
Em busca de Judith: Um diálogo entre Jéssica Barbosa, Pedro Sá Moraes e Diana Kolker
1. Quem é Judith?
Jéssica Barbosa
Santa Teresa, Rio de Janeiro, Dezembro de 2017
Pai,
Como você está? Como estão todos aí? Por aqui estamos bem. Cícero completou dois meses de vida. Tem sido muito bonito acompanhar o desenvolvimento tão rápido de um bebê. Estou completamente dedicada à maternidade. O apoio do Pedro tem sido fundamental. Ele descobre a paternidade dele vivendo, mas mesmo ainda aprendendo não deixa de assumir a responsabilidade e doação que um pai também dedica.
Minha mãe tem sido muito companheira também. Chegou na semana que Cícero nasceu. Cuidou das parteiras fazendo comida a madrugada inteira, lavou toda a roupa de cama suja de sangue depois do parto, vestiu o neto pela primeira vez, numa roupa e touca feitas por ela. Na hora do parto eu vi minha irmã Geane parindo, eu vi minha avó Ideuza, muitas das minhas amigas se fizeram presentes ali comigo. E foi nesse momento que ganhei força e o Cícero nasceu.
Depois minha mãe voltou aqui para passar o natal com a gente. Não poderia ser diferente. Ela trouxe com ela um livro: Offereço meu original como lembrança de Valter de Oliveira, marido de Nubia, minha prima, filha de Tio Antonio. Eu não conheço eles ainda, mas achei o nome do livro tão bonito… Nesse livro eu vi pela primeira vez a foto de sua mãe, Judith. Você já viu essa foto? De certa forma me achei parecida com ela, vi que Cícero tem uns traços dela também. Mas achei o olhar dela um pouco triste.
Fiquei curiosa de saber sobre ela. Acho que as mulheres da nossa família revelam um tanto sobre quem a gente é…e às vezes parece que a vida é uma busca da gente pela gente mesmo, por algo que revele, que dê conta, que traduza.
De onde Judith veio? Quais os nomes de meus bisavós? Lembro de você contar quando eu era criança que ela tinha morrido num acidente de automóvel quando você ainda era bebê. Lembro de você falando também que não havia sido amamentado e que uma madrasta, Tia Elenita, segunda esposa de seu pai, tinha criado você e os outros quatro filhos dela com meu avô.
Eu decidi ir em busca de Judith. Sei principalmente que buscar por Judith, nesse tempo presente em que ela não existe mais, é principalmente buscar a mim mesma!
Te amo, Jéssica

Pedro Sá Moraes Carvalho
Pouco tempo depois do nascimento de nosso filho, Jéssica soube pela primeira vez da história verdadeira de sua avó paterna, Judith. Revelada nesse contexto, em que a vida lateja em sua beleza e fragilidade, e nossa própria sanidade esbarra em seus limites, a história dessa mãe, a mãe do pai de Jéssica, afastada do filho pela instituição manicomial, se tornou para nós incontornável.
Quantas Judiths há pelo mundo, encerradas em nome da saúde ou da lei, com metades arrancadas de si? Nós, um casal com apoio incondicional da família para celebrar cada minuto da infância de nosso filho, sentimos a cicatriz dessa mãe, tão próxima e tão distante, e percebemos a missão de falar, através dela, de tantas mães feridas. Dar voz ao ímpeto humano mais fundamental, o amor materno, interditado pelo mundo.
Judith nasceu em Rui Barbosa, cidadezinha do sertão baiano. Diz-se que foi abandonada pela mãe, e casou-se ainda jovem com Antônio Barbosa, fiscal da prefeitura de Jacobina. Teve quatro filhos, então uma gravidez de gêmeos que não vingaram, e depois mais um, o pai de Jéssica, quando então foi levada para o hospício onde permaneceu até a morte.
A imagem de Judith me faz pensar em minha avó materna, Dona Zezé, que também casou-se muito jovem. Dizem que seu marido se encantou com ela, debruçada na sacada da casa de sua mãe Balbina, costureira da elite soteropolitana, filha ilegítima de senhor de engenho e escrava-concubina. Mulheres jovens de família pobre ou remediada não tinham escolha. Se a sorte lhes apresentava o interesse de um homem em situação econômica estável, deviam erguer as mãos e oferecer-lhes seu corpo e seu futuro.
