Nº6 VIDAS ESCONDIDAS
Ulisses Pereira Chaves (Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais) Sem título, década de 1970.
Foto: Lucas Van de Beuque, Acervo Museu do Pontal.

Ulisses, e as dimensões complexas do que se esconde e do que se mostra

Angela Mascelani

Ele falou que se perguntava: Essa terra veio de onde? Está aonde? E vai para onde? Foi criada, gerada ou nascida? Ele disse que gostava de fazer perguntas, que era esse tipo de pergunta que se fazia… Afirmou que não tinha professor… e que as respostas estavam aí; que cada um precisava estar ligado nas respostas. Insistiu que quando alguém fotografa, copia. E fica tudo igual… Ele fez um breve silêncio e falou que o barro estava vivo…

Seu monólogo tinha tanta força que as obras pareceram se mexer, tocadas pelo vento de suas palavras.

Eu sou Ulisses! Eu falo com o sol, com a natureza, com o oxigênio. Minhas peças não se misturam. São matéria minha que não copio, eu invento. Elas vão embora com quem compra, mas eu vou junto. Elas falam comigo. Eu falo com elas aonde elas estiverem. Eu tenho a visão. Por isso tenho valor. Tudo o que faço sai da natureza, da minha cabeça, de minha invenção.

Ulisses Pereira Chaves nasceu em 1929, na localidade de Córrego Santo Antônio, próximo a Caraí, no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, aonde veio a falecer em 2007. Criado em ambiente oleiro, deu prosseguimento às atividades familiares, marcando presença contestadora e destacando-se como “artista popular” numa região onde a produção da cerâmica utilitária e figurativa é, principalmente, trabalho de mulheres.

A noção de “arte popular brasileira” constitui um fato sociocultural, territorial e com datação e contornos históricos. Refere-se a um fenômeno total – a um só tempo social, econômico, cultural e estético, que envolve narrativas, obras, autores, e discussões que se organizam no seu entorno.1 Não designa um estilo artístico, uma técnica ou sequer um tipo único de objeto. Ao contrário, circunscreve um campo de produção que estabelece conexões com diferentes linguagens artísticas, em que a criatividade e a autoria individual ocupam lugar central. Essa noção liga-se, quase sempre de maneira visceral, ao vasto e democrático campo do artesanato, pois muitas vezes é daí que surgem aqueles indivíduos que se destacam com uma obra particular. A designação de algo como “arte popular” está relacionada a uma discussão menos rígida sobre as fronteiras do que pode, ou não, ser considerado arte. Nesse sentido constitui um território que coloca em questão a hierarquia entre as artes e permite ver o trânsito – quase sempre ambíguo, e por vezes confuso ou conflituoso – de produções artesanais consideradas periféricas, em direção ao sistema estabelecido das artes plásticas.

O termo “arte popular” é muito abrangente. Neste artigo indica a produção tridimensional de modelagens em cerâmicas e esculturas em madeira, ferro e tecido, feita por artistas das camadas populares. Da forma como essa noção tem sido usada contemporaneamente, remete ao fazer artístico não hegemônico, dos mais pobres, dos periféricos, dos que criam à margem da escolaridade e dos sistemas de arte constituídos. E, nesse sentido, mesmo considerando que o uso do qualificativo “popular” implica em outros problemas que não podem ser ignorados, ou permanecerem ocultos, tais como borrar as especificidades de gênero, matrizes africanas ou indígenas, territoriais, etc, ou parecer dialogar com perspectivas dicotômicas, entendemos que nomear essa produção no contexto brasileiro se configura ainda como uma estratégia: fazer ver à sociedade que, fora dos meios ditos “cultos”, nas zonas invisíveis e silenciadas, entre os autodidatas ou os que aprendem por meio da tradição familiar, existe produção estética que pode e deve ser entendida como arte. E que, na maior parte das vezes, não o é.

