Lula Wanderley. Diálogos da projeção do olhar: Lula Wanderley com Gina Ferreira. Objetos e fotografia, c.1984.

“…há no canavial oculta fisionomia: como em um pulsar do relógio há possível melodia”1 (Para compreender o Objeto relacional de Lygia Clark)

Lula Wanderley

No início de suas experiências com o Objeto relacional (década de setenta), Lygia Clark está imersa em um ambiente cultural permeado pela linguagem psicanalítica: era difícil pensar o homem contemporâneo sem a presença do olhar psicanalítico. Nessa época, a linguagem lacaniana, hoje dominante e demarcadora, era ainda insipiente. Os limites da psicanálise eram testados e estendidos a cada instante, principalmente através de alguns autores que puseram em relevo a questão do corpo a partir das ideias de Freud sobre o orgânico como o lugar de onde o psiquismo se desprende. Era comum aproximar Lygia Clark a D.W. Winnicot, pediatra e psicanalista, até mesmo pela sonoridade do nome dos objetos/conceitos criados pelos dois : Objeto relacional / Objeto transicional. Com Objeto transicional, Winnicot descreve, no universo das ações criativas do bebê sobre a realidade, a criação de um objeto híbrido que ao mesmo tempo é oferecido pela mãe e, simultaneamente, é uma criação do bebê. Uma quebra de fronteira entre a subjetividade e a objetividade que aproxima a materialidade dos afetos. O Objeto relacional de Lygia, ao mesmo tempo em que é percebido pelo corpo, em continuidade é reconstruído como corpo. Tal como o objeto winnicotiano, apagam-se as dicotomias com que organizamos nossa vida cotidiana – tempo/espaço, metafórico e fisico… A fenomenologia da percepção/criação do objeto é o que aproxima Lygia de Winnicot; mas não mais do que isso. Winnicot segue na sua ampliação do conceito de Freud sobre as Pulsões, Lygia rumo ao desconhecido.

Na década de 80, psicanalistas próximos a Lygia viam a Estruturação do self como uma espécie de “pre-psicanálise”, pois não abordava a dimensão histórica do sujeito, onde a psicanálise se insere. Encaminhavam clientes à Lygia para um “desbloqueio” quando o processo psicanalítico não avançava. A credibilidade do trabalho de Lygia é que sustentava esses encaminhamentos. Lygia Clark acreditava que os Objetos relacionais eram bem mais. Em uma sala em seu apartamento, que chama carinhosamente de “consultório”, ousa assumir uma postura própria definindo a Estruturação do self como um “processo terapêutico em si”. Quando, mais tarde, tivemos acesso ao seu “diário clínico” é que nos demos conta de sua coragem/ousadia em mergulhar na expressão dos graves conflitos de uma geração que buscava uma vida densa e estável diante das bruscas transformações dos valores sociais que caracterizavam a época.

Sentindo-se isolada, Lygia tomou-me como seu interlocutor, convidando-me para trabalhar com a Estruturação do self. Logo descobriria que os Objetos relacionais compõem uma linguagem dirigida ao corpo e só a ele, e que poderia, dentro dos parâmetros dessa linguagem, criar outros objetos; propor outros rituais para o corpo; buscar outro “público” – andar por caminhos que Lygia desconhecia. A obra de Lygia não é apenas para ser reproduzida e sim para ser ampliada.

Na ocasião, alguns Objetos relacionais, espalhados em meu ateliê chamaram a atenção de um jovem em grave vivência esquizofrênica catatônica. Ampliando seu interesse com um toque lúdico sobre seu corpo, pude perceber a potencialidade do objeto no diálogo com pessoas cujo corpo foi gravemente atingido. Estendi meu trabalho para mais além de uma clínica para crises existenciais da classe média, chegando aos hospitais psiquiátricos públicos nos bairros pobres/periféricos do Rio de Janeiro. A Estruturação do self tornou-se ate um instrumento de luta política ideológica contra a existência desses insanos guetos com seus tratamentos desumanos. Foi um dos instrumentos que me serviram de guia para entrar e transformar aqueles insanos lugares.

Fascinou-me, desde o início do meu trabalho, a maneira com que pessoas com grave desestruturação do corpo e da linguagem tomam os Objetos criado por Lygia como algo íntimo e familiar; parecem não distingui-lo dos objetos da vida cotidiana. Parecem ter o corpo aberto a tudo (cheio e vazio de tudo), capaz de perceber os movimentos imperceptíveis do mundo. Ouso dizer que foram os “loucos” o público que mais soube compreender Lygia Clark. E o que mais os fascina no Objeto relacional é sua indecifrável fluidez e extensibilidade que o faz, de imediato, abrir-se ao outro. É capaz de alcançar vivências quase inacessíveis/imprecisas e nelas ganhar qualquer significado. Percebido e trabalhado pelo corpo, o Objeto relacional transita por entre vivências menos organizadas linguisticamente e construções de intensidade simbólica.

Um dos recursos que acho mais precisos para compreensão de Estruturação do self é estudá-lo a partir do percurso de Lygia Clark. Todavia, com uma singularidade: invertendo a direção cronológica. Desconstruir uma experiência da Estruturação do self para descobrir vestígios de propostas anteriores e os conceitos a elas associados. Só depois estabelecer diálogos com predileções teóricas.

Clara tinha vinte e dois anos quando procurou-me. Um amigo muito próximo dela, com quem mantinha uma paixão secreta, fora morto, provavelmente, por forças repressivas da ditadura militar. E ela, por não suportar a violência de sua morte e ausência da clareza dos fatos, acabou “enlouquecendo”.

Iniciei, em Clara, o toque dos Objetos relacionais em um momento em que seu intenso sofrimento acomodara-se um pouco. No início, o relato de cortes no corpo era comum em Clara. Eram cortes ou buracos, principalmente no tórax, onde os Objetos funcionavam como “ataduras de um curativo”.

Certo dia, no entanto, Clara deu um grito de desespero pedindo-me para encerrar. Disse-me que os Objetos que coloquei sobre seu corpo tinham sumido e isso lhe causou um vazio-vertigem insuportável. Isso tornou a acontecer diversas vezes, mas já não a incomodava, parecia agora uma condição natural. Algumas vezes procurou perceber a minha presença na sala em lugar do Objeto, para que a agonia cessasse. Para minha surpresa, essa “condição natural” inverteu-se. Agora os Objetos que sumiam em contato com seu corpo tornavam a aparecer em momentos indeterminados, trazendo com eles o vazio-vertigem angustioso. A fusão corpo/objeto/ambiente parecia, paradoxalmente, reconstruir-lhe o “eu”.

A descrição de corte/buracos no corpo; da ausência e presença do Objeto e sua relação com a agonia angustiosa compõem os conflitos da transição do Objeto para uma nova dialética com o corpo, onde apagam-se as fronteiras que vivemos como “reais”: sujeito-objeto, interior-exterior, tempo-espaço. Lygia, para explicar essa nova condição do Objeto cria o mito da Baba Antropofágica: uma saliva que escorre ininterrupta de nossa boca nos ligando ao mundo. A baba é um fio de vida que se expande, quebrá-la é o despedaçar de nosso próprio corpo – o sofrimento psíquico como metáfora da morte. O processo de Estruturação do self é reviver nossa permanente busca por reconstruí-la. O que se delineia como “eu aparece como uma possibilidade que desliza nas bordas do individual e do coletivo sem se deixar definir por nenhuma dessas categorias – a vida como expansão de todos os começos.2 Lygia Clark, ao abandonar a nomenclatura psicanalítica, substitui a ausência de uma teoria pelas anotações minuciosas de todas as experiências e busca um sentido para a Estruturação do self através de construções literárias de densidade poética instigante. Assim, preserva o Objeto em sua origem e amplia, para a Estruturação do self, a possibilidade de novas experiências e novas afinidades teóricas.

A particular sensorialidade dos Objetos, que requer trabalho do corpo para percebe-lo/representá-lo traz para ele uma autonomia – organicidade, muito diferente daquela problematizado pelos artistas da época. A fluidez e extensibilidade, expressão dessa autonomia, que faz com que ele ganhe qualquer significado em nossa experiencia, mesmo por entre os sentimentos mais incompletos/imperceptíveis à consciência, é que o define e o torna difícil de ser capturado e diluído dentro do discurso teórico – sua captura será sempre parcial. Na tensão de fronteiras, os Objetos estão sempre para mais além de onde buscamos encontrá-los, aproximando-se muito mais dos paradoxos da arte. No entanto, Lygia, em seu tempo, parecer ser contemporânea de recentes estudos sobre um mundo de trocas imperceptíveis que ha entre nós que envolvem corpo, afetos, percepção do mundo e a construção do self. 3 Ao tentar superar a relação sujeito/objeto, Lygia abre o corpo para um espaço imaginário interior onde a metafísica de sua obra acontece. Nele, todos os processos que vão da percepção do mundo à criação de sentido e significado ganha, agora, uma outra leitura, principalmente pela proximidade entre a materialidade e os afetos. Isto aproxima Lygia de estudos contemporâneos sobre a percepção e sobre a memória vivida vindos da neurociência; da psicologia que emerge do pensamento sobre a comunicação de inconscientes e o corpo em José Gil; dos conceitos de transferência e escuta do corpo no psicanalista Pierre Fedida, etc.

“Eles vêem tudo simultaneamente por dentro e por fora”: com essa observação sobre frequentadores dos ateliês do Museu de Imagens do Inconsciente, Mário Pedrosa descreve a excitabilidade sensorial de esquizofrênicos, que os torna capaz de perceber a fisionomia oculta das formas.4 O exterior (o objeto percebido) num contínuo indivisível une-se ao interior – objeto construído pelas nossas emoções e sentimentos. A expressividade da dinâmica formal dos objetos define nossas emoções tanto quanto… (vice versa). Esse mundo fisionômico, para Mário, é o acontecimento que se dá no fenômeno artístico, que não difere da percepção de um objeto qualquer quando, em algumas ocasiões, nos libertamos das urgências da vida prática cotidiana. Mário traça, assim, a “Fita de Moebius” que Lygia Clark, mais tarde, iria cortar: todo objeto de arte é um Objeto relacional.

Deixemos a visualidade e voltemos ao mundo orgânico aracnídeo de Lygia Clark. As vivências de Clara com o Objeto relacional, em seu jogo de proximidade/ausência, distância/presença, cabe inteira, por semelhança, embora em outro plano da percepção, nessa frase de Mário Pedrosa. Clara percebe o Objeto, simultaneamente, por dentro e por fora. Seu corpo, capaz de perceber as mais ínfimas vibrações do mundo, abre-se para um objeto desnudo de qualquer significado, mesmo que para isso elimine qualquer vestígio de visualidade – tal como a palavra foi banida na arte das formas e das formações. O objeto reduzido a feixes de sensações toca um corpo/vivência impreciso, “apagado” pelo sofrimento. O objeto reconstrói o corpo que reconstrói o objeto num contínuo indivisível entre materialidade e afetos. Essa expansão aracnídea (baba antropofágica), cuja subjetividade se dá num interior imaginário do corpo é de uma força criativa/poética surpreendente. Se, como nos leva a pensar Mário Pedrosa, perceber é uma ação criativa sobre a realidade (perceber é criar), o toque dos Objetos relacionais traz a criatividade para nossa experiência mais arcaica de construção de nós mesmos diante de vazios na alma e sofrimento. Uma experiência estruturante de expansão de começos, que é terapêutica por ser arte.

A obra de Lygia Clark é seu próprio percurso e nele cada proposta contém a origem e seu futuro. A Estruturação do self é a síntese de todo esse percurso. E se ela se aproxima, em sua época, de saberes futuros, neles se chega a sua origem mais remota.

Este texto faz parte de um livro em processo reunindo reflexões e narrativas sobre trinta anos de prática clínica e artística.

 

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Lula Wanderley
Artista, nascido em Pernambuco, vive no Rio desde 1976. Em Recife, colaborou como artista gráfico em jornais e revistas e fez experiências com poesia visual. Simultaneamente, estudou medicina formando-se pela Universidade Federal de Pernambuco. No Rio de Janeiro, colaborou com Nise da Silveira na Casa das Palmeiras, e com ela e Mario Pedrosa realizou o projeto de reformulação do Museu de Imagens do Inconsciente, patrocinado pela FINEP. Participou de mostras e realizou exposições individuais, entre elas A estratégia angular de um poema (CMAHO, curadoria Izabela Pucu, 2016). Colaborou também com Lygia Clark na pesquisa sobre arte/corpo/psiquismo. Criou o Espaço Aberto ao Tempo, do qual é coordenador técnico, onde desenvolve, há 25 anos, trabalho com psicóticos, tendo como meta principal a busca de uma clínica experimental e poética.
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1 Trecho do poema de João Cabral de Mello “O vento no Canavial”. Publicado no livro Duas águas: poemas reunidos, 1956. Poema integrante da série Pasiagens com Figuras. In: MELO NETO, João Cabal de. Obra completa. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, 150-151.

2 Com o mito da Baba Antropofágica, Lygia se coloca em uma posição aracnídea: tecemos uma rede orgânica que nos liga ao mundo. Isto a aproxima do poeta e educador Fernand Deligny e sua proposição aracnídeas (para fora da linguagem) de construções coletivas em seu trabalho com autistas. Aqueles com predileções teóricas que os deixam próximos de Deligny a de acharem outros pontos em comuns, como os psicanalistas acharam semelhanças com Winnicott. É interessante que antes, em carta para Mário Pedrosa, Lygia se colocava como um escorpião: animal, também, de construções dilacerantemente orgânicas.

3 O catalogo da exposição, Lygia Clark: Arquivo para uma Obra-Acontecimento: Projeto de ativação da memória corporal de uma trajetória artística e seu contexto, organizado por Suely Rolnik publicado por SESC em 2011 é primoroso em mostrar esse paralelo.

4 No final da década de setenta, pedi a Mário Pedrosa que me sugerisse alguns artigos que me fizessem compreender Lygia Clark. Mário emprestou-me sua tese de doutorado dactilografada e corrigida a mão. Nesta época, sublinhei duas frases para tentar compreendê-las em outra ocasião. Uma delas era “Eles percebem o objeto por dentro e por fora”. [N.E. A frase se encontra no estudo do Pedrosa “Forma e personalidade” no PEDROSA, Mário. Arte, forma e personalidade: 3 estudos. São Paulo: EdUSP, 1979] Mais tarde, encontrei novamente essa frase em um belo artigo de Kaira Cabañas sobre Mário. [N.E. “Arte, loucura e Gestalt no Rio de Janeiro” [disponível online: http://www.mac.usp.br/mac/conteudo/academico/publicacoes/anais/labex_br_fr/pdfs/6_Labex_kairacabanas.pdf]. Esse artigo de Kaira foi o que me motivou escrever esse texto.