Eleonora Fabião. azul azul azul e azul, 2016. Foto: Jaime Acioli

Produzir estranheza é cuidar: azul azul azul e azul

Eleonora Fabião

Prólogo:

Em outubro de 2017, tive o prazer de participar, a convite de Izabela Pucu e Jessica Gogan, da mesa “Como Instituir o Cuidado: por outras concepções de arte, artista e instituição”, parte do evento Cuidado como Método #2. Éramos 3 artistas compondo a mesa no auditório do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica – Millena Lízia, Geo Britto e eu –, com mediação de Cristina Ribas e Rafael Zacca. Nosso objetivo era discutir, ou melhor, era cuidar do tema – partilhar nossas experiências, reflexões, e então conversarmos todos sobre modos de fazer e de pensar arte hoje, modos de ser artista no Brasil contemporâneo, modos de produção e de relação com instituições no contexto atual. Minha opção foi começar apresentando dois trabalhos performados no ano anterior na cidade do Rio de Janeiro – ações concebidas por mim e realizadas por grupos de colaboradores em parceria com duas instituições distintas. Um chama-se MOVIMENTO HO e aconteceu no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica em novembro de 2016 (curadoria de Izabela Pucu e Tania Rivera).1 O outro foi realizado no Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea em junho de 2016 e chama-se azul azul azul e azul (parte da exposição “Das virgens em cardumes e a cor das auras”, curadoria de Daniela Labra). Seguindo a sugestão das editoras desta publicação, apresento a seguir o ensaio que escrevi para o catálogo da exposição “Das virgens em cardumes e a cor das auras” sobre o processo de criação e realização de azul azul azul e azul, texto escrito logo depois do acontecimento.2 Pensamos que por meio dessa narrativa, que no contato com a obra de Arthur Bispo do Rosário, será possível acessar algumas questões debatidas naquela mesa – questões referentes a modos de relação, criação e produção artística e institucional. Naquele dia, lembro bem, concluí minha fala dizendo: “É assim que a performance cuida: estranhando o ‘caminhar natural das coisas’. Produzir estranheza é cuidar. Estranhar, aqui, é método”.

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Poucas coisas podem ser mais significativas para mim do que participar de uma exposição que propõe diálogo direto com a obra de Arthur Bispo do Rosário.

Frequentei assiduamente a Colônia Juliano Moreira – hoje Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira – em meados dos anos 90, oferecendo oficinas de práticas corporais para internos em alguns dos núcleos hospitalares. Cheguei como voluntária depois de conhecer a obra numa exposição organizada por Frederico Morais no Parque Lage em 1989, ano da morte do Bispo. Eu era novíssima e o encontro com o “arquivo de tudo o que existe no mundo”3 me tocou profundamente, ou ainda, me formou. Cheguei na Colônia alguns anos depois atraída pelas preciosidades do Bispo – como bicho de luz puxada pelo brilho. Queria conhecer a comunidade, retribuir de alguma forma a lufada de vida que experimentei naquele primeiro contato, continuar aprendendo. Queria vivenciar os espaços que Bispo abriu e habitou. Espaço de criador – que não se diz artista porque não se enxerga artista. De criador de mundo – que não apenas recicla materiais mas transubstancia matérias e recria circunstâncias. Espaço de performador – alguém que trabalha com a artisticidade, a politicidade e a corporeidade para além de quaisquer sentidos pré-estabelecidos de arte, política e corpo. O trabalho de um fazedor de sentido e de espaço.

