Nº6 VIDAS ESCONDIDAS
Escola da Floresta (Fábio Tremonte), [Leitura pública do relatório Figueiredo] exposição “A queda do Céu”, Caixa Cultural, Brasilia, 2019.

Leitura pública do Relatório Figueiredo

Fábio Tremonte

La presentadora indicó que a ella la estatua de Colón no la ofendía. A lo que Ortiz respondió: “Claro, porque eres blanca”.1

El Pais

7 de junho de 2020, em Bristol, a estátua de Edward Colston foi derrubada e jogada no principal rio da cidade.

9 de junho de 2020, em Boston, uma estátua de Cristóvão Colombo foi decapitada durante a noite.

9 de junho de 2020, em Londres, uma estátua de Robert Milligan foi removida de seu pedestal.

11 de junho de 2020, em Lisboa, uma estátua do padre Antônio Vieira foi destruída.

22 de junho de 2020, em Washington DC, um grupo de manifestantes tentou derrubar a estátua de Andrew Jackson.

4 de julho de 2020, em Baltimore, uma estátua de Cristóvão Colombo foi demolida.

Tentativas de recontar a história oficial a partir de outros lugares.

Página do Relatório Figueiredo.

O Relatório Figueiredo foi um documento escrito a partir da investigação de uma CPI (comissão parlamentar de inquérito) em 1967 conduzida pelo procurador Jader Figueiredo Correia. Em seus 31 tomos (o tomo nº2 foi extraviado) e suas quase 7000 páginas narra crimes contra o Estado brasileiro praticados por funcionários do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI), utilizando de maneira irresponsável e criminosa toda a estrutura do SPI, desde arrendamento ilegal de terras até empréstimo de materiais, equipamentos tais como máquinas de datilografar ou tratores e, principalmente, acusação de ações violentas empreendidas por esses mesmos servidores públicos contra populações indígenas durante as décadas de 40, 50 e 60.

No dia 12 de outubro de 1992, marco dos 500 anos da invasão espanhola nas Américas, os zapatistas (ainda invisíveis) derrubaram a estátua do conquistador Diego de Mazariegos, em San Cristóbal de las Casas, Chiapas.2

Após um incêndio no Ministério da Agricultura em 1967, o Relatório Figueiredo ficou desaparecido por mais de 4 décadas, pois acreditava-se que havia sido destruído nesse acidente. Em 2013, durante as pesquisas da Comissão Nacional da Verdade, foi reencontrado no Museu do Índio no Rio de Janeiro, guardado em caixas de papelão.

A irmã Tuira Kayapo, mãe e guerreira indígena, mostrou ao mundo o que acontece quando as mulheres tomam as rédeas do seu destino.

O mundo conheceu a irmã Tuira Kayapo em 1989, no encontro em Altamira contra a construção de represas no rio Xingu. Apareceu na sala com sua pintura de guerra e com um facão. Aproximou-se do presidente da companhia elétrica do Brasil, colocou o facão em seu pescoço e proclamou que o povo indígena e toda a Amazônia consideravam as intervenções no rio como um ato de terrorismo e guerra. Disse:

“Você é um mentiroso! Não necessitamos de eletricidade! A eletricidade não vai nos proporcionar comida. Necessitamos que nossos rios fluam livremente, pois nosso futuro e de toda a humanidade depende disso. Necessitamos de nossas florestas intactas para poder recolher nosso alimento. Não necessitamos de sua represa!”

Despediu-se dizendo:

“Meu apelido: ofendida;
Meu nome: humilhada;
Meu estado: rebelde
Minha idade: a idade da pedra.”3

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No documento, há minuciosos relatos de roubo, tortura, estupro, aprisionamento ilegal, envenenamento, contaminação intencional, bombardeio de aldeias, assassinato de lideranças, escravização e massacres. Crimes cometidos contra índios por entes privados e públicos, em conluios clandestinos ou frutos de decisões oficiais. Fábio Tremonte propõe, neste trabalho, que os 29 tomos do relatório sejam lidos, na sua ordem, por quaisquer pessoas que visitem a exposição e pelo tempo que ela durar. Um esforço coletivo e voluntário para ativar a memória de tantas atrocidades cometidas no passado contra os povos indígenas e que são, ainda hoje, perpetradas.4

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Na imagem nosso irmão e companheiro, Mário Juruna [Xavante].