Um dia, um bilhete premiado na loteria fez de minha avó proprietária. Hoje há em Ipiaú, na região cacaueira da Bahia, uma escola municipal com seu nome.
Talvez apenas a loteria permita, entre tantas Judiths, que algumas se tornem Maria José.
Diana Kolker Carneiro da Cunha
Julia Moura Rolim. Seu nome chegou através de meu pai, carregado de perguntas, silêncios e faltas. Julia era sua avó materna. Foi internada em um manicômio em Recife, quando minha avó era ainda criança. Logo depois, meu bisavô Manoel fez um novo casamento com a filha do homem que o ajudou a se estabelecer no Brasil. Nascido em Portugal, meu bisavô veio para o Brasil fugindo de seu próprio pai, um homem muito violento, um patriarca. Manoel nutria muita gratidão por essa família que o ajudou. Foi este mesmo senhor que acolheu meu pai no Rio de Janeiro, quando ele se transferiu de Recife para cá.
Na época lembrei de uma conversa com a amiga Laura Gallo, nos corredores da faculdade de história, sobre a internação de mulheres em instituições asilares, motivadas por questões de ordens morais e disciplinares. Este dispositivo também foi útil para viabilizar interdições econômicas, anulações de casamentos, redistribuições de heranças. Era uma forma de tirar de cena, apagar, as mulheres que obstaculizavam qualquer interesse.
Um tempo depois, meu pai enviou uma foto digitalizada. Era ela. Dona Julia. Trajava vestido branco e véu. A vestimenta deixava a mostra apenas suas mãos, seus pulsos e seu rosto emoldurado pela negra e lisa franja, rente à sobrancelha. Observo a foto e seus olhos não encontram os meus. Em suas mãos, uma bíblia aberta e um terço enrolado, que pendia. Seria o dia de seu casamento? Ela não aparentava mais que 16 anos. Suas feições não lembram os traços de minha família paterna, de ascendência portuguesa. O que justificou a internação? O que motivou? Onde estava sua família? Quem eram? Como foi sua vida? Quando morreu?
Soube que seu prontuário se perdeu num incêndio que atingiu o arquivo da instituição.
Desde 2017, coordeno o projeto pedagógico do Museu Bispo do Rosario Arte Contemporânea (mBrac), situado na antiga Colônia Juliano Moreira Rio de Janerio, que foi um dos maiores manicômios do país. Imersa naquele território, conheci muitas mulheres e homens que viveram o horror manicomial. Uma das principais responsabilidades do museu, além da preservação, pesquisa e exposição de seu acervo, que tem como principal coleção a obra de Arthur Bispo do Rosario, é a atuação no território junto aos usuários dos serviços de saúde e a comunidade local, rompendo com a lógica manicomial, através de programas que convergem arte, educação e cuidado em saúde mental.
Numa tarde de 2018, Jéssica Barbosa foi ao Museu colaborar na realização de um curta metragem. Conversamos sobre os projetos realizados, em especial o programa de residência artística Casa B. Pouco depois, Jéssica retomou contato apresentando um projeto de residência para criação de uma peça teatral, motivada pela recente descoberta de que sua avó, Judith, fora internada na Colônia Juliano Moreira de Salvador quando seu pai tinha apenas dois meses. A descoberta chegou através de um livro, onde aparecia a foto de Judith. Assim, nos lançamos Em busca de Judith.