Mais tarde, já no começo dos anos 2000, como sempre precisando dar rumo ao impacto Bispo, à impregnação Bispo, à vibração Bispo, comecei a escrever sobre o criador e sua obra – precisei, para citar um de seus bordados, das “PALAVRAS . ESCRITA”.4 Escrevi até na cela dele. Ia pra lá com meus cadernos e computador, sentava no chão e passava o dia. Muito calor, barulho de inseto, cheiro de verde, azul e amarelo. Parte substantiva da minha tese de doutorado é sobre o arquivo de tudo o que existe no mundo e a energética do paradoxo.5 Na sequência, publiquei textos sobre Bispo e sua obra (apenas em inglês, engraçado isso). Escrevi porque entendi que essa seria uma forma de pactuar, de homenagear e de cuidar – de divulgar o feito, seus efeitos e feitiços pelo mundo afora; alardear que esse ex-marinheiro, ex-boxer, ex-funcionário da Light, afrodescendente, usuário de saúde mental, internado por cerca de 50 anos, tão pobre e tão rico, tão delirante e tão lúcido, fez o que fez, fez o impossível, transformou lixo fascista em tesouro poético-político, injetou energia estética num corpo coletivo brutalmente silenciado. Escrevi para espalhar sua voz, sua realidade, seu olho, sua gravidade, sua graça, sua força de vida. Tão impressionante e tamanha força de vida. Escrevi chamando atenção para o fato de que este acervo radicalmente precário precisa de cuidados permanentes.

E hoje, passados 27 anos desde a primeira vez que vi o corpo da obra, não foram oficinas, escritos, nem falas públicas que me aproximaram do Bispo e seu trabalho. Foi um convite da curadora Daniela Labra para participar da exposição “Das virgens em cardumes e a cor das auras”, a quem agradeço imensamente. A partir deste convite, criei azul azul azul e azul, uma série de 5 ações coletivas concebidas para as ruas da Colônia Juliano Moreira. O projeto contou, além de materiais como varas de bambu, fitas de acetato brilhantes, corda de sisal, lâmpadas de tungstênio, bateria de caminhão e cabos elétricos, com 3 obras muito importantes do inventário de Bispo do Rosário em horários de baixa luminosidade: o Manto da Apresentação, o Jaquetão EU VIM e o barco Vela Roxa. Com todos os devidos cuidados, estes trabalhos foram levados para fora do hospital, do museu, da galeria; foram levados em andores e cobertos com cúpulas de acrílico para as ruas da Colônia pela primeira vez desde a morte do Bispo. Depois de participar de exposições em diversas cidades do Brasil, em Paris, Buenos Aires, Nova Iorque, Veneza e tantos outros lugares, no dia 4 de junho de 2016, dia de abertura da exposição, dia de lua nova em que o sol nasceu às 6:43h e morreu às 17:27h na cidade do Rio de Janeiro, esses trabalhos foram reencontrar sua vizinhança. As 5 ações, que descreverei adiante, aconteceram ao longo do dia de 3 em 3 horas – às 6:00h, 9:00h, 12:00h, 15:00h e 18:00h.

azul azul azul e azul foi realizada no ano das Olimpíadas do Rio de Janeiro. Ano marcado por um golpe tremendo contra a democracia brasileira que afastou a presidente Dilma Rousseff, democraticamente eleita com 51,64% dos votos, do exercício de seu cargo. Fato este que avoluma uma onda crescente de reacionarismo não apenas no Brasil mas pelo mundo afora. Isso sem falar no avanço geral da crise ambiental do qual a Colônia Juliano Moreira não escapou. O desmatamento necessário para a construção da via Transolímpica6 causou danos ecológicos irreparáveis. Causou também graves prejuízos à cultura e população locais pois a rodovia cortou o bairro separando justamente o Museu Bispo do Rosário do Núcleo Histórico da Colônia e do Polo Experimental7 – centro de convivência, educação e cultura para os usuários da saúde mental da Colônia administrado pelo museu. Pois neste contexto abusivo é urgente aliançar com movimentos capazes de transformar biopoder em biopotência, de transformar poder sobre a vida em potência de vida. Repito: Arthur Bispo do Rosário transformou lixo fascista em tesouro poético-político. Ao horror vacui e aos terrores manicomiais respondeu com arquivismo e estética. Sua obra foi escudo e remédio. Hoje, desde sempre e mais do que nunca, é tempo de engajar com sua potência transformativa. Bispo, o fanático fantástico, o lúcido lunático, alguém que num esforço sobre-humano foi capaz de resistir e modificar o mundo necropolítico em que viveu. Alguém que é capaz de inspirar e instigar tanto tantos de nós a resistir e a transformar. Oxalá sem o sofrimento da compulsão e a opressão da obsessão. Mas, se preciso for, enfrentando quaisquer dores.

