Gary fazendo esculturas no Hospital Real de Edimburgo, agosto de 2013. Foto: Claire Barclay

Momentos de troca: Mãos tocando corações

Claire Barclay

Local: Instituto Nise da Silveira, Engenho de Dentro, Rio de Janeiro

Estamos deitados no chão em um círculo, de olhos fechados, de mãos dadas e com os pés se tocando. Sentimos o peso de objetos no peito e, à medida que cada um de nós começa a se dar conta dessa experiência e que esses objetos caem e se acomodam em torno dos nossos corpos, nos perguntamos se são sacos cheios de grãos ou de pó. Ouvimos um ruído farfalhante antes de sentirmos a maciez refrescante de, possivelmente, sacos de polietileno cheios de líquido. Sentimos na pele uma sensação de esticamento num movimento de vaivém conforme os sacos são empurrados e puxados sobre nossos braços, pernas, tronco, mãos e pés. Esses Objetos relacionais 1 – termo chave para Lygia Clark e seus objetos terapêuticos – são movimentados sobre os nossos corpos de acordo com a vontade de outra pessoa, que decide como e quando deixá-los parados em nosso braço desnudo ou em nossa perna vestida. Nossa percepção aguçada daquela pressão refrescante diminui aos poucos conforme nossos sentidos se acostumam à estranheza e o nosso eu consciente deixa de procurar entender a experiência. Objetos estão tocando em corpos, corpos estão tocando em objetos, objetos estão tocando em objetos. Nós estamos nos soltando e permitindo que a vulnerabilidade seja substituída por confiança. Sentimos a conexão física com os objetos materiais e com as pessoas que estamos tocando. Não só na superfície, mas bem lá dentro de nós.

Essa experiência terapêutica, chamada Rosácea, é inspirada no trabalho de Clark, usando seus Objetos relacionais. Foi-nos proposto pela terapeuta Gina Ferreira, em diálogo com seu projeto Arte, Corpo, Sensibilidade, que ela coordena no Museu de Imagens do Inconsciente e que utiliza as práticas relacionais de Clark como parte do tratamento psiquiátrico no Instituto Municipal Nise da Silveira. Temos o privilégio de poder viver essa experiência em primeira mão e nos perguntamos: como um trabalho dessa natureza pode influenciar nosso pensamento a respeito do toque e da ação física como forma de troca e veículo para o cuidado?

Dentro das instituições de cuidado, o “toque” costuma ser sistematicamente compartimentado para servir a propósitos médicos. O contato físico com objetos e pessoas pode ser intimidante ou mesmo perturbador, dependendo dos métodos de apresentação. O toque sensível do cuidado emocional precisa surgir naturalmente onde houver oportunidade. Em geral, os casos mais fortes de cuidado que vivenciamos nesses contextos não são clínicos, mas sim motivados por momentos de amizade e empatia entre indivíduos, quer sejam pacientes, usuários do serviço, membros da equipe, ex-pacientes, artistas ou familiares em visita. Esses casos costumam envolver o toque, o conforto que é ter alguém segurando a sua mão ou colocando o braço sobre seu ombro.

Os artistas podem apresentar outras formas de toque terapêutico por meio do envolvimento criativo em experiências sensoriais e construções participativas. Nós vemos surgir a curiosidade e a expressão pessoal na alegria de moldar uma argila macia maleável, na surpresa de transformar um desenho em uma estampa de tecido, em uma sessão de bordado que relaxa o corpo todo e traz calma e atenção. Ao transformar fisicamente os materiais, estamos explorando seu potencial de provocar respostas sensoriais e emocionais, bem como as relações entre as formas de construção e os métodos de cuidado.