2. Por quê buscar Judith?
Jéssica Barbosa
(um telefonema, de Salvador, no início de 2019)
Oi Diana, tudo bem? Eu estou um pouco angustiada. A gente tentou ligar pra Colônia Juliano Moreira de Salvador para ter informações sobre o que de fato minha avó teve. Foi um dia inteiro de ligações, esperas, notícias de que os arquivos foram queimados durante um incêndio da unidade, de que pela data de falecimento dela os arquivos foram apagados. Aí começaram a vir também novas versões sobre a história dela. E parece que é um grande quebra-cabeças que não vai dar pra montar. Que realmente apagaram essa história de uma forma que vai ser impossível reconstituir. Mas eu fico aqui amamentando meu filho, sabe? Imaginando se, quando minha avó foi internada, tinha leite ainda nos seus seios. E como deve ter sido duro pra ela, pra meu pai, mesmo que ainda tão bebê, para os outros mais velhos, terem sofrido esse afastamento. Aí vejo uma geração inteira que adoeceu, a geração dos irmãos de meu pai. Depois da minha avó, dois filhos dela também adoeceram. Muitos atribuem à genética dela, outros ao fato de que a minha bisavó era mãe de santo. Que eles enlouqueceram porque a avó era louca e macumbeira. Entende? Eu já não sei mais os caminhos dessa busca. Mas vejo a história de minha avó em tantas outras mulheres, em muitas mulheres que passaram por Barbacena, em mulheres que passaram pela Colônia do Rio, em uma prima minha que quase viveu essa mesma história da minha avó, na tua bisavó Júlia… E aí, por mais que eu tenha a sensação de que essa peça pareça que nunca vai sair, por falta de grana, por falta de ter quem fique com nosso filho pra ensaiarmos, porque um produtor me disse que essa história de falar da avó louca não vai interessar aos teatros e centros culturais….por mais que isso tudo pareça verdade eu fico me perguntando. POR QUE PROCURAR JUDITH? E aí me dou conta de que Judith sou eu, é você, é sua bisa Julia, é Mãe Celina de Xangô, é Leide Bonfim e suas ancestrais. A minha busca não é por minha avó, mas por esse feminino que foi encarcerado como bicho, desse poder de bruxa que foi silenciado. Na verdade Diana, eu acho que nós, diante dessa nossa força criadora, estamos muito perto de Deus, ou melhor nós somos Deus, melhor ainda, somos Deusa. E, na verdade, a procura por Judith é a procura por esse feminino. Tenho certeza de que quem enlouqueceu foram os homens, sempre tão cheios de razão, tão destituídos de intuição e delicadeza. Sem medir forças com eles, isso não me interessa. Acho que procurar Judith é a minha própria garantia de saúde, é findar com certos ciclos, é ter coragem!
Pedro Sá Moraes
Rio de Janeiro, 4 de Março de 1979
Depois de alguns anos de afastamento por dolorosos mal-entendidos, meu nascimento trouxe para o Rio de Janeiro, em reconciliação, uma irmã mais velha de minha mãe, que fora em sua infância e adolescência sua presença materna mais forte. Ângela, você tem barriga limpa, teria dito ao ver o menino branquinho no berçário do hospital, você tem barriga limpa, eu escutava a história na minha infância como se fosse uma piada engraçadíssima, olha que retrógrados meus parentes, você tem barriga limpa, barriga limpa!
Aquilo que se repete, aquilo do qual escapamos e para o qual retornamos, é o território. Jéssica vem da Bahia, território de onde também vem a família de minha mãe — família de pele escura, mas social e economicamente embranquecida.
No único retrato de Judith a que tivemos acesso, o tom de sua pele foi pintado até que se apagasse qualquer traço da mulher preta, filha de mãe de santo, que ela foi. No retrato, seus olhos estão distantes.
Eu sou um homem branco. Cresci ouvindo e amando o samba que meus pais tocavam e cantavam em casa e no samba vivi minha formação de músico, convivi com os bambas, aprendi sobre a vida. Mas foi apenas através da vivência de Jéssica, da dor e do poder de sua ancestralidade, da corda retesada entre o futuro de nosso filho e o passado de sua avó, que me dei conta do tamanho da luta que atravessa gerações, e de minha responsabilidade como aliado. Por isso busco Judith.