Embora a poética e força expressiva presentes nas produções criativas populares sejam reconhecidas em alguns meios, e estejam à vista de qualquer um, pois ocorre em todas as regiões e com regularidade, chama a atenção seu apagamento no campo propriamente artístico. As obras em geral são entendidas como artesanato voltado para a comercialização, circulando timidamente nos meios profissionais de arte. Porque justamente não fazem parte de um circuito estruturado, o reconhecimento dos autores/artistas é precário, fazendo com que sejam continuamente referidos como “descobertas” recentes, por mais tempo que se dediquem ao mesmo fazer. O que se agrava pelo fato dessa arte não fazer parte da formação escolar, encontrando-se ausente dos livros e das antologias de arte brasileira, salvo raras exceções, como, por exemplo, Mestre Vitalino.

Cara de bicho, corpo de gente. E o contrário também existe

Ulisses Pereira Chaves (Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais), Sem título, década de 1970.
Foto: Lucas Van de Beuque, Acervo Museu do Pontal.

Nas peças iniciais de Ulisses Pereira Chaves podemos reconhecer a prevalência de animais domésticos, como galinhas, ou outros bichos do entorno da casa, como lagartos, e, ainda, das moringas de guardar água. Ao longo dos anos, sua criação vai se modificando, ganhando formas mais enxutas e formalmente mais elaboradas. Cria aves-moringas com contornos largos; outras com pés e cabeças diminutas; ou com figuras humanas de pescoços alongados, instaurando novos sentidos para um formato recorrente. Inventa uma espécie de réptil, com patas grossas, estruturais. Arremata o corpo de um homem com uma cabeça de cavalo, evocando a imagem do minotauro. Inventa esculturas totens, de formatos generosos, nas quais múltiplas cabeças se enredam, numa espécie de contínuo repetitivo. Seus corpos são aderentes; suas cabeças, fervilhantes.

Ulisses Pereira Chaves (Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais) Homem com Cabeça de Cavalo, década de 1990. Foto: Lucas Van de Beuque, Acervo Museu do Pontal.

A maior parte de suas composições revela seres inventados, que não existem na realidade. E fala da presença do sobrenatural em sua vida.

Tudo o que faço sai da natureza, da minha cabeça, de minha invenção. A peça é matéria que me responde. (…)

O que fez a antropóloga Lélia Frota questionar: “Expressionista, surrealista, ou participante de uma experiência outra, que convive com o sobrenatural com a maior naturalidade, considerando-o mais verdadeiro do que os fatos perceptíveis por todos nós no dia-a-dia?”2  

Foi em conversa com essa pesquisadora que Ulisses declarou entender que são os elementos invisíveis que determinam a característica única de cada obra, porque “em permanente mutação”.3 Ainda que o artista tenha tido algum reconhecimento em vida, não teve suas obras monetariamente valorizadas. O que aliás tem sido a realidade da maior parte dos que atuam nesse segmento. Mesmo com algum renome, pois no início da década de 1990 já era bastante disseminada a singularidade de seu talento, jamais ingressou no elitista mundo das artes plásticas brasileiras, com suas regras eurocêntricas, verticalismos e a firme recusa de outras possibilidades narrativas. O reconhecimento de Ulisses se deu nos meios especializados e restritos dos interessados pela arte do popular brasileira, entre colecionadores e estudiosos sobretudo.

Justamente porque esse tipo de produção ocorre numa região empobrecida do Vale do Jequitinhonha, historicamente associada a refúgio e resistência de populações negras aquilombadas, em contexto hierarquicamente menos central, a dimensão estética do que ali se faz nem sempre é reconhecida como criação pessoal, cujos autores têm identidades ímpares. A produção, como um todo, e a despeito de suas particularidades, é vista como artesanato, e nesse entendimento está latente o sentido pejorativo associado tanto aos seus aspectos de repetição e cópia, como também de mercadoria. O que não é específico dessa região, mas alcança amplamente a produção criativa dos menos privilegiados economicamente no Brasil. Essa espécie de “apagamento histórico” da produção intelectual e artística das camadas populares contribuiu para reforçar preconceitos, criar exclusões e reservas de mercado para quem pode ser visto ou tido como artista, além de ampliar as distâncias sociais e econômicas, reproduzindo hierarquias perversas.