Local: Centro de Cuidado Diurno Cherry Road, Edimburgo, Escócia

Donna está fazendo desenhos com uma caneta fluorescente em um jaleco médico branco que ela está usando. Sou solicitada a vestir o jaleco para que ela possa desenhar nas costas. Seu desenho é expressivo e intuitivo, e Donna fica encantada com essa atividade. Ela segura o meu braço no punho enquanto desenha nele espirais coloridas. A sensação de tê-la desenhando nas minhas costas e no meu braço é terapêutica, como uma massagem, e eu percebo que há uma certa troca acontecendo ali. Eu digo a Donna como aquela sensação é gostosa. Ela sorri um grande sorriso e levanta o polegar, um gesto que ela faz com frequência. O resultado do desenho no jaleco fica impressionante quando iluminado por luz ultravioleta, mas é o processo de explorar e criar em conjunto que, na verdade, é o mais importante.

Laura, artista da Artlink, está projetando luz colorida e transferindo os padrões para tecidos suspensos acima do corpo de Carol, que acompanha as imagens movimentando a cabeça e os olhos. Por conta dos desafios físicos e mentais profundos enfrentados por Carol, ela tem muito pouca habilidade para comunicar seus pensamentos e sentimentos. Laura precisa, portanto, confiar no seu instinto ao trabalhar em circunstâncias incertas assim. As deficiências de Carol mascaram sua inteligência e ela parece ter muita consciência de sua vulnerabilidade e falta de controle sobre diversos aspectos de seus cuidados diários. Laura respeita isso e apresenta com cautela as experiências para Carol. Hoje ela experimenta cantar para Carol enquanto massageia suas mãos e seus pés. O toque físico parece ajudar a tornar acessíveis ideias criativas e as duas ficam interconectadas nessa experiência. Laura percebe a importância de desenvolver uma conexão sincera com Carol ao longo do tempo por meio da observação de suas respostas a diferentes estímulos sensoriais.

As respostas de Carol durante as sessões são muito sutis e somente os responsáveis por cuidar dela são capazes de entender essas reações tão pequenas, mas que às vezes são importantes: o sinal de um sorriso; o movimento dos olhos tentando acompanhar um objeto ou o sorriso de alguém dentro do seu campo de visão; um movimento repentino da mão; um suspiro ou um grito pronunciado.

Esse trabalho não teria nenhum benefício ou significado se não fosse mantido a longo prazo e de forma tão personalizada e sensível. Laura vem trabalhando por muitos anos com pessoas no Cherry Road – um centro público diurno para adultos com autismo e com deficiências cognitivas e de desenvolvimento complexas. 2 As relações com os usuários do serviço são desenvolvidas aos poucos, descobrindo suas personalidades únicas por meio de interações diretas com cada um deles.

Como artistas, nós nos tornamos intencionalmente vulneráveis ao trabalharmos de forma intuitiva em situações imprevisíveis como essas. Fazemos isso para entender melhor os contextos específicos e as necessidades do indivíduo, bem como para desenvolver a confiança. Somos capazes de criar relações não hierárquicas, geralmente experimentando e participando, em vez de apenas nos mantermos no comando. Ao nos tornarmos vulneráveis e driblarmos as estruturas institucionais existentes, os artistas podem criar momentos de empatia e anarquia que permitem que a expressão criativa individual floresça e proporcione formas alternativas de comunicação e de troca.

Como podemos encontrar maneiras de valorizar e falar sobre trocas como essas, que são experimentais e deixam poucos rastros visíveis para os outros, apesar de afetarem de forma profunda e duradoura aqueles que nelas estão envolvidos?