Foi o único deputado federal indígena na história do Brasil. Eleito pelo PDT/RJ [1983-1987], foi responsável pela criação da Comissão Permanente do Índio, que levou o problema indígena ao reconhecimento oficial. Era destemido, enfrentava os generais e a cúpula, em plena ditadura militar, pelos direitos indígenas. Foi também o único deputado, na história do Brasil, a denunciar o esquema de corrupção entre os políticos. Mostrando e devolvendo, publicamente, os 30 milhões de cruzeiros recebidos na tentativa de suborno em 1984 por parte do empresário Calim Eid para votar em Paulo Maluf, candidato dos militares à presidência da República no colégio eleitoral. Votou em Tancredo Neves pelos direitos indígenas, até hoje não cumpridos. Não conseguiu se reeleger nas eleições de 1986, mas continuou ativo na política por vários anos. Faleceu em decorrência de diabetes e hipertensão em 17 de julho de 2002.5

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A (Leitura pública do Relatório Figueiredo) é uma proposição da Escola da Floresta (uma escola alternativa em São Paulo liderada pelo artista Fábio Tremonte). Aconteceu, pela primeira vez, entre 2016 e 2017 na Oficina Cultural Oswald de Andrade em São Paulo. Em seguida foi montada em 2018 no Paço das Artes na exposição Estado(s) de Emergência com curadoria de Priscila Arantes e Diego Matos e, também, na exposição “A queda do céu” na Caixa Cultural em Brasília com curadoria de Moacir dos Anjos, em 2019.

(Leitura pública do relatório Figueiredo), Oficina Cultural Oswald Andrade, São Paulo, 2016.

A ação consiste em dispor sobre uma mesa as 7000 páginas distribuídas em 30 tomos e dispor um microfone aberto conectado a um alto falante. É de vital importância o engajamento dos setores educativos das instituições nessa proposição, pois a abordagem inicial parte de uma conversa sobre as condições das populações indígenas no Brasil desde 1500.

[Leitura pública do relatório Figueiredo], Oficina Cultural Oswald Andrade, São Paulo, 2016.

Após a conversa, o visitante é convidado a pegar uma página do relatório e ler em voz alta no microfone o texto ali datilografado. Sua voz será amplificada pela caixa de som. E as palavras impressas do relatório, que durante tanto tempo ficaram adormecidas, serão tornadas públicas e escutadas pelos outros visitantes, por quem passa na rua, ecoando a história e os relatos oficiais do tratamento violento e genocida do Estado brasileiro contra as populações indígenas desse território.

[Leitura pública do relatório Figueiredo], Oficina Cultural Oswald Andrade, São Paulo, 2016.

No entender da curadoria, torná-lo público, de forma acessível e eloquente, coloca-nos em relação direta àquilo que o relato explicita de maneira tão crua, permitindo que o público seja afetado, de uma forma ou de outra. Encenar a leitura do relato e, de fato, realizá-la, alerta-nos para uma ampla e complexa história de invisibilidade do país: as histórias dos milhares de indígenas violentados, de uma forma ou de outra, pela “barbárie civilizatória” do Estado brasileiro e de sua elite econômica.6

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A Escola da Floresta é um projeto que busca ser um espaço de intersecção entre práticas artísticas e práticas pedagógicas. É uma escola nômade, temporária, transitória, sem mobiliário, sem programa fixo, sem hierarquia entre quem ensina e aprende, e de saberes múltiplos e diversos em busca de pedagogias experimentais e radicais.

A Escola da Floresta toma emprestadas algumas estratégias e procedimentos oriundos das áreas da arte e da educação, de maneira a criar dobras, vincos, rasgos, esticar o tecido criado nesses segmentos e, assim, transformar e imaginar outras possibilidades de mundo.