Apesar de todos nublamentos, Ulisses, e suas criações impactantes, nos impedem de ficar indiferentes. Precisamos escutá-lo! Com ele, somos chamados a re-ver. Ver novamente. Caminhar pelas trilhas das incertezas e repensar em profundidade o que existe para além das contradições.

Quando os fragmentos são a unidade

A primeira imagem que nos impressiona quando chegamos em sua casa é uma cerca de madeira, que circunda e demarca a entrada do sítio onde vive4. No alto de cada mourão, Ulisses colocou um resto de cabeça espetado, uma metade de rosto quebrada, ou o pedaço de algum membro partido, “estourado” durante a queima da cerâmica. O conjunto compõe um cenário de grande dramaticidade, algo sombrio. Seja pelos corpos partidos, seja por evocar, pela falta, algo que deixou de ser inteiro. Ou, ainda, por conduzir às ideias de ruína e de deterioração.

Mas, não apenas. Elas também parecem trazer de volta para a natureza os cacos, num regime em que nada sobra. Em novo contexto é como se as obras partidas recebessem algum tipo de restauração.

Georg Simmel diz que:

 […] as ruínas de um edifício significam que outras forças e outras formas –aquelas da natureza – desenvolveram e substituíram o que na obra de arte foi destruído e desapareceu e que uma nova totalidade, uma unidade particular nasceu do resto de arte que vive ainda nelas e dessa parte da natureza que vive a partir de agora nelas.5

Ao exibir os pedaços numa nova configuração, Ulisses recria uma nova totalidade. E sublinha a inteireza de sua criação, pouco importando se algo se quebrou ou não. Ali suas obras ganham novos significados, continuam ativas. Matéria sempre viva, cujo amálgama não é determinado apenas pela ação do fogo, mas também por sua natureza cósmica.

Circundar a casa com fragmentos, reforça e explicita os vínculos entre artista, obra e o ambiente natural. Sugere, como disse Simmel a propósito das ruínas, que:  “uma obra humana seja percebida quase que como um produto da natureza. As mesmas forças que dão à montanha seu aspecto – as intempéries, a erosão, os desmoronamentos, a ação dos vegetais – revelam aqui, (sobre as muralhas), sua eficácia”.6

As ruínas têm a capacidade de expor e integrar forças opostas e conflitantes. Em meio às ruínas, pensa-se no declínio e na ascensão, no velho e no novo, no passado e no futuro. E, sobretudo, na incapacidade humana de impedir o avanço do tempo. Mas postas ali, por Ulisses, aqueles cacos de cerâmica não concedem nenhum tipo de nostalgia. E nos levam a pensar que modelar um objeto, estabelecer um discurso, inventar novos destinos para o que seria perda e erro, parecem ser parte de um “mesmo” processo. Que reforça uma visão de mundo e revela as conexões que atuam e impulsionam Ulisses. De alguma maneira, para ele, tudo é criação. Nada é sobra.

A realocação do que não poderá ser comercializado, porque quebrou, também chama a atenção para o trabalho concreto da cerâmica, para a fragilidade do barro cozido; expõe o processo com seus imprevistos, erros e fracassos. Revela o que quase sempre permanece oculto no fazer em si do trabalho da cerâmica – os riscos, o descontrole. Reforça, simbolicamente, aquilo que está presente no discurso de Ulisses e, que, ao mesmo tempo, nem todos entre os que o visitam parecem compreender.

Não posso saber se as pessoas gostam das minhas peças. Ninguém pode responder uma coisa por outra pessoa. Cada pessoa tem um sentido e escolhe o sentido e nem eu, nem ninguém pode saber o sentido que as pessoas dão para as peças. (Ulisses, 2005).

