalho, relatou que a experiência lhe possibilitou ativar o olhar para aquilo que lhe escapava na sua relação utilitária com o transporte.24 Uma pequena intervenção no fluxo cotidiano pode abrir as portas para o extraordinário, produzindo rupturas no tecido do tempo, rompendo com a lógica normatizadora, instaurando um estado de arte, mobilizando presenças, mobilizando presentes.

Conforme lemos no depoimento de Renata, ao final da experiência ela pôde “entender o papel do mediador com muita clareza”. Essa linda definição não lhe foi explicada ou transmitida. Renata viveu a experiência, se permitiu ser afetada e produziu pensamento com ela. Percebe-se, portanto, uma ética e uma estética que envolveu a formação de mediadores. Os conceitos, práticas, estratégias não foram explicados, mas vividos no próprio processo de formação. Canta Rancière: “Quem ensina sem emancipar, embrutece. E quem emancipa não tem que se preocupar com aquilo que o emancipado deve aprender. Ele aprenderá o que quiser, nada, talvez” 25.

Se especialmente o ambiente escolar nos inicia na ordem explicadora de mundo, modelando conforme os modos de relação dominantes, foi justo numa escola que realizamos o lab Nem todas as respostas cabem num adulto: a mediação de/para crianças. Rompemos com a hierarquização etária, propondo que crianças entre 4 e 8 anos de idade da Escola Amigos do Verde coordenassem o laboratório. Sem dúvida, foi um dos laboratórios mais emocionantes, que nos arrancou lágrimas contentes. As atividades planejadas e lideradas pelas crianças incluíram uma visita mediada por elas ao ambiente escolar – onde generosamente compartilharam seus esconderijos, seus locais preferidos, suas grandes histórias – e a participação em uma série de brincadeiras, que envolviam abraços, músicas, afeto e muita risada.

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Nem todas as respostas cabem num adulto: a mediação de/para criança. Escola Amigos do Verde. Porto Alegre, setembro de 2014. Foto: Cristiano Sant’Anna.

“Ao considerar o contexto da mediação, do que estamos falando quando nos referimos a subsolo, subcutâneo, substrato, subentendido? Quais são os porões e os compartimentos isolados e submersos da mediação?” – estas foram algumas de nossas perguntas provocadoras, que emergiram com o lab N(o) subsolo da mediação, coordenado pelo pesquisador Cayo Honorato. Essa experiência possuiu tantas camadas que seria necessário um empenho arqueológico para pensá-las. O lab colocou em debate, entre outras questões, a percepção dos mediadores sobre seu trabalho e o que as instituições contratantes esperam e pretendem com o mesmo. No subterrâneo cartografamos certa genealogia da moral do mediador. O laboratório foi realizado no porão do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), numa casa cujo histórico sinistro incluiu um período funcionando como sede do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). Nos anos 1960 e 70, período marcado pela ditadura civil-militar, o espaço foi utilizado pelas forças repressoras do Estado para práticas de tortura e assassinato de presos políticos que se opuseram ao regime. Outra camada presente no laboratório, não por acaso, foi o impacto dos afetos provocados pelo espaço físico.

O laboratório me causou um desconforto muito grande e isso é fora do comum. (…) Depois, pensando eu com meus botões, lembrei que a arte pode causar esse mal-estar. O que eu não me dei conta é de que o subsolo é isso, esse espaço obscuro, essa angústia, essa falta de ar, que a mediação pode trazer se não bem conduzida, esclarecida, ou qualquer outro momento em que nós mesmos somos o subsolo da mediação…”26

Muitas vezes a relação do corpo com a arquitetura que abriga a exposição fica subterrânea na mediação, mas nem por isso produz efeitos menores. A experiência foi significativa para tornar visível essa instância fundamental da relação com a arte. Houve ainda um forte atravessamento do contexto em que o lab foi realizado, que aconteceu em uma semana de intensas manifestações nas ruas das cidades no Brasil com notícias de violenta repressão da polícia militar. As manifestações e suas pautas foram trazidas muitas vezes pelos próprios mediadores ao longo do laboratório. A presença física naquele espaço manchado por uma terrível memória também foi de fundamental importância para pensar atravessamentos, rupturas e continuidades dessa história no presente.

