o fazer existir
João de Albuquerque. O fazer existir, 2014. Programa Arte é Educação da Casa Daros. Foto: João de Albuquerque

O passado como pensamento-forma: Práticas híbridas/zonas limites e arqueologias de contrafluxos do futuro

Jessica Gogan e Luiz Guilherme Vergara

No III Seminário Internacional ARTE! Brasileiros – A Arte Contemporânea no Séc. XXI, realizado em 2014 sob o tema “O que significa ser contemporâneo?”, o curador-chefe da 31ª Bienal de São Paulo, Charles Esche, descreveu o contemporâneo como “vivendo em tempos históricos” e afirmou que “reescrever o senso comum de nossa compreensão histórica é a única maneira pela qual podemos ser contemporâneos”.1 Mesmo uma análise superficial sobre este discurso recorrente pode apontar para a capilaridade do sentido de rever histórias: tudo vem sendo revisitado, repensado e recuperado. Por outro lado, mais de vinte anos atrás, em A educação na cidade, Paulo Freire adotou um tom semelhante quando disse que a melhor maneira de se envolver com o presente é “compreender a história como uma possibilidade”.2 É com a ideia de cuidar dessas “possibilidades” e responsabilidades que esta edição da Revista MESA reúne reflexões e casos históricos e contemporâneos que se baseiam em narrativas críticas inspiradoras como pedras de toque vitais. O subtítulo da edição, “Práticas híbridas e zonas limite”, aguça ainda mais o nosso interesse em explorar formas de engajamentos artísticos indissociáveis das interlocuções sociais, pedagógicas, ativistas, coletivas – que resgata para a arte o seu sentido transgressor de desafio/vida e elite/democrática. É especialmente nesta zona e consciência liminar que a arte assume seu posicionamento mais operativo na crítica cultural, tal como ocorreu nos momentos de virada do século XX e, mais recentemente, nos anos 1960/70.

Propondo um diálogo ou proximidades de consciências com essas histórias e práticas experimentais, reunimos estudos de caso contemporâneos, reflexões, ensaio fotográfico e entrevistas em vídeo para que possam ser “revisitados e relidos”, tanto como parte das dinâmicas em jogo no presente, quanto como contramovimentos: arqueologias de contrafluxos do futuro inacabados.

Contrafluxos, vetores e futuros silenciados

Ao resgatar a performance de Flavio Carvalho como um agente que coloca o seu próprio corpo na contramão da procissão das massas e máquinas sociais instituídas, Edson Sousa, em seu think piece, aponta para a zona fronteiriça – litoral e liminal – do lugar de risco em que se inscreve a arte como “anteparo de nossas certezas”.3 Edson invoca também o reconhecimento do fenômeno utópico como potência de eclosão do sentido linear do tempo, movimento que vai do futuro ao passado, numa correnteza contra a realidade. Ou seja, tanto o passado quanto o futuro são partes de um mesmo pensamento-forma que movimenta as pulsações e emergências dos acontecimentos artísticos e as práticas alternativas sociais.

Esse contrafluxo de futuro ressoa em cada narrativa desta edição. Graciela Carnevale compartilha seu arquivo fotográfico de experiências radicais das ações artísticas e sociopolíticas do Grupo de Vanguarda Artística Argentino e seus projetos Tucumán Arde4 e Ciclo de Arte Experimental, em Buenos Aires e Rosário, em 1968. Ao mesmo tempo, ela indaga criticamente pelo desafio de se manter a vitalidade deste arquivo na condição de “futuros silenciados que reativam essas memórias de luta do passado como vetores que atravessam e recriam experiências ativistas de transformação social”.5 Aqui já se coloca claramente o conceito de arquivo como pensamento-forma de um passado-futuro inacabado.