Etnografia de um encontro

Ulisses Pereira Chaves e família, década de 1990 Foto: Ana Maria Chindler. Galeria Pé de Boi, Rio de Janeiro.

A primeira vez que estive em sua casa foi em 1995.7 Sua fama de pessoa excêntrica e difícil chegou antes de conhecê-lo. Ulisses recebeu-me amigavelmente, embora tenso. Logo mostrou-me a oficina onde trabalhava o barro. Depois, um pequeno quartinho onde estocava as peças prontas, as quais não me permitiu ver livremente, mantendo a porta apenas entreaberta. Sem que lhe perguntasse algo, disse que ali nada se encontrava à venda. Avisou-me que tudo era encomenda e que nenhuma peça poderia ser minha.

Fiquei observando por um tempo. Tentando ver o que era possível, sem demandar nada mais a ele, sentindo seu ritmo. Suas modelagens apresentam o barro cozido e alisado, suave, sem texturas bruscas. As superfícies conservam a cor da terra e recebem pinturas feitas com tintas de pigmentos naturais. As formas, originais e elegantes, inquietam.

Depois fomos para a sala, um cômodo simples, de casa do interior, bem arejado e agradável. Ficamos conversando. Na verdade, fiquei em silêncio e ele ficou falando, num fluxo contínuo, emendando um assunto no outro. Ora se exaltava, ora se recolhia, calado.  Sua esposa Maria José entrava e saía. Observava a mim e a ele. Nada dizia. Ouvíamos nossas respirações. Fora, o sol estava muito quente.

Pela janela, vi que algumas pessoas – filhos, e a irmã Ana (que depois vim a conhecer) – estavam por perto. Ninguém entrou na sala.

Eu disse para minha mulher que você vinha. Eu vi você vindo para cá essa noite, no sonho.

Assim como Ulisses se atribui uma capacidade de antecipar o que será vivido, um poder de saber antes das coisas se concretizarem na realidade, também entende suas obras como elementos autônomos, embora indissociadas dele próprio. Criador e criatura – com suas identidades próprias. Mas, paradoxalmente, ambos, um. Conectados visceralmente com a terra.

Matéria daqui é barro. Se você levar eu falo com a minha peça onde ela estiver. Cada peça me responde. Se você pergunta ela não diz nada. Se você pergunta ela fica calada. Minhas peças falam comigo.

Quando pedi para fotografá-lo, recusou-se, permitindo que eu fotografasse apenas as obras.

Eu não quero a minha foto, a minha força presa num filme, numa entrevista. Não permito que fotografem aqui. Se quiser fotografar, mostre o projeto. Eu ensino. Não ensino de graça.

Pergunto se posso pagar para fazer as fotos. Ele diz que não. E percebo logo que não se trata disso.

Eu falo com o sol, não copio de ninguém. Não sou como os outros que não sabem o que as peças falam.

Traz um folheto como exemplo do que o desagrada. Nele suas peças aparecem ao lado de fotos da cidade de Caraí, da igreja e do mercado.

Por que puseram a igreja e o mercado? Onde está isso? Aqui? Aqui, não. Aqui não é lá. Eu estou aqui, na minha casa.

Ulisses mostra o seu entorno. A casa fica num ponto mais elevado do terreno e ele abre os braços e me faz olhar em volta, como se fosse preciso também que os visitantes constatassem o óbvio. Aqui, não é lá.

Volta ao texto do cartaz, onde sua importância como artista é reconhecida e a cidade de Caraí e seus marcos são usados como referência para sua localização. O texto também o qualifica como um ceramista do Vale do Jequitinhonha. Mas isso não parece aplacar sua insatisfação. Sai e volta com um outro grande cartaz, de uma exposição, onde se destaca uma obra de sua autoria, coberta por seu nome, em letras garrafais. 

Aí, aí. Eu não estou lá! Na minha casa mando eu. Aqui, ninguém fotografa se eu não quiser. E vem gente aqui fotografar e pôr o meu nome no papel.