Diana Kolker
Você está louca. Que mulher nunca ouviu essa frase? Atualmente existe um termo em inglês para essa prática: gaslighting. E é reconhecida como um abuso psicológico, dirigido às mulheres, com o fim de manipular, controlar, enlouquecer. No Brasil, até meados do século passado, antes da Reforma Psiquiátrica, muitas mulheres foram encerradas em hospícios até o fim de suas vidas. Os asilos, que antes ficavam a cargo de ordens religiosas, passaram a ser instituições médicas e orientadas pela ciência. O manicômio é parte fundamental do projeto higienista e eugenista que orientou as reformas urbanas e o ideal de Brasil moderno do início do século XX. Esses dispositivos se orientavam para a disciplina da população, com o fim de produzir subjetividades úteis ao modelo de sociedade que se buscava construir. As ideias de que existiria um papel natural da mulher – a condição de esposa e mãe – e uma condição fisiológica de fragilidade moral, que demandaria maior controle de suas paixões e emoções, produziram um léxico médico que patologizou aquelas que escaparam a tais modelos.
A historiadora Maria Clementina da Cunha,2 analisando casos de mulheres que foram internadas no início do século XX aponta que, com frequência, alguns dos sintomas apresentados como indicadores de loucura coincidiam: independência, “hiperexcitação intelectual”, dedicação extrema às suas profissões em detrimento das “inclinações naturais”. Todavia, a autora sublinha ainda as diferenças desses dispositivos de controle em relação a marcadores como raça, classe social e sexualidade. As mulheres negras foram as mais afetadas em termos quantitativos pela instituição asilar e também em termos de “tratamentos” a elas destinados. Situação que era fundamentada nas teorias da degenerência, muito em voga no país, estando as mulheres negras triplamente vulnerabilizadas pela condição de gênero, raça e classe.
Portanto, procurando Judith buscamos essas mulheres que tiveram suas vidas roubadas em nome de um projeto de nação. Procurando Judith, buscamos que esse passado não se prolongue no presente nem se repita no futuro. Procurando Judith, cuidamos dessas feridas abertas, dessas dores, dessas perdas.
3. Onde buscar Judith?
Jéssica Barbosa
Pedro Sá Moraes
Colônia Juliano Moreira, 23 de Julho de 2019
Como parte de nossa residência artística junto ao Museu Bispo do Rosario, organizamos uma pequena série de encontros para artistas, usuários e moradores das vizinhanças do museu, sobre o tema da criação e narração de histórias. A ideia era jogar com a fronteira entre o relato pessoal, a invenção, o cotidiano e o teatro, a voz e o corpo.
Um grupo deliciosamente heterogêneo, com alguns já amigos como Arlindo de Oliveira e Ivanildo Sales, misturando-se a profissionais de saúde, colaboradores, usuários… Como contar uma história usando movimentos do corpo? Como repetir a história física que outra pessoa contou? Como continuar uma história que o parceiro iniciou? Como concatenar um passeio imaginário a um heróico final de campeonato?
Frequentávamos a Colônia para ensaiar, conversar com Diana e os amigos que fizemos no Polo Experimental – centro de convivência para os usuários da saúde mental da Colônia, incluindo o Atelier Gaia, um esúdio/coletivo também para os usuários que abrange toda as ações de arte, educação e saúde administrado pelo mBrac.3 Ali começamos indagar as criações do Atelier Gaia, entender com o corpo aquele espaço imantado, aquele ar parado da Zona Oeste, as rachaduras nas paredes, o coreto com seu segurança sonolento e a igreja quase sempre fechada.
No gramado largo diante do Polo, quando não tinha futebol, cavalos pastavam sem pressa. Subúrbio do Rio de Janeiro, antes hospício, antes engenho, antes território Tupinambá.
O rio que passou em Jacobina, arrastando Judith para um manicômio em Salvador, também passou e ainda passa, agora subterrâneo, sob o bairro da Colônia. Na vizinhança, salões de cabeleireiro, um ou outro restaurante servindo prato feito, blocos do Minha Casa, Minha Vida, igrejas evangélicas, milícia. Ao longe, o outro costado do Maciço da Pedra Branca.
Rio profundo.
Sussex, 28 de Março de 1941
“Amado, tenho certeza de que estou enlouquecendo de novo. Sinto que não podemos atravessar outro daqueles períodos terríveis. Começo a ouvir vozes, e não consigo me concentrar. Então faço o que parece ser o melhor a ser feito”.4
Como Ofélia, arquétipo da mulher cuja alma encantadora é despedaçada pelo impacto contra o rochedo de um mundo masculino, Virginia Woolf enche os bolsos de pedras e mergulha no Rio Ouse.