De repente me deu vontade de chorar. Ontem uma amiga me contou que ela e o filho andam conversando sobre quantos tipos de choro existem. Quais tipos de choro você já chorou? Esse mesmo menino perguntou: “mamãe, quando a gente morre, a gente morre muito, não é?” “Sim meu filho, a gente morre muito, tudo de uma vez.” Sobre a sua morte Bispo disse: “Morrerei porque não haverá mais nada para ser vivido.”8 Sobre a loucura explicou: “Os doentes são vivos guiados por um espírito morto. […] Jesus filho é o pai que me guia.”9 E, famosamente, só deixou entrar em sua cela aqueles que responderam corretamente à pergunta: “Qual a cor da minha aura?” Se não dissessem “azul,” não entravam. Azul. Azul como os fios desfiados de uniformes e lençóis do hospital que utilizou para fazer seus bordados. Azul como os 7 anjos que viu no dia de sua aparição na casa da Família Leone em Botafogo, bairro do Rio de Janeiro, onde trabalhava como caseiro. Conforme escrito com agulha e linha num estandarte:

22 DEZEMBRO 1938 MEIA NOITE ACOMPANHADO POR 7 ANJOS EM NUVES ESPECIAS FORMA ESTEIRA MIM DEIXARAM NA CASA NOS FUNDO MURRADO RUA SÃO CLEMENTE – 301 – BOTAFOG ENTRE AS RUAS DAS PALMEIRAS E MATRIZ EU COM LANÇA NAS MÃO NESTA NUVES ESPIRITO MALISIMO NÃO PENETRARA.10

A mesma informação consta no Jaquetão EU VIM. “EU VIM 22 12 1938 MEIA NOITE” diz a sentença escrita verticalmente, ao longo da abertura do casaco, intercalada pelo bordado de uma planta que floresce estrelas – não coincidentemente, 7 estrelas. Outra sentença, esta escrita horizontalmente ao longo da bainha na parte frontal do jaquetão, diz: “CLEMENTE 301 BOTAGOFO NOS FUNDOS MURRADO.” Assim como percebo, esta vestimenta representa a coordenada espaço-temporal do acontecimento-aparição – o eixo horizontal é espacial, o eixo temporal é vertical. Ou ainda, o jaquetão-coordenada é a atualização representacional de um acontecimento a ser permanentemente lembrado e incorporado. Naquele dia, hora, local, Bispo do Rosário VEIO acompanhado por 7 anjos. Arthur Bispo do Rosário chegou onde estava. E, a partir dali, reivindicou para si o próprio nascimento. Como respondeu inúmeras vezes quando questionado sobre sua origem, “Um dia eu simplesmente apareci.”11 Bispo simplesmente apareceu naquela noite azul de dezembro. Bispo-aparição. “Aparição” – saimento, manifestação, revelação, assombração – é pois um nexo, um modo, uma corrente, uma eletricidade no trabalho-corpo-vida Bispo do Rosário. O inventário vibrabrilha aparição.

Desde a concepção de azul azul azul e azul, era claro para mim que o trabalho só poderia ser realizado se compreendido como uma co-realização com o Museu. As conversas com o curador da coleção, Ricardo Resende, e com a museóloga, Ana Carvalho, foram inúmeras e cruciais. De saída concordamos que o aparato museológico era parte da performance; sem o equipamento museológico os trabalhos não poderiam cruzar a porta da reserva técnica. Todas as decisões foram tomadas minuciosa e dialogicamente. Calculei o horário das ações de acordo com a luminosidade, defini cada trajeto e sua duração, estudei como carregar os andores. A museóloga determinou os materiais dos andores, o acondicionamento das obras e checou os trajetos que propus, cada detalhe. Cúpulas de acrílico já existentes no museu foram recicladas e os andores foram projetados por Jabal EL Murbach e construídos por ele e Aline Baiana, contribuição fundamental. Ao final de cada ação, de acordo com o desenho curatorial, as obras eram posicionadas no espaço expositivo. E permaneceram expostas nos andores, fora dos tradicionais pedestais, bases ou vitrines, ao longo de toda a exposição.