Não retruco, mas ele parece ter muito a falar sobre o assunto, como se estivesse esperando por esse momento, acumulando respostas/desabafos para questões que o afligem. Talvez por isso, fala sem parar, como se as palavras desengasgassem da garganta. Seu discurso é rápido, ininterrupto, sem pontuações que indiquem a mudança de um assunto a outro, tornando-se impossível acompanhar e compreender nos detalhes o desenrolar das estórias que narra ou exatamente o que diz. Seu ritmo é vertiginoso. 

No entanto, o sentido de sua fala não se perde. É evidente que sua indignação passa, de alguma forma, pelo que ele vê e ninguém parece ver. Pelo que se esconde ao olhar do outro, embora para ele pareça óbvio. Pelo desrespeito por seu pensamento e por seus princípios.

Ter sua obra impressa em papel, mesmo que seja para enaltecê-lo, viola suas escolhas. Pois sua criação não é um objeto para o outro, para o mercado. Mesmo sendo, pois o artista vive de sua produção. Contudo, entre ele e sua obra existe uma conexão de ordem íntima. Que o estimula a buscar uma relação concreta, olho no olho, com quem adquire suas modelagens. Para Ulisses, nada está dissociado. O que o torna um tipo de artista para quem a casa e aquilo que acontece no seu entorno – as relações, as pessoas, o espaço – compõe uma espécie de “micro-clima”. Seu ambiente é sua forma de existir e se relacionar com o mundo.

Numa outra visita, feita em 2005 (desta vez com Lucas e Moana Van de Beuque), Ulisses diz que cada pessoa tem seu dom próprio de fazer arte. E que as pessoas que o procuram “querem isso, querem aquilo, querem ser o professor do próprio artista! Porque minhas peças são imagem do que eu faço, não imagem de alguma coisa. [São] imagem e semelhança do que eu sou”. Com essa fala, já nos minutos iniciais de contato, o artista vai ao ponto – sua criação é, em si mesma, origem e fim: seu próprio corpo expandido. Imagem e semelhança do que ele mesmo é.

No inteiro de sua vida, tudo aparece integrado. Modelar é equivalente a lavrar a terra, plantar e colher o alimento, limpar uma nascente, encontrar o barro, “levantar o corpo” de uma peça, como é a expressão dita comumente pelas ceramistas da sua região. E, até nos receber, mesmo como visitantes, nos torna partícipes dessa sua realidade única.

Ulisses Pereira Chaves, década de 1990 Foto: Ana Maria Chindler. Galeria Pé de Boi, Rio de Janeiro.

Natureza e a recusa das cisões entre os seres. Para Ulisses todos são um

Em nosso primeiro encontro, pude experimentar seu esforço por comunicar algo que lhe parecia óbvio – que o homem e a natureza são indissociáveis. Dito por ele de maneira bruta, com o tom de voz elevado, e forte energia. Talvez fosse mesmo necessário tanto esforço para fazer ver que a relação de oposição entre o humano e a natureza, a natureza e a cultura – pontos centrais da visão ocidental moderna – eram equívocos que vinham durando tempo demais.

Seja ao criar uma ave mitológica, seja ao produzir suas cercas fantasmagóricas, com cabeças espetadas no alto, Ulisses nos enreda em seu atormentado – e de certa forma, lúcido – processo mental. Sua visão profunda sobre sua arte fala da concepção de vida como natureza. E retroalimenta a noção de natureza como criação incessante, na qual Ulisses é partícipe presente, com suas modelagens de barro cozido, em que o humano desdobra-se num Outro – o animal fabuloso.

Seres imaginários aparecem amplamente na produção escultórica popular. Como produção lateral, mas consistente, é encontrada na criação de artistas de diferentes regiões culturais do Brasil, tais como Mestre Vitalino (Pernambuco (PE), Ciça (Juazeiro do Norte, Ceará (CE), Antônio Rodrigues (PE) e muitos outros.