Local: Hospital Psiquiátrico Real de Edimburgo, Escócia


Fig 1. Gary e Claire, Hospital Psiquiátrico Real de Edimburgo, agosto de 2013. Foto: Trevor Cromie

Gary e eu estamos examinando uma série de materiais que levei para aquela ala, incluindo pedaços de madeira, plástico e metal, além de retalhos de tecido, juta e couro. Gary escolhe um pedaço de espuma azul como a aquisição ideal para sua escultura atual. Ele corta com cuidado e prende o material aos outros elementos usando uma lã e um barbante que apertam a espuma e dão a ela um formato semelhante a um corpo. Gary é um jovem com uma lesão cerebral séria que se esforça para manter a coerência da fala e do pensamento. Temos nossa própria forma de comunicação, que usa uma certa linguagem escultural alternativa singular, desenvolvida ao longo de diversas sessões de trabalho em conjunto. Nós nos tornamos capazes de entender o que o outro está pensando em termos do ofício de produzir essas obras de arte. Conforme o objeto se transforma, novas referências são acionadas continuamente na mente de Gary. A escultura é como uma manifestação física do seu processo de pensamento aleatório e entrecortado, mas isso é um ponto positivo dentro do nosso processo criativo. Gary e eu desfrutamos dos caminhos surpreendentes que esse processo possibilita. Há uma liberdade criativa nesse contexto que permite que a habilidade escultural singular de Gary se desenvolva e produza essas formas cativantes e, simultaneamente, figurativas e abstratas. Eu percebo uma afinidade entre os objetos que Gary cria e o meu próprio jeito de fazer escultura, e nós aprendemos um com o outro por meio da colaboração.

Se esse tipo de experiência compartilhada ajuda a criar momentos genuínos de conexão que são valiosos no cuidado de pessoas vulneráveis, como essas abordagens podem influenciar as estruturas institucionais? É importante promover formas de comunicação únicas e alternativas para aprimorar o cuidado individual? Se entendermos a sanidade como autorreconhecimento, momentos como esses podem ajudar pessoas que oferecem e que recebem cuidado a saber mais sobre si mesmas e a celebrar sua própria individualidade?

Local: Colônia Juliano Moreira, Jacarepaguá, Rio de Janeiro

 
Fig 2 e 3. Pedro mostrando seu caderno de desenhos, Ateliê Gaia, outubro de 2017. Foto: Claire Barclay

Pedro está na galeria em frente a uma série numerosa de pinturas abstratas feitas por ele no Ateliê Gaia, um ateliê coletivo composto de artistas residentes que foram internos do antigo sistema manicomial na Colônia Juliano Moreira e que também faz parte do Pólo Experimental 3 – um centro de convivência, educação e cultura para os usuários da saúde mental na Colônia administrado pelo Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea. Esses trabalhos de Pedro exploram listras e linhas que se irradiam, bem como fortes combinações de cores. Ele fala com formalidade sobre elas, descrevendo a experiência da transformação das cores quando elas são colocadas perto de outras cores. Pedro tem curiosidade a respeito disso e gosta de explorar essas interações de cores para entender melhor a dinâmica delas. Ele chama a atenção para elementos que gostaria de alterar e ficamos com uma ideia do que motiva Pedro a continuar produzindo novas versões para incluir à sua série de pinturas. Seus trabalhos são vivos e ativos e ele está animado para compartilhá-los conosco.

Na próxima vez que vemos Pedro, ele está sendo jogado em uma cela de um hospício abandonado por um outro ex-paciente e artista, Arlindo. A performance de Arlindo toca nas experiências traumáticas que ele teve décadas atrás como adolescente e paciente em um hospício, antes da reforma que levou à sua desativação. Essa performance é crua, brutal, inquietante, cômica em alguns momentos e reveladora. Arlindo se movimenta entre nós indo de quarto em quarto, batendo as portas pesadas das celas e se atrapalhando um pouco com as chaves das fechaduras. Alguns espectadores evitam possíveis interações e se esquivam cada vez que ele se aproxima. Cada um de nós reage ao seu trabalho dependendo das nossas próprias referências e reações à performance e ao estímulo do espaço com as janelas gradeadas, superfícies úmidas de concreto e aço frio. Os sons e cheiros do ambiente se misturam com os ecos dos gritos agressivos de Arlindo e murmúrios desesperados dessa interpretação vívida de suas próprias memórias.