Não é nos registros médicos, nos prontuários, nos velhos hospitais, que encontraremos Judith. Nunca saberemos de fato o que a levou ao hospício, o que ela viveu em sua internação, o que as crianças viveram na ausência da mãe.
Por isto, buscamos Judith no rio profundo, onde mergulharam Virgínia e Ofélia, por onde navegou a Nau dos Insensatos, e, por mais que, como diz Heráclito, não se molhe duas vezes o pé no mesmo rio, vidas não são átomos, mas instâncias recorrentes de um fluir entre margens seculares, rumo a um oceano futuro.
Judith não foi, ela está. Aí devemos buscá-la.
Diana Kolker
Jéssica busca Judith em seu próprio corpo, em seus gestos, em sua voz, em sua imagem. Jéssica busca Judith em sua relação com o filho. Jéssica busca Judith em seus documentos, seus vestígios, seus lugares, seus deslocamentos. Jéssica busca Judith em suas pesquisas e outras/mesmas histórias. Jéssica busca Judith na Colônia Juliano Moreira.
Eu busco Julia em Judith. Eu me busco também.
4. Como buscar Judith?
Pedro Sá Moraes
Uma vez que o tema era necessidade artística e pessoal para nós dois, a próxima e mais delicada questão seria que método e forma dar a esta busca. Pouco tempo depois do início da investigação, Jéssica me convidou para ser o dramaturgo e diretor do trabalho. Testemunha permanente, em picos e vales, de sua trajetória e reflexões e afetos, eu era a única pessoa próxima o bastante e implicada o bastante para traduzir essa busca em propostas de palavra e som e cena. Próxima o bastante para que os atravessamentos também fossem meus, o desconforto, a urgência, também fossem minhas. E também para que Jéssica, a todo momento, pudesse manter a mão no leme, e dizer sim, não, para cá, para lá… É isto!
Meses depois do início do processo estivemos na Bahia, e algumas conversas com parentes revelaram um emaranhado de narrativas que, se ajudaram a dar vida e cor a um quadro até então diáfano, também nos mostraram que a verdade “tal-como-ela-se-deu” estava irremediavelmente perdida. Dos documentos, restou uma foto e uma carta enviada pela assistente social do hospício à tia mais velha de Jéssica, revelando a morte de sua mãe. Para além disso, versões, histórias, relatos de segunda ou terceira mão, crivados de interpretação ou preconceitos, tornados em verdade pela repetição ou pela necessidade de sentido. Uma frase conhecida de Walter Benjamin (que acabou entrando na abertura do segundo ato) tornou-se uma espécie de norte: “Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa se apropriar de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.5 O sentido, portanto, nós precisaríamos fundá-lo, não no que foi, mas no que é, no presente de Jéssica e de Pedro e do país à nossa volta em perigo de tornar-se novamente um campo de internação.
“Uma criança no escuro, tomada de medo, tranquiliza-se cantarolando”6 dizem Deleuze e Guattari. O mergulho nos fragmentos de relatos, na arbitrariedade e sofrimento que marcam a vida de Judith é uma aproximação perigosa, às vezes terrível, do caos. Ao mesmo tempo, não seria justo, útil, ou respeitoso lidar com essa existência de forma leviana ou abstrata. Buscar Judith significa estar dispostos à violência do real, como clama Artaud, colocar a crueldade da vida em cena, “esta espécie de picada concreta que comporta toda sensação verdadeira”.7 O princípio que encontramos para sustentar essa empreitada, frequentemente uma caminhada às cegas, sem bússola, sob a névoa espessa, foi a canção. A canção, mesmo estranha, é uma espécie de centro estável no meio do caos. Através do princípio musical do ritmo, da ciclicidade, instaura-se um território, que também é o lugar de onde se pode sair, perder-se, arriscar-se pelo território da diferença. Quando se abre uma fresta no círculo, ou quando saímos em improviso, lançamo-nos de encontro ao mundo, de encontro às forças do futuro, “saímos de casa no fio de uma cançãozinha”.8 Jéssica solicitou, e continua solicitando, que ao relato, o fio ininterrupto de sangue que escorre desta história que foi e que é, eu responda com versos e notas e ritmos, que são ao mesmo tempo o lugar da reflexão e o lugar da tomada de fôlego para seguir adiante.