Mestre Vitalino (Alto do Moura, Pernambuco) Sem titulo, 1960. Foto: George Maragaia, Acervo Museu do Pontal.
Ciça do Barro Cru (Juazeiro do Norte, Ceará) Homem sapo, década de 1970. Foto: Lucas Abdallah, Acervo Museu do Pontal.
Antônio Rodrigues (Alto do Moura, Caruaru, Pernambuco) Conselho de Animais, década de 1970.
Foto Anibal Sciarreta, Acervo Museu Casa do Pontal.

Entre os que a têm como central, destacam-se Manoel Galdino, de Pernambuco, os autores de máscaras de Cazumba, no Maranhão, e Ulisses Pereira Chaves.

Manoel Galdino (Alto do Moura, Pernambuco) Lampião Sereia, 1970. Foto: Aníbal Sciarreta, Acervo Museu do Pontal.
Euzimar Meireles Gomes (Maranhão), Máscara de Cazumba, 2005.
Foto Lucas Van de Beuque, Coleção Maria Mazzillo, Acervo Museu do Pontal.
Ulisses Pereira Chaves (Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais) Sem título, década de 1970.
Foto: Lucas Van de Beuque, Acervo Museu do Pontal.

Para alguns, a inspiração parece vir das histórias que ouviram sobre um outro tempo, no passado, ou das narrativas míticas, com seus personagens surpreendentes e assustadores. Esse não parece ser o caso de Ulisses, que está conectado, no presente, com a natureza e seus mistérios.

Sua proposta é plenamente compreendida por um outro artista da região, Ulisses Mendes, de Itinga, que se notabilizou pelas artes da madeira. Ele diz que um dia foi visitar Ulisses Pereira Chaves, em sua casa:

Aí eu fui lá, que é difícil chegar lá na casa dele. Os maiores artistas ficam bem distantes da cidade. Interessante. Longe da cidade, na zona rural, bem longe. Sobe morro, desce morro. Ali que está o bom artista. Quem convive muito com a natureza, aquelas coisas, ele apega muito com Deus, tá sozinho por ali. Ali ele aperfeiçoa aquele lado artístico dele, e cria aquele trabalho com aquele som natural. A floresta, o som natural, também ele ruge. Ele ruge, ele tem aquele som na mata, montanhas. Se a gente aprofundar muito naquilo ali, você escuta vozes, você escuta vento conversar. Eu já aprofundei tanto nesse lado que a gente fala espiritual, original, científico, que já ouvi as águas cantarem, isso eu já ouvi muitas vezes.8

Do que fala esse outro Ulisses? Fala do refinamento dos sentidos, da abertura para outros significados que estão silenciados, do aprimoramento da sensibilidade e da entrega ao acontecimento. Fala da importância da solidão e da comunhão com a natureza. O que parece ser, para estes artistas, a condição mesma da criação. Ouvir as águas cantarem é participar do frescor das águas, do ímpeto das águas, é beber na fonte da inspiração. Uma inspiração que não é apressada. Que sabe que o tempo é necessário. Tempo da arte.

Ulisses Pereira Chaves morou toda sua vida na zona rural, numa fazenda distante alguns quilômetros do pequeno povoado de Caraí. Sua vivência é a do homem rural. O homem que lavra as terras empobrecidas pela extração de minérios. Alguém que, junto com seus ancestrais afro-brasileiros, resistiu no território e, por meio da arte, inventou o inexistente. Essa ampla região, é ainda compartilhada com diferentes populações indígenas. Atualmente os povos da etnia Maxakali (Yãy hã mĩy) vivem entre os vales do rio Mucuri e do rio Jequitinhonha. Como se lê no site da Universidade Federal de Minas Gerais, (o povo Maxakali vive em quatro áreas de Minas Gerais:9 nas aldeias de Água Boa, no município de Santa Helena de Minas; em Pradinho e Cachoeira, no município de Bertópolis; em Aldeia Verde, no município de Ladainha, e no distrito de Topázio, em Teófilo Otoni. Suas terras constituem alguns dos menores territórios indígenas do país, abrigando, juntos, cerca de 2.500 pessoas. A aldeia Krenak, também localizada a pouco mais de 200 km de Caraí, é terra natal do filósofo indígena Ailton Krenak, autor do livro Ideias para adiar o fim do mundo. Neste livro, e em suas reflexões, o autor critica os que não entendem os vínculos fundamentais à sobrevivência, que são aqueles tecidos entre a natureza e a humanidade.