Fig 4. Arlindo. Tresformance. Performance, 4 de outubro de 2017. Foto: Claire Barclay

Nós somos afetados de diferentes formas pelos trabalhos desses pacientes e pelo grau de significado que o trabalho tem para eles. Somos tocados pelo cuidado que eles estendem a nós em um contexto singular e pela ânsia que eles têm em comunicar apesar da nossa ingenuidade quanto às suas experiências individuais. Seus trabalhos chegam a nós de uma forma imediata e humana e, naquele momento, transcendem nossas diferenças culturais. Não conseguimos entender por completo, mas apreciamos o convite dessas pessoas para fazermos uma conexão com significado, uma conexão que não se apoiou tanto na conversa, mas principalmente na comunicação sensorial e em formas de tradução. Durante nossa curta estadia no Rio, começamos a desenvolver meios alternativos de comunicação criativa que, em vez de serem baseados em estruturas hierárquicas convencionais, se fundamentam na troca e no aprendizado compartilhado. Apesar de termos visitado pessoas e lugares que enfrentam desafios reais, essa experiência foi inspiradora, encorajadora e nos ajudou a formar nosso próprio pensamento sobre métodos de cuidado.

 

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Claire Barclay
Artista, mora em Glasgow e se formou na Glasgow School of Art em 1990. Trabalha com a Artlink desde 2012 no Royal Edinburgh, hospital onde tem sido uma referência no desenvolvimento de práticas colaborativas com pacientes psiquiátricos. Esse trabalho foi mostrado na exposição ‘Another Kind of Balance’ na Talbot Rice Gallery, Edimburgo, em 2014. Reconhecida por suas obras escultóricas em grande escala, ela exibiu recentemente ‘Yield Point’, no espaço Tramway, em Glasgow. Em 2003, representou a Escócia na Bienal de Veneza. Outras exposições incluem ‘Openwide’, Fruitmarket Gallery, Edinburgh2009. ‘Shadow Spans’, Whitechapel Art Gallery, Londres e comissões recentes para o Festival Internacional de Glasgow, e a Bienal de Gwangju, ambos em 2016.
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1[Nota Editora N.E.: Para mais informações sobre os Objetos relacionais e as práticas artísticas terapêuticas de Lygia Clark, ver o ensaio de Lula Wanderley [http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/5/portfolio/lula-wanderley-ha-no-canavial-oculta-fisionomia-como-em-um-pulsar-do-relogio-ha-possivel-melodia/] e o diálogo entre Gina Ferreira e Ana Vitoria [http://institutomesa.org/revistamesa/edicoes/5/portfolio/ana-vitoria-e-gina-ferreria-a-rosacea-no-encontro-cuidado-como-metodo/] nesta edição.

2 O Centro de Aprendizagem Cherry Road oferece experiências customizadas e personalizadas para dar suporte a adultos com dificuldades de aprendizagem e a adultos com autismo. Antes baseado em um modelo mais tradicional de cuidado, o serviço se reformulou em colaboração com a Artlink, organização líder em artes e assistência a pessoas com deficiências. Isso possibilitou o desenvolvimento por parte do serviço de experiências criativas e enriquecedoras para as pessoas e melhorou significativamente a forma do suporte dado a pessoas com necessidades muito complexas, levando a uma mudança positiva prolongada e contribuindo para a diminuição do uso de serviços de saúde e cuidado.

3 [N.E.] Administrado pelo Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, o Polo Experimental de Convivência, Educação e Cultura, surge para, a partir da convivência, integrar ações culturais da Colônia em um antigo Pavilhão remodelado e transformado que abriga as atividades: da escola livre de artes (ELA); Casa B (Residência artística); Atelier Gaia; o projeto de geração da renda arte, horta e CIA; e o programa de lazer Pedra Branca. Para mais informação: http://museubispodorosario.com/polo-exp/o-polo-experimental ., Ver também o estudo de caso sobre o museu [link] e parte 2 do vídeo Cuidado como método [link]