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Ilha de Uros, Lago Titicaca. 2005. Foto: Mathias Ripp sob CC BY-AS 2.0

I margens utópicas1: Contrafluxos do futuro

Edson Luiz André de Sousa

…precisamos voltar a arrumar os desertos.”

Manoel Ricardo de Lima2

Por vezes, o futuro se apresenta como uma névoa obscura cobrindo os sonhos com a fuligem do funcionamento da máquina social e as compulsões repetitivas da história. Encobre, assim, uma das categorias mais essenciais da vida: a esperança. Diante deste cenário, “das aglomerações das coisas havidas obstruindo totalmente as categorias do futuro”3, nosso desafio é saber como abrir furos nesse véu do amanhã. Walter Benjamin sublinha que a posição do espectador é constitutiva do campo do olhar, o que significa dizer que o território que constituímos depende da posição em que nos colocamos para desenhá-lo e, evidentemente, dos instrumentos conceituais, históricos, subjetivos, culturais, políticos que temos à mão para o esboço dessa geografia.

Poder ver uma cidade pelos seus avessos inaugura a esperança de que um outro olhar ainda é possível. Esses avessos vão mostrar espécies de espaços banais que segundo Milton Santos4 são os responsáveis por abrir caminho à plenitude da vida: espaços portanto do convívio, da cidadania, da responsabilidade com o que se compartilha no espaço público.

Todo ato criativo é, em última instância, um ato utópico, pois tenta fundar um novo lugar de enunciação e assim recuperar esperanças adormecidas em algum avesso esquecido. Que utopias poderiam recuperar esse espírito contestador em nossos jovens, abrindo assim condições de reinvenção de formas de vida nas cidades?

É por essa razão que Milton Santos, em seu clássico livro A natureza do espaço, é categórico ao dizer que só podemos pensar o espaço como um conjunto indissociável de sistemas de objetos e de sistemas de ações.5 Assim, muitas vezes espaços distintos se apresentam como ilusoriamente homogêneos. É difícil reconhecer isso, pois são muitas as estratégias de camuflar a diferença sob o véu das boas intenções e sob o manto dos conceitos ferozes que devoram com apetite as impurezas que marcam as diferenças.

Assim, chegamos, na ótica de Walter Benjamin, a um novo tempo de pobreza. Hoje, é ainda mais claro este cenário do que há oitenta anos, quando Benjamin escreveu seu pequeno artigo. A apatia crítica, a resignação generalizada diante da força do mercado e principalmente o descrédito na potência das utopias, categoria esquecida e desacreditada no debate de ideias, já que se tornou um adjetivo útil para desqualificar uma ação, desenham um cenário de desolação. Este é o cenário/desafio que temos pela frente. Benjamin nos alerta sobre o que ele chama “uma nova barbárie”:

Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie.”6

Neste ponto, Flávio de Carvalho nos desenha um horizonte de reflexão mostrando o quanto a criação anda de mãos dadas com a utopia quando inscreve um movimento de contrafluxo diante do instituído como senso comum. É clássica sua experiência de ter decidido caminhar no contrafluxo de uma procissão em São Paulo, em 1931, para entender e provocar o princípio de movimento da massa. Esta experiência, que quase terminou tragicamente, pois Flávio de Carvalho quase foi linchado pela massa de fiéis enfurecida, funciona como paradigma da interrogação que se faz necessária para que possamos entender minimamente para onde estamos indo e o que levamos nas mãos e no espírito.7 A utopia cumpre essa função de contrafluxo, de anteparo de nossas certezas, esburacando a excessiva naturalização com a qual vestimos os acontecimentos. A utopia, portanto, suspende os falsos destinos que vestimos como forma de anestesiar o que temos de mais precioso, nossa responsabilidade diante da vida e do amanhã. A utopia como um furo de imagem foi equivocadamente (e ainda é) lida como prescritiva, anunciando as formas ideais e finalmente o segredo da felicidade compartilhada. Grande equívoco. Todos os grandes utopistas nunca pretenderam o lugar de deuses. Os textos utópicos nada mais são que ficções que buscam simplesmente pela força da imaginação abrir uma ferida crítica nas paisagens de nosso tempo. Pretendiam, portanto, provocar suas épocas com pensamentos e assim abrir novas fronteiras para a imaginação e a responsabilidade diante da história. Thomas Morus e sua Utopia, Tommaso Campanella e sua Cidade do sol, Francis Bacon e sua Atlântida e tantos outros materializaram em texto o que Ernst Bloch nomeia como Princípio Esperança.8 Esperança crítica que para sonhar para frente precisa conhecer minimamente alguns princípios de funcionamento da máquina social.