Da mesma maneira, as conversas e negociações com os produtores – Jocelino Pessoa, gerente executivo, e Bernardo Marques, coordenador de produção – foram inúmeras e cruciais. Dia após dia, a cada visita que fiz ao museu, o projeto foi ganhando corpo e a equipe aderindo a ideia incomum de abrir uma exposição às 5:30h da manhã. Organizaram inclusive transporte para trazer visitantes na véspera. O ônibus saiu do Museu de Arte Moderna no Centro do Rio na noite de sexta-feira, e a produção disponibilizou salas, quartos e banheiros do Polo Experimental para que todos passássemos a noite já na Colônia, equipe do projeto e visitantes da exposição. Para o jantar, ofereceram um belo panelão de cachorro-quente e também o café da manhã. Minha compreensão: se o trabalho do Bispo não transformar profundamente modos de criar, de produzir, de exibir, de espectar, de agir institucionalmente, se este trabalho não transformar modos de relação humana e de relação com toda sorte de matérias objetivas e subjetivas, o que mais o fará? Uma lógica extra-ordinária precisava ser, o mínimo que fosse, vivenciada. E foi.

Além do trabalho com as equipes da exposição e do museu, tive o maior dos prazeres em formar um grupo de 18 colaboradores absolutamente extraordinário. Formamos um coração. Mariah Valeiras trabalhou como assistente desde um mês antes, André Lepecki foi consultor do projeto como dramaturgista experiente que é, e Elisa Peixoto testou conosco materiais para conhecermos possibilidades. Jaime Acioli fotografou e Fernando Salis filmou as ações. Na quarta-feira anterior ao sábado de abertura da exposição, o grupo se encontrou na Colônia Juliano Moreira para conhecer os caminhos e os materiais. Nós éramos performers, dançarinos, escritores, antropólogos, psicólogos, fotógrafos, artistas de teatro, dança e cinema, estudantes e professores – pessoas com relações muito diferentes com a obra do Bispo, mas todos muito próximos de mim. Nós éramos Adriana Schneider, André Lepecki, André Telles, Dieymes Pechincha, Dominique Arantes, Eleonora Fabião, Elilson, Elisa Peixoto, Fernando Salis, Gabriel Martins, Gunnar Borges, Jaime Acioli, Luar Maria, Lucas Canavarro, Mariah Valeiras, Miro Spinelli, Rubia Rodrigues, Thiago Florêncio e Viniciús Arneiro. Alguns já se conheciam, outros não. As idades variavam entre os vintes e os cinquentas. Nós éramos gays, lésbicas, trans, bis, cis, bixas, negros, amarelos, brancos, pardos. Nós éramos azul, azul, azul e azul. Um senso extremo de grupalidade se desenvolveu. Sabíamos nitidamente o que estávamos fazendo ali. Queríamos muito estar ali. Mas é preciso dizer, ter Arthur Bispo do Rosário e seu trabalho como referência é brutal. E carregar as peças nos ombros, em estruturas de cerca de 85 quilos, é, digamos, uma maneira única de conexão.

Muito objetivamente a série consistiu em 5 caminhadas por diferentes trajetos, em diferentes horários e envolvendo diferentes materiais. Visitantes da exposição, moradores do bairro e passantes eram convidados a seguir conosco. Panfletos com os horários e a descrição dos programas das ações eram entregues aos que chegavam no museu ao longo do dia. Quem caminhava conosco era também convidado a trabalhar com os materiais – com os bambus ou a corda, porém não com os andores que exigiam treinamento coreográfico específico e cuidados especiais. Todos movemos e fomos movidos de acordo com a rítmica de cada ação e de acordo com as variações rítmicas ao longo do dia. Além dos colaboradores, algumas pessoas participaram de todas as 5 ações. Muita gente participou de ao menos 3. O ponto de partida e de retorno era sempre o mesmo: Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea. Saguão e jardim do museu tornaram-se uma espécie de morada para nós. Tão importante quanto os momentos das caminhadas foi o tempo entre elas, tudo o que foi compartilhado ali. As ações são mesmo assim, elas abrem um campo de troca e cumplicidade que extrapola a realização dos programas propriamente ditos. Elas são uma espécie de chão, de céu e horizonte.

azul 6

6:00h, alvorada. Com o Manto da Apresentação de Arthur Bispo do Rosário sobre um andor e sob uma cúpula, caminhar ao redor do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea. Fazer um anel em torno do prédio. Na volta, posicionar o Manto no espaço expositivo.