Nós somos natureza e essa interdependência é vital. Se a gente ignorar isso, a gente morre. A ideia de uma vida separada da natureza só pode significar o fim da nossa experiência de compartilhar vida na terra com os outros seres, com as florestas, com os rios, com outras espécies, inclusive aquelas que a gente sabe que estão na lista de extinção e que a gente trata como se fosse só uma notícia remota. Como se essa contagem fosse previsível e isso não fosse um alerta para o próximo sujeito que vai entrar na lista: o homo sapiens, nós mesmos.10

Talvez seja essa a experiência que Ulisses tenta transmitir aos que o procuram. E, nessa certeza, nada há de escondido. Tudo é explícito!

A influência indígena na arte cerâmica do Vale do Jequitinhonha, foi estudada por Lalada Dalglish, no livro As noivas da Seca.11 A autora estabelece amplas conexões, encontrando, no artesanato e na arte do Vale, vínculos com a produção de povos indígenas de outras regiões brasileiras e, mesmo, de outros países. Indica as conexões visuais existentes entre a “moringa com quatro bases”, feita por populações indígenas dos Andes Centrais e a “moringa trípode”, feita em Minas Gerais no século XIX. Peças similares a estas, encontradas no México pré-colombiano e nas cerâmicas Karajá, podem ser vistas com facilidade em várias localidades do Vale do Jequitinhonha, nas esculturas com um único corpo (humano ou animal) e duas ou mais cabeças (idem) encontradas tanto em Caraí, feitas por Ulisses Pereira Chaves e família, como em Turmalina, Campo Alegre, feitas por Rosa Gomes da Silva e outras, como as esculturas ditas “gêmeas”.

Ulisses Pereira Chaves, (Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais) Moringa trípode com galinha, década de 1970.
Foto: Lucas Van de Beuque, Acervo Museu do Pontal.
Rosa Gomes da Silva (Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais) Gêmeas, década de 1990.
Foto: Lucas Van de Beuque, Acervo Museu do Pontal.

Se já existiam antes, com Ulisses essas imagens nascem como que pela primeira vez. Ele as recebe dos ventos, das brisas, do que vem de longe. E, até o final de sua vida, aos 78 anos, encarrega-se de expandir seus significados.

O enfoque sobre a arte e o pensamento de Ulisses Pereira Chaves é oportuno para se pensar nas múltiplas dimensões semânticas do “escondido”. Se, de certa forma, o esconder está ligado visceralmente ao seu contrário, sugerindo que há algo a ser revelado, também pode indicar uma ausência, seja intencional ou não. O escondido nos permite supor também um duplo movimento, no qual o escondido é passivo (sem lugar, ignorado, desconhecido) ou ativo (se escondendo, porque assim o deseja). Há ainda outras dimensões, quando o artista faz de sua obra mensageira do invisível (que porta qualidades que não se mostram a todos, mas apenas aos que procuram, entre os quais ele se inclui). Remete ainda aos elos comunicativos escondidos e intangíveis que se mantêm entre o artista e suas obras. Acrescenta-se ainda a essa multiplicidade de sentidos a complexidade da criação existencial e cósmica da vida e obra. Como tal, aponta também para os “escondidos” vínculos entre imaginários pré-colombianos, as peças e criaturas siamesas, como incorporações e ressurgências de inconscientes imemoriais que migram para as mãos, barro e terra dessa produção.

Traz também uma dimensão de escolha, e estratégia, quando, por exemplo, o artista decide o que deve ser mostrado e a quem (mantendo a porta entreaberta, tornando implícito que há algo ali que ele não quer exibir – ou que não deve ser visto).