Foi como compositor que construí boa parte de minha carreira artística. O exercício da canção, a busca, dentro da ciclicidade dos ritmos e notas e versos da canção, pelos escapes e surpresas e rupturas, seja por um encadeamento harmônico inusual, pela rima menos óbvia, pela nota dissonante, foram por décadas o cerne de minha identidade artística, meu centro em meio ao caos do mundo. Até que, por volta de 2016, percebi que o leito de minha vontade de criação era mais fundo e largo do que aquilo que cabia no espaço artístico reservado às canções – qual seja o dos fonogramas, dos shows, dos videoclipes etc… Foi em 2016 que Jéssica e eu passamos alguns meses em residência artística nos Estados Unidos, sob orientação de Marina Gregory, explorando as “ações físicas”, segundo o conceito elaborado por Jerzy Grotowski. Durante esta vivência, praticávamos diariamente cantos de tradições afro-caribenhas, em que o mestre polonês havia encontrado um potencial único de integração global dos movimentos do corpo com uma espécie de ascese laica – um sentido que nomeava “verticalidade”.9 Cantávamos e cantávamos e o corpo se movia, cada vez mais livre, movido a impulsos orgânicos muito sutis.
Regressando ao Brasil, sabia que os próximos passos não poderiam se afastar da música, mas tampouco sairiam do campo expandido do teatro. Entre 2017 e 2018, com direção do mestre argentino do teatro Norberto Presta, coloquei em cena um solo baseado numa adaptação, entre a canção e a voz falada, para o Júlio Cesar de Shakespeare. Refletindo sobre o processo criativo da montagem, Norberto e eu decidimos basear o que fazíamos de Teatro-canção. Uma forma de trabalho cênico em que todas as ações, personagens, diálogos, são movidos por um sentido musical, e toda a canção é imbuída de intencionalidades e estabelece relações. O espetáculo circulou por muitas cidades brasileiras, frequentemente acompanhado por oficinas, em que eu (ora junto a Norberto, mais frequentemente só) conduzia artistas pelo trabalho físico-vocal que é hoje a coluna vertebral de minha prática artística pessoal.
Quando Jéssica me convidou para dividir com ela a criação de Em Busca de Judith, como dramaturgo e diretor, foi por interesse nessa linguagem e nessa forma de trabalhar – entre a voz cantada e a voz falada, entre o coloquial e o verso, com um sentido musical transformando toda fala em canto, todo canto em ação, todo movimento em dança.
Do ponto de vista da composição dramatúrgica, o que viemos experimentando é uma circularidade entre três elementos: um ponto originário, que são as reflexões, experiências e impressões de Jéssica na busca pela história de sua avó; as canções, cujas sementes frequentemente eclodem de modo inesperado e introduzem um campo de reflexão e atravessamentos que são onde eu mais me coloco, como artista, como pai, como cidadão; e uma terceira operação que agrega e organiza estes elementos com outras falas e ecos e mitos e atos buscando criar um arco de sentido, que seja aberto mas presente.
O resultado é forçosamente fragmentário. E achamos bom que seja assim. O teórico francês Jean-Pierre Sarrazac10 propõe para descrever o teatro contemporâneo o conceito de rapsódia. Segundo a etimologia da palavra, rhaptein, o rapsodo é aquele que costura, que ajusta cânticos, trechos, elementos díspares e heterogêneos. A rapsódia se contrapõe ao conceito Aristotélico do bom drama como um “belo animal”,11 nem grande nem pequeno demais, em que todas as partes se ajustam entre si de modo lógico e necessário, sem que a perspectiva do autor transpareça como tal. Na rapsódia, as costuras são visíveis, e o olhar, as escolhas, a ética, a reflexão do artista também o são. Não há ilusão de imparcialidade ou transparência, não se busca a absorção ou o encantamento absoluto, mas a reflexão, o questionamento, a ação compartilhada. Como num ritual, não há plateia, todos são participantes.
O ritual é uma das principais chaves de leitura para a experiência cênica contemporânea. Pesquisadores como Eugenio Barba