Para a [Leitura pública do Relatório Figueiredo] se vale de dois elementos presentes no universo escolar: a narrativa histórica e a leitura em voz alta. Esses dois procedimentos são colocados em jogo no espaço público de uma instituição cultural com o desejo de proporcionar uma outra relação corpórea-intelectual-afetiva com a história oficial, torcendo-a até mostrar que a história não é um caminho de mão única. Aqui nos propomos a “escovar a história a contrapelo” como diz Walter Benjamin.7

Primeiro, o uso da leitura em voz alta. Quando o participante se engaja e decide ler no microfone o texto do relatório, ele não está, apenas, participando de uma proposta artística, encenando ou “performando”; está, antes de tudo, emprestando sua voz para soltar no ar um texto de denúncia sobre o tratamento dispensado aos indígenas pelo Estado brasileiro. A leitura em voz alta é mais um desdobramento de um tecido que se inicia com a investigação dos funcionários do SPI, com a instauração da comissão parlamentar do inquérito, a redação do texto do documento, a digitalização do relatório e sua presença pública na internet. Ler em voz alta é dar um testemunho dessa parcela da história dos povos originários e lembrar que assim tem sido desde a chegada do europeu nessa terra que é chamada de Brasil.

Um aspecto também importante é trazer uma outra narrativa histórica sobre as populações indígenas no Brasil. Uma narrativa para fora da história oficial contada nos livros escolares e confirmada pela escola que segue um currículo estatal. Buscar uma contra narrativa é também parte integrante da [Leitura pública do Relatório Figueiredo]. Nesse sentido, os educadores que atuam na aproximação entre proposição e público tem um papel fundamental, pois, imbuídos de outra sensibilidade e outra aproximação aos fatos escritos pelos vencedores na história, irão apresentar ao visitante outras leituras desses fatos e, nesse momento convocar a um engajamento para a leitura.

É assim o microfone aberto deixado pelo artista na Oficina Cultural Oswald de Andrade para leitura das mais de sete mil páginas referentes ao Relatório Figueiredo, relatório este que foi supostamente eliminado em um incêndio no Ministério da Agricultura, e que foi encontrado depois de 45 anos no Museu do Índio, no Rio de Janeiro. Come-se a fala. Engole-se a seco.8

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Fábio Tremonte
Artista, educador, pesquisador e anarcotropicalista. Doutorando em artes visuais ECA|USP. Escolheu a arte pela possibilidade de não precisar se tornar um especialista. Cozinheiro de manhã, antropólogo de tarde, DJ de noite. Junto gente para fazer junto na cozinha, na escola, na pista de dança, mas isso não é tudo. Prefira escrever em portunhol. Em 2016, criou a Escola da Floresta, uma escola nômade e permeada por diversos saberes e formas de aprender e ensinar e de imaginação de outras possíveis pedagogias. Em 2017, fui curador pedagógico da Trienal de Artes Frestas – Entre pós-verdades e acontecimentos. Entre 2017 e 2018, atuou como curador da Residencia artística Barda Del Desierto, na Patagônia Argentina. Em 2020 foi curador pedagógico do Valongo Festival da Imagem. Também já participei de exposições no MAM-SP, MAR, Centro Cultural São Paulo, Paço das Artes, entre outras.


1 RIAÑO, Peio H. “Daniela Ortiz: ‘Conforme tu voz crece, la violencia contra ti también’”. El País, 5 de agosto, 2020  https://elpais.com/cultura/2020-08-05/daniela-ortiz-conforme-tu-voz-crece-la-violencia-contra-ti-tambien.html?outputType=amp&__twitter_impression=true [Acessado agosto 2020]

2 TREMONTE, Fábio. “sem fé, sem lei, sem rei” Periódico Permanente vol. 4. no.7  2016 http://www.forumpermanente.org/revista/numero-7/conteudo/politicas-do-esquecimento/sem-fe-sem-lei-sem-rei [Acessado agosto 2020]

3 Ibid.

4 Texto de apresentação da [Leitura Pública do Relatório Figueiredo] na exposição “A queda do céu” em 2019 na Caixa Cultural de Brasilia com curadoria de Moacir dos Anjos.

5 sem fé, sem lei, sem rei op.cit.

6 Texto curatorial da [Leitura Pública do Relatório Figueiredo] na exposição “Estado(s) de Emergência” em 2018 no Paço das Artes com curadoria da Priscila Arantes e Diego Matos.

7 BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história” in Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política (São Paulo, Brasiliense, 1987), p. 224

8 NUNES, Kamilla. “Embarcação”, dissertação de mestrado em artes visuais pela UDESC (Universidade Estadual de Santa Catarina), 2017