Redes comunicantes e proximidades de consciência

Nos anos 70, em plena ditadura militar, o artista Rubens Gerchman, como diretor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (1975-1979), reuniu um quadro de talentosos professores e colaboradores “afins com o propósito de des-academizar a escola e transformá-la em laboratório”.6 Como sua filha e diretora do Instituto Rubens Gerchman, Clara Gerchman comenta que o Parque Lage não era “uma escola tradicional no sentido de ensino”, mas “uma ampla rede comunicante”.7 Em 2014, o Instituto Gerchman colaborou com a Casa Daros para apresentar um projeto de exposição sobre essa história e Rubens Gerchman: A demissão no bolso aconteceu de 8 de agosto de 2014 até 8 de fevereiro de 2015. Como parte desta iniciativa Daros realizou vários atividades incluindo um curso experimental destinado a jovens artistas que trabalham com diferentes práticas e linguagens artísticas – Laboratório Contemporâneo: Propostas e descobertas do que é arte (ou pode ser). Os dezessete artistas envolvidos formaram sua própria rede comunicativa de vital des-educação.

Um laboratório de futuros pode ser uma das maneiras de leituras hoje da ressurgência desses contrafluxos de arte e ação social ou como “proximidades de consciência” propostas por Mary Jane Jacob e Kate Zeller.8 O sentido de compromisso com uma população sofrendo sob o peso do capitalismo foi, e ainda é, o solo cultural comum para práticas radicais que John Dewey (1859 – 1952) e Jane Addams (1869 – 1935) inauguraram em suas escolas e instituições na virada do século XX em Chicago e ressoam com o entrelaçamento contemporâneo de arte e ativismo na cidade. Dewey e Addams viram referências históricas para Mary Jane e Kate e seu projeto A prática vivida, compondo um processo rico e multidimensional – exposições, programas, publicações, intervenções – que investiu na potência de futuro (como pensamento-forma em ação) do legado desses dois nas práticas de uma nova geração de artistas em Chicago.

A trajetória de 34 anos do Museo de la Solidaridad Salvador Allende tem sua origem na Operación Verdad, no Chile, logo após o início do governo do presidente Salvador Allende, em 1971. Várias importantes figuras internacionais foram convidadas para observar “o caminho para o socialismo chileno”.9 Claudia Zaldivar, atual diretora, relata essa jornada das idas e vindas da trajetória de resistência, clandestinidade internacional e reinauguração do museu como uma genealogia de esperança e luta. No início do governo de Allende, o museu seria um ponto de convergência dos exílios políticos e gestos de solidariedade internacional. Mario Pedrosa, sem dúvida, teve importante protagonismo na formação de sua coleção a partir de doações de importantes artistas chilenos e internacionais. Ressaltam-se neste caso as sinergias com a carta da Mesa Redonda de Santiago aprovada em 1972 pelo Comitê Internacional dos Museus (ICOM), reconhecendo uma nova museologia ou museologia social voltada para a construção compartilhada de múltiplas narrativas como saberes e patrimônios imateriais inspirada em Paulo Freire (outro brasileiro em exílio no Chile).

Anarquismo e modelos

Na mesma virada de século, enquanto John Dewey e Jane Addams buscavam quebrar modelos tradicionais de escola e instituições sociais, era criada no Rio de Janeiro, em 1904, a Universidade Popular de Ensino Livre. Sergio Cohn recupera as camadas arqueológicas de futuros tão presentes nas crises das instituições de educação, arte e cultura hoje. “É curioso pensar que as mudanças de séculos parecem um período propício para as iniciativas livres na pedagogia no Brasil”, argumenta Cohn.10 Aqui, o autor explora projetos contemporâneos, tais como a Universidade Nômade, que compartilham paralelos ricos com as iniciativas idealistas do início do século por uma prática universitária livre, especificamente em seu desejo de energizar formas horizontais de teoria e experiência, como formas de produção de conhecimento e de tornar a universidade verdadeiramente pública e acessível. Evidenciam-se ressurgimentos contemporâneos de contrafluxos que se manifestam como diversidade ou subversões das práticas e políticas sociais de produção e acesso ao conhecimento. Estes casos registram pulsações e contrafluxos alternativos radicais de educação “livre” para protestos sociais libertários, resgatando formas anacrônicas de anarquismo em comunidades de saberes compartilhados.11