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(n)o subsolo da mediação. Porão do Instituto dos Arquitetos do Brasil. Porto Alegre, junho de 2013. Foto: Eduardo Seidl

Constituiu-se uma equipe apaixonada e comprometida na relação com o público e com as obras. Ouso afirmar que nunca os mediadores foram tão imbuídos de sentido político sobre seu papel e tão conectados com o “sentido do público” quanto nessa edição. Todavia, seria equivocado reduzir a análise desses acontecimentos a causas e efeitos, tampouco associá-los exclusivamente à formação de mediadores. Por vários outros fatores, que não alcançaremos neste texto, não é possível apartar a 9ª Bienal do Mercosul do seu contexto. Um ano marcado por intensas manifestações nas ruas de tantas cidades do país e nos espaços virtuais não passaria de maneira neutra. As discussões sobre mobilidade, acessibilidade e garantia igualitária dos direitos básicos que fervilharam nas ruas perfuraram as paredes institucionais e se fizeram ouvir através do público, mas especialmente através do público primeiro – os mediadores. Foram reivindicados e debatidos aspectos como a profissionalização da mediação, as condições de trabalho dos educadores, as relações de privilégio no âmbito das artes visuais, o sistema de financiamento dos eventos culturais em diversas regiões do país. A participação das redes sociais nesse processo também foi significativa. Os mediadores se comunicavam e divulgavam em tempo imediato suas impressões, opiniões, experiências e pensamentos, envolvendo dessa forma o público extrainstitucional nas discussões e expandindo os debates para além das fronteiras do Rio Grande do Sul. Nas palavras da mediadora Maria Soledad:

Os encontros nos lugares mais diversos da cidade (no trem, no antigo centro clandestino de detenção de presos políticos, no parque, no centro da cidade…), em espaços fechados e abertos, profundamente políticos e orientados ao público, com aparência de “pouco a ver com a arte”, favoreceram paradoxalmente uma reflexão específica sobre a nossa prática, o nosso potencial como mediadores, incluindo ferramentas próprias da ação de mediar. Intenso como programa, já que o afeto não era sentimentalismo pessoal, mas conteúdo poético e político, didática e método. A proposta foi de afetos. A proposta pedagógica me pareceu, em si, poética e política: esteticamente rica, provocadora de sentimentos, pensamentos, atitudes, escândalos e espantos, perguntas, buscas, conhecimentos, trocas e movimentos éticos de todo tipo. É assim que penso a poesia e a política.”27

Encaminho o texto para sua conclusão, com certeza de sua insuficiência. Utilizo, no entanto, as últimas linhas para justificar por que me aproprio do título do projeto Sentido do Público na Arte, substituindo o termo “arte” por “formação de mediadores”. Segundo Basbaum, “o que o artista procura é construir o local invisível de um acolhimento, resguardar uma área específica que se transmute aos poucos em região provocadora de encontros”.28 Pois foi com o mesmo desejo que a formação de mediadores na 9ª Bienal do Mercosul foi concebida. Buscamos fomentar encontros esperando que os mesmos aumentassem as potências de pensar, de agir, de afetar o tempo e de inventar mundos. Uma acolhedora rede, cujos fios se encontram em nós.

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1 Relatório de Responsabilidade Social da 9ª Bienal do Mercosul.

2 HOFF, Mônica. “Mediação (da arte) e curadoria (educativa) na Bienal do Mercosul, ou a arte onde ela ‘aparentemente’ não está”. São Paulo: Trama Interdisciplinar- v.4-n.1- 2013.

3 CAMNITZER, L; PÉREZ-BARREIRO, G. Educação para a arte/Arte para a educação. Porto Alegre 6a Bienal do Mercosul, 2009.

4 Somente a partir da 6ª Bienal a instituição passou a contar com uma coordenação pedagógica permanente e um curador pedagógico por edição. O projeto curatorial para a décima edição, anunciado publicamente em 26 de agosto de 2014, não apresentou nenhum responsável pela curadoria pedagógica.

5 BENEVIDES, Regina e PASSOS, Eduardo. Clínica, política e as modulações do capitalismo. Lugar Comum. Nº 19-20, p 159-171.