A utopia, nessa perspectiva, tem muito mais uma dimensão de subtração de um excesso de imagens e de sentido, exatamente como na interpretação psicanalítica, suspendendo as certezas do sujeito, do que de prescrição de novos códigos de conduta e projetos de felicidade. Tomar a utopia como revelação da verdade é uma espécie de recusa ao compromisso que cada um tem com sua imaginação. Nesse sentido, recusar o texto utópico implica sucumbir resignadamente aos textos que já vivemos e assinamos embaixo muitas vezes “sem saber”. Aqui encontramos a catástrofe anunciada por Walter Benjamin quando a vincula com a experiência da repetição: “Que as coisas continuem como antes, eis a catástrofe”.9 Sabemos o quanto a sede de poder fez de algumas “utopias” um maquinário cruel, autoritário, dogmático. A utopia que nos interessa não é aquela que sabemos, mas justamente aquela que ainda não sabemos e que precisamos inventar.

Todo ato criativo traz em si uma utopia. O sentido da utopia não seria, num primeiro momento, de ir em direção à realidade, mas sobretudo contra a realidade. Normalmente, pensa-se em utopia como algo fora da realidade, ilusão, evasão, fantasia, delírio, projetos vazios. Esta forma de utopia funcionaria no clássico vetor presente–futuro. Seu horizonte seria sempre o de buscar tornar-se real. Se ficamos restritos a esta perspectiva, tais formas utópicas perdem sua força. Como propõe Roger Dadoun10, podemos inverter o sentido do vetor e pensar na utopia como um movimento que vai do futuro ao passado, numa correnteza contra a realidade. A utopia adquire aqui sua virtude de crítica social.

Portanto, seria preciso talvez pensar as fronteiras a partir dos movimentos possíveis no trânsito entre esses territórios. Dentro desta perspectiva, é claro, a fronteira é pensada em sua condição de passagem. É curioso o ponto de partida de Jacques Lacan em relação a este ponto quando diz que “a fronteira, com certeza, ao separar dois territórios, simboliza que eles são iguais para quem a transpõe, que há entre eles um denominador comum”.11 É neste mesmo texto Lituraterra que Lacan indica uma diferença que pode nos ajudar em nossa reflexão. Lacan propõe o termo litoral para marcar a radicalidade de um encontro de heterogêneos, já que se trata de duas superfícies distintas: mar e terra. A fronteira, como já vimos, muitas vezes institui uma diferença em espaços homogêneos. Encontrar, portanto, alguns litorais implica uma radicalidade de identificação de limites fundamentais para sabermos qual o ponto de partida que permite um contato efetivo com o outro, com a alteridade, com o estrangeiro. O litoral nos esclarece sobre a borda de nosso saber, de nossa história, de nossas fantasias e, ousaria dizer, de nossas utopias possíveis. O litoral resguardaria, assim, uma singularidade que faz margem, construindo novas imargens. Neste ponto, embora não mencione em seu texto, Lacan se aproxima de Benjamin, já que essas praias são construídas a partir da condição de narrar, de transmissão, cuja forma extrema e sublime seria justamente a literatura. Literatura, como lembra Lacan, na condição de acomodação de restos.12 Na condição de narrar encontraríamos o valor maior da transmissão e chance para cada um de fazer contato efetivo com sua experiência.

A burocratização do amanhã

O amanhã nos acossa. Temos medo quando não sabemos. Portanto, o saber vem por vezes legitimar a reclusão que nos impomos diante do desconhecido. Para nos defendermos não precisamos muito: basta insistir na lógica do ontem e assim confirmar que a continuidade dos princípios e dos funcionamentos legitima os adágios ontológicos de uma racionalidade insuflada pelas formas instituídas. Criar é abrir descontinuidades, interrupções neste fluxo do mesmo. Nesta análise, a variante psicológica não pode aqui ser negligenciada, pois a passividade anda de mãos dadas com a tristeza que constata que tudo está sempre tão igual e que há, enfim, alguém que pensa por nós, que faz por nós e, o que é pior, que vive por nós. Não há, portanto, revolta sem a alegria da invenção, sem o entusiasmo de compartilhar com o outro um sonho.

A burocratização do amanhã é uma forma de controle do tempo. Tempo/cartão ponto desenhando as rotinas que tanto preservamos e amamos. Por isso, a queixa que dirigimos a esses fluxos são fragmentos de discurso amoroso. Controlar o tempo é um dos instrumentos mais potentes da lógica do poder. Tempo instituído pela lógica do mercado, do fluxo de valores de mercadorias, da velocidade das campanhas publicitárias, defendendo sob o manto de uma teoria desenvolvimentista do progresso a virtude da paciência e da espera. Este cenário, como sabemos, se mantém mesmo que poucos sejam os escolhidos e apareçam como a nata de um caldo aquecido pelo sacrifício de muitos. Estes últimos, nos faz crer esta lógica de funcionamento, perderam a chance por pura incompetência de viver deles próprios. Esta é uma condição radical de cegueira que não nos permite, neste ponto, visualizar o litoral comentado antes. Quando a cultura não consegue escrever minimamente esses espaços heterogêneos, de articulação crítica entre diferentes, perdemos a linha do horizonte que nos indica uma direção. Como lembra Alfonso Sastre:

O pior inimigo da vida é a homogeneidade. A cultura é uma atividade que se opõe ao fato de que nossa realidade se converte em uma sopa entrópica. A entropia significa a desordem que é a base da morte… O pensamento único e linguagem única só produz ridículos espantalhos”.13

A utopia é, portanto, uma espécie de freio no delírio mimético de que padecemos. Ela vem opor a tendência à repetição. A utopia rompe com a paixão da analogia ao propor um não lugar. A forma utópica, fundamentalmente, num primeiro momento coloca em cena um “não” ao presente. A utopia introduz a categoria do possível e por isso faz fratura na história. Nunca sabemos até onde uma cultura que aposte no espírito utópico pode nos levar. O fundamental, na verdade, não é antecipar este lugar, mas simplesmente compreender que sua função é nos colocar em marcha e que possamos, como diz Ernst Bloch, ultrapassar a obscuridade do instante vivido.

A consciência utópica quer enxergar bem longe, mas no fundo apenas para atravessar a escuridão bem próxima do instante que acabou de ser vivido, em que todo o devir está à deriva e oculto de si mesmo”.14

A utopia implode qualquer burocracia pela sintonia que tem com o fazer poético tanto na sua condição de invenção de novas metáforas bem como (e talvez seja este o ponto mais radical) de uma suspensão de sentido que reativa a imaginação. Precisamos cada vez mais de um pensamento poético que, uma vez instaurado, produza efetivamente um fazer político no sentido pleno da palavra. A produção poética revigora a língua, toca com coragem nos limites do dizível, contorna com determinação as fronteiras do informe, aceitando assim o desafio, lançado por Jack London, de termos que narrar nosso pesadelo por mais difícil que seja.15 Produz, portanto, um pensar contra. Assim, busca esburacar o véu de cegueira que a racionalização e o tecnicismo contemporâneo nos impõem.

A confiança exagerada na técnica, no saber fazer, deixou o amanhã de mãos cheias de regulamentos, de projetos de ações, de estatutos, de bulas, de manuais de instruções. Com as mãos ocupadas com tantas prescrições, não foi possível agarrar os vapores das novas ideias.

Para ativarmos novas ideias precisamos, portanto, de uma cultura da utopia. Neste ponto talvez nos seja possível encontrar o litoral mais fundamental de nossa humanidade, já que, como lembra Ernst Bloch no início de sua trilogia sobre o Princípio Esperança: “A falta de esperança é, ela mesma, tanto em termos temporais quanto em conteúdo, o mais intolerável, o absolutamente insuportável para as necessidades humanas”.16

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1 Este é um texto que dissolve as margens de uma série de reflexões que tenho escrito sobre utopias. Aqui, estes fragmentos se reencontram, em uma nova geografia como Uros, as ilhas flutuantes do lago Titicaca. Agradeço a Luiz Guilherme Vergara pela leitura e pelos recortes que fez destes meus escritos como um exímio bricoleur e que permitiram uma nova configuração de ideias. Ninguém constrói uma ilha sozinho.

2 Ver Manoel Ricardo de Lima, Geografia Aérea, Rio de Janeiro, 7Letras, 2014, p. 93

3 BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Editora Contraponto, Rio de Janeiro, 2005, p. 18

4 Ver sobretudo SANTOS , Milton. Por uma outra Globalização – do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000, p.112. Ver também de SANTOS, Milton. A natureza do espaço, São Paulo : Edusp, 2002.

5 SANTOS, Milton. A natureza do espaço, Edusp, São Paulo, 2002, p. 21.

6 BENJAMIN, Walter. “Experiência e Pobreza” in: Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política, Editora Brasiliense, São Paulo, 1994, p. 115.

7 Desenvolvi mais amplamente estas ideias no texto “Monocromos psíquicos: alguns teoremas”, in: RIVERA, Tania & SAFATLE, Wladimir. Sobre Arte e Psicanálise, Editora Escuta, São Paulo, 2006.

8 BLOCH, Ernst. O princípio esperança, op. cit.

9 BENJAMIN, Walter. Paris, capitale du XIX siècle, Cerf, Paris, 1989, p. 491.

10 BARBANTI, Roberto (org.). “L’art au Xxe siècle et l’utopie”, Paris, L’Harmattan, 2000

11 LACAN, Jacques. Lituraterra. Outros Escritos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2003, p. 18.

12 Ibid p. 16.

13 SASTRE, Alfonso. Los Intelectuales y la utopía. Editorial Debate, Madrid, 2002, p. 43.

14 BLOCH, Ernst. Princípio Esperança, op. cit., p. 146.

15 Jack London “Como alguém poderia encontrar as palavras para descrever um pesadelo?” In LONDON, J. O pagão. Rio de Janeiro: Editora Dantes, 2000, p. 22

16 Ibid p. 15.