Podemos também reconhecer sinergias de pensamentos-forma nas propostas dos Domingos de Criação no MAM do Rio de Janeiro, em 1971, e O Modelo: Um modelo para uma sociedade qualitativa no Moderna Museet, em Estocolmo, em 1968. Os Domingos transformam o museu para fora, criando acontecimentos participativos nos jardins do MAM. No outro lado do Atlântico, O Modelo fazia eclodir o cubo branco, realizando um playground dentro do museu. O projeto sueco tinha a proposta de provocar debates críticos sobre a criança, modernidade, libertação e reformas sociais, juntamente com o papel ativista da arte e do museu. A energia vital desse momento e também do sentido de uma utopia silenciada ficou evidente nos depoimentos, fotos e lembranças nas entrevistas com Palle Nielsen e Gunila Lundahl. Da mesma forma, o estado liminal entre arte e educação era ricamente presente nos Domingos. Um museu experimental, como diz o organizador Frederico Morais, se coloca de forma crítica, projetado além de suas paredes como “plano-piloto da futura cidade lúdica”.12

O Núcleo Experimental de Educação e Arte do MAM, ativo entre 2009 e 2013, cruzou essas camadas históricas de forma intuitiva e consciente, não para reproduzi-la, mas para reinventá-la no contexto contemporâneo. Não se trata de equiparar com os lendários acontecimentos dominicais. Os projetos DouAções (eventos coletivos com artistas e público), descritos nesta edição por Sabrina Curi, exploram temas e práticas semelhantes cultivando a distância zero entre artistas e público com propostas participativas abertas, o uso do lado de fora. Mara Pereira e Gabriela Gusmão dialogam com o desejo histórico de horizontalidade presente nas arqueologias experimentais do museu e também mostram outros contrafluxos assumindo microssituações críticas, seja de discussões em grupo ou do cuidado afetivo das intervenções de arte colaborativa – uma educação menor e uma empatia por contágio que opera na escala de 1:1.

Em outro contexto sociocultural, The New Model: An Enquiry (O novo modelo: Uma investigação), projeto de pesquisa iniciado por Lars Bang Larsen e Maria Lind em 2011, investiga o legado do projeto lendário de Palle Nielsen de forma mais específica e expansiva, com exposições, seminários e projetos artísticos. Em sua entrevista, Lind sugere aqui que a noção de um modelo é “extremamente importante” como algo que pode tanto documentar quanto projetar futuros, “existe algo a ser testado”.13

Esta edição de MESA é resultado de uma rede de colaborações de gerações, práticas e contrafluxos. Refletem-se aqui muitas proximidades atemporais e transnacionais de consciência.

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1 III Seminário Internacional ARTE! Brasileiros – A Arte Contemporânea no Séc. XXI,  Bienal de São Paulo, 4 de setembro de 2014.

2 Paulo Freire. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1991, p.89.

3 Edson Luiz André de Sousa. “Think piece: I margens: contrafluxos do futuro”. Revista MESA, “Passado como pensamento forma”, nº 4, maio 2015.

4 Para informação sobre Tucman

5 Graciela Carnevale. “Vetores”. Revista MESA, “Passado como pensamento forma”, nº 4, maio 2015.

6 Eugenio Valdés Figueroa, cocurador da exposição Rubens Gerchman: A demissão no bolso e ex-diretor de arte e educação da Casa Daros. Release da exposição

7 Clara Gerchman. “Parque Lage (1975 – 1979) Uma escola de arte experimental e seus desdobramentos contemporâneos”. Revista MESA, “Passado como pensamento forma”, nº 4, maio 2015

8 Mary Jane Jacob. “Histórias vivenciadas em Chicago”. Revista MESA, “Passado como pensamento forma”, nº 4, maio 2015

9 Claudia Zaldivar. “Uma história sem precedentes: Museo de la Solidaridad Salvador Allende”. Revista MESA, “Passado como pensamento forma”, nº 4, maio 2015

10 Sergio Cohn. “Universidades livres”. Revista MESA, “Passado como pensamento forma”, nº 4, maio 2015

11 Ibid. Cohn ressalta a perspectiva mais coletivista do anarquismo, “com forte inspiração de Mikhail Bakunin, que vai defender de forma intransigente a liberdade como um fator social, uma construção coletiva, não como uma característica natural do indivíduo”.

12 Frederico Morais. Artes plásticas: a crise da hora atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975, p. 60-62

13 Maria Lind. Videoentrevista. Revista MESA, “Passado como pensamento forma”, nº 4, maio 2015