6 HOFF, Mônica. Depoimento concedido ao projeto O Sentido do Público na Arte.

7 MENDEZ, Maria Soledad. Depoimento concedido ao projeto O Sentido do Público na Arte.

8 Abertura do curso para estudantes de diversas áreas de formação aconteceu pela primeira vez na quinta edição do evento.

9 HOFF, Mônica. Depoimento concedido ao projeto O Sentido do Público na Arte.

10 GUATTARI, Félix. Revolução Molecular: pulsações políticas do desejo. SP: Editora Brasiliense, 1985.

11 BASBAUM, Ricardo. “Quem é que vê nossos trabalhos?” Seminários Internacionais Museu Vale 2009 – Criação e Crítica (2009), p.202.(acessado em dezembro de 2014)

12 Programa incluído no curso de formação há algumas edições, realizado em escolas da rede pública de Porto Alegre, que consistia em um período de observação de uma turma (que podia ser da educação infantil ao EJA) e, posteriormente, na realização de uma oficina cuja temática se relacionava a questões suscitadas pela proposta curatorial de cada Bienal.

13 Momento Polén consistiu em uma vivência de curta duração em um local em que se realizasse uma
atividade diferente das atividades cotidianas do participante. Ao todo, vinte instituições parceiras acolheram a proposta, entre elas universidades, museus, ONGs, Pontos de Cultura, fundações, sítios com propostas de cuidados agroecológicos, espaços de reciclagem, etc. A imersão nesses espaços era um convite à produção poética a partir do encontro com o diferente.

14 “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. Samba da benção, Vinícius de Moraes.

15 MOSCHOUTIS, Helena dos Santos. “Pela lei natural dos encontros. Experiências de mediação artística no espaço expositivo e na sala de aula”. Pelotas: UFPEL, 2013.

16 Os títulos estão em ordem cronológica. O clima da mediação, mediação e as diferentes cosmovisões, El Niño/La Niña: os fenômenos atmosféricos e as condições climáticas no contexto da mediação, (n)O subsolo da mediação, Da via-láctea às vias de fato: a mediação do macro ao micro (e vice-versa), Arco celeste: a ideia de refração na mediação, Descoberta e invenção: a mediação como prática poética, Da medida de um rio: a mediação da nascente à foz, Rente ao chão: a invenção da mediação, Sismos induzidos: a ideia de desastre na mediação, Um arbusto no vale: a mediação onde (aparentemente) não está, Na prática, a teoria é outra, Acessibilidade, Nem todas as respostas cabem num adulto: a mediação de/para crianças, ‘No descomeço era o verbo’: a mediação como observação.

17 Na 9ª Bienal do Mercosul – com o título trilíngue Se o clima for favorável, Si el tiempo lo permite e Weather permitting – o foco da proposta curatorial da diretora artística Sofía Hernández Chong Cuy foram as interações entre natureza e cultura, experimentação e inovação. Incluiu obras e programas que abordavam a interação entre natureza e cultura e a maneira como os artistas perceberam essa relação. A exposição também se concentrou em como diferentes distúrbios atmosféricos afetam a nossa experiência e as percepções que temos do mundo que nos rodeia.

18 C.f. ILICH, Ivan. Sociedade sem escolas. RJ: Editora Vozes, 1985.

19 RANCIERE, Jacques. O mestre ignorante. SP: Editora Autêntica, 2011.

20 GUATTARI. Op.Cit., p.139.

21 Texto enviado a Valquíria Prates para concepção do lab El Niño/La Niña: Os fenômenos atmosféricos e as condições climáticas no contexto da mediação.

22 SIEGMANN, Renata. Depoimento concedido no dia 23 de fevereiro de 2015.

23 DIAS, Rosa. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 68,69.

24 Depoimento concedido em 18 de fevereiro de 2015.

25 RANCIERE. Op.Cit., p.37

26 Depoimento de Vagner Rampinini, mediador e assistente de supervisão da 9ª Bienal do Mercosul, na plataforma de ensino a distância, durante o curso de formação de mediadores.

27 MENDEZ, Maria Soledad. Depoimento concedido no da 23 de fevereiro de 2015.

28 BASBAUM. Op.Cit, p 202.