Entretanto, a notável invisibilidade experienciada por Ulisses Pereira Chaves frente ao mundo das artes, e seus muitos conflitos, não dizem respeito apenas a ele. Remete a algo maior, pesado, infra estrutural. E, sobretudo, aos preconceitos que dão sustentação ao sistema de arte e cultura, reforçando critérios de exclusão e exclusividades, que estão na base das definições hegemônicas sobre o que é arte e quem pode ser reconhecido como artista. Estas são algumas entre as muitas questões que o mantém, e a outros artistas populares, à margem. Impedindo o reconhecimento de seu saber, desvalorizando as tradições aos quais ele se encontra vinculado.

Embora indignado, e expressando sua insatisfação, o artista jamais se cansou. Falando das coisas invisíveis, conversando com o céu, com as plantas, com o sol e com a natureza, Ulisses nos legou além de obras, uma visão holística de mundo, absolutamente necessária e contemporânea. Uma visão cosmológica, na qual cada parte pode ser um todo. E na qual a terra do barro, vira toda Terra.

***

Ângela Mascelani
Antropóloga, curadora e diretora de arte. Diretora e curadora do Museu Casa do Pontal, RJ, desde 2004. Doutora em Antropologia pela UFRJ (2001), Mestre em Artes Visuais pela UFRJ (1996). Publicou: O Mundo da Arte Popular Brasileira (Ed. Mauad, 2000); Caminhos da Arte Popular: O Vale do Jequitinhonha (MCP, 2008) e O que você vai levar – material educativo complementar ao ensino de artes plásticas populares (MCP, 2010, coautora). Assinou dezenas de curadorias especializadas, com montagens no Brasil e outros países. É coautora premiada de vídeos documentários, entre os quais: Parteiras do sertão – a magia da sobrevivência, (1993); Terra queimada de sangue (1987), Prêmio Tucano de Prata no Festival Internacional de Cinema e Vídeo do Rio de Janeiro e Artistas Cazumbas, segundo lugar Prêmio Pierre Verger (2020).


1 MASCELANI, Angela. O mundo da arte popular brasileira: Museu Casa do Pontal. Rio de Janeiro: Mauad. Rio de Janeiro. 2002.

2 FROTA, Lélia Coelho. Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro – século XX.  Aeroplano: Rio de Janeiro, 2005, p.406.

3 Ibid.

4 MASCELANI, Angela. Caminhos da Arte Popular: o vale do Jequitinhonha: Museu Casa do Pontal. Rio de Janeiro. 2010.

5 SIMMEL, Georges. La Parure et autres essais. Trad. Et présentation de Michel Collomb, Philippe Marty y Florence Vinas. Paris. Ed. de la Maison des sciences de l’homme, 1998, p.259.

6 Ibid, p.113

7 Todas as falas de Ulisses Pereira Chaves, transcritas neste artigo, foram ditas em encontros com a autora. O primeiro, ocorreu em 1995 e está relacionada a pesquisa que resultou na escrita da dissertação de mestrado da autora. E o segundo, em 2005, desta feita com a presença, também, de Moana Van de Beuque (pesquisadora) e Lucas Van de Beuque (fotógrafo), numa das viagens de pesquisa que resultou na escrita do livro Caminhos da Arte Popular: o vale do Jequitinhonha.

8 Trecho retirado de entrevista concedida à autora, durante o 25 FESTIVALE, realizado em Joaíma, Minas Gerais.

9 https://www.ufmg.br/espacodoconhecimento

10 Comentário de Ailton Krenak em entrevista a Roberta Souza, publicado em 17 de maio de 2020 no Diário do Nordeste online [https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/verso/futuro-presente-a-natureza-ao-redor-esta-celebrando-nossa-parada-diz-o-escritor-ailton-krenak-1.2245965]

11 DAGLISH, Lalada. Noivas da seca. Editora Unesp, São Paulo, 2006.