Fig 1. Eleonora Fabião. “azul 6 –” azul azul azul e azul, 2016. Foto: Jaime Acioli

azul 9

9:00h. Com a embarcação Vela Roxa de Arthur Bispo do Rosário sombreada com tecido azul e sob uma cúpula num andor, cruzar e ligar dois portais: a entrada da Colônia Juliano Moreira e a entrada da Escola Municipal Juliano Moreira. Fazer frota, fazer cardume, fazer mar. Na volta, posicionar a embarcação no espaço expositivo.


Fig 2. Eleonora Fabião. “azul 9 –” azul azul azul e azul, 2016. Foto: Jaime Acioli

azul 12

12:00h, sol no meio do céu. Uma corda de sisal de 30 metros foi recoberta com diversos azuis – foi customizada duas semanas antes na Praça do Anil, Jacarepaguá, durante uma manifestação no Dia Nacional da Luta Antimanicomial com a ajuda de participantes do evento (médicos, enfermeiros, usuários, familiares; e também passantes, moradores de rua, crianças que brincavam na praça e seus pais). Na avenida principal da Colônia Juliano Moreira e nas obras da via Transolímpica caminhar com a corda customizada sempre tensionada. Não deixar a corda tocar no chão. Não deixar o chão tocar na corda. Formar geometrias de bandos de aves. Na volta, posicionar a corda no espaço expositivo.


Fig 3. Eleonora Fabião. “azul 12 –” azul azul azul e azul, 2016. Foto: Jaime Acioli

azul 15

15:00h. 7 varas de bambu de 3,4 metros de altura, 12 metros de linha de algodão e dezenas e dezenas de tiras de fita metaloide azuis. As tiras estão amarradas como rabiola de pipa na linha de algodão que, por sua vez, conecta os bambus como um varal. Caminhar com os azuis desde o Museu até o Núcleo Ulisses Viana onde está localizada a cela de Arthur Bispo do Rosário. Circundar o muro do local. Parar em frente ao portão de entrada e deixar a franja cintilar, reluzir, ressoar. Na volta, posicionar a composição no espaço expositivo.


Fig 4. Eleonora Fabião. “azul 15” – azul azul azul e azul, 2016. Foto: Jaime Acioli

azul 18

18:00h, poente. Caminhar do Museu até o Núcleo Histórico da Colônia Juliano Moreira. O caminho é iluminado por 7 lâmpadas de tungstênio em 7 diferentes tons de azul, atadas em 7 varas de bambu de 3,4 metros cada, e ligadas por 45 metros de fio a um reversor que, por sua vez, está conectado numa bateria de caminhão puxada num carrinho. No meio do centro do Núcleo Histórico o Jaquetão EU VIM está à espera, suspenso num andor e protegido sob uma cúpula. Caminharmos todos juntos de volta para o Museu. O caminho é iluminado por 7 anjos azuis.


Fig 5. Eleonora Fabião. “azul 18 –” azul azul azul e azul, 2016. Foto: Jaime Acioli

Assim como compreendo, azul azul azul e azul faz parte do infindável processo de aparição de Arthur Bispo do Rosário. Ver aquelas formas de vida nas ruas da Colônia, tão pesadas e tão flutuantes, visíveis de uma maneira como nunca haviam sido vistas, atraindo novas matérias, atraindo tantas pessoas tão múltiplas, é parte desse movimento-aparição, é parte da correnteza aparicional Bispo do Rosário. Todas as vezes que adentrávamos o saguão do museu depois das caminhadas e pousávamos os andores no chão, formavam-se círculos de gente em torno das peças e os aplausos eram intermináveis. O prédio era todo ocupado por aquela massa sonora. Todos vibrando, tudo vibrava. Bispo-vibração-aparição. Novas maneiras de ver e de dar a ver esta obra radicalmente viva sempre continuarão aparecendo. Há vozes no arquivo e o chamado é ensurdecedor. Um dia ele simplesmente apareceu.

 

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Eleonora Fabião
Eleonora Fabião é performer e teórica da performance. Realiza ações em ruas, palestras, workshops e publica internacionalmente. Em 2011 recebeu o Prêmio Funarte Artes na Rua e em 2014 o apoio do Programa Rumos Itaú Cultural que resultou na publicação do livro AÇÕES/ACTIONS (Rio de Janeiro: Tamanduá Arte, 2015). É professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro – Graduação em Direção Teatral e Pós-graduação em Artes da Cena onde coordena a linha de pesquisa em experimentação artística. Doutora e mestre em Estudos da Performance (New York University) e mestre em História Social da Cultura (PUC-RJ). Pós-doutorado na New York University.
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1Sobre o MOVIMENTO HO ver: “Lámmame texto, solamente texto” In: Efímera Revista Vol. 8, Núm. 9 (2017). Link: http://www.efimerarevista.es/efimerarevista/index.php/efimera/article/view/65/96 Ou: “Call me text, just text” In: Studies in Gender and Sexuality Vol.19, Núm. 1, Taylor & Francis (2018).

2LABRA, Daniela (org.). Das virgens em cardumes e a cor das auras (São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017).

3Este é o título de um texto que escrevi sobre o trabalho de Arthur Bispo do Rosário focando, dentre outras ideias, na noção de “coisa” e em teorias dos novos materialismos. Ver: FABIÃO, Eleonora. “The Archive of Everything that Exists in the World” In: Infinite Record: Archive, Memory, Performance (eds.) Karmenlara Ely e Maria Magdalena Schwaegermann (New York: Brooklyn Arts Press, 2016).

4 Especificamente sobre este estandarte conhecido como “EU PRECISO DESTAS PALAVRAS . ESCRITA”, ver: FABIÃO, Eleonora. “History and Precariousness: in search of a performative historiography” In: Perform, Repeat, Record: Live Art in History (eds.) Amelia Jones e Adrian Heathfield (Bristol and Chicago: Intellect, 2012).

5 Ver: FABIÃO, Eleonora. Precarios, Precarious, Precarious: Performative Historiography and the Energetics of the Paradox—Arthur Bispo do Rosário’s and Lygia Clark’s Works in Rio de Janeiro (New York: New York University, 2006).

6 [Nota editora N.E.: A avenida TransOlímpica foi criada para ligar dois polos de eventos dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2016. Sua construção causou a derrubada de 200 mil m² de Mata Atlântica nos limites do Parque Estadual da Pedra Branca, segunda maior floresta urbana do mundo. Custou cerca de 270 milhões de dólares e de modo violento e arbitrário dividiu o território da Colônia Juliano Moreira em duas partes. Sob a avenida, hoje, um pequeno túnel é a única ligação direta entre o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea e o Polo Experimental.]

7 [N.E.: Administrado pelo Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, o Polo Experimental de Convivência, Educação e Cultura surge para integrar ações culturais da Colônia. Localizado em um antigo pavilhão hospitalar remodelado, o Polo abriga as atividades da Escola Live de Artes (ELA), a Casa B (residência artística), o Atelier Gaia, o Projeto de Geração de Renda Arte, Horta e CIA e o Programa de Lazer Pedra Branca. Para mais informações: http://museubispodorosario.com/polo-exp/o-polo-experimental.]

8 Arthur Bispo do Rosário citado por Pedro Maciel no artigo “Bispo criou objetos para adoração e abominação” In: Estado de Minas (Minas Gerais, 30/07/1996).

9Excerto de entrevista realizada por Hugo Denizart no filme O prisioneiro da passagem (1980).

10Excerto do estandarte “EU PRECISO DESTAS PALAVRAS . ESCRITA” já mencionado na nota v.

11Arthur Bispo do Rosário citado por Luciana Hidalgo em Arthur Bispo do Rosário: o Senhor do Labirinto (Rio de Janeiro: Rocco, 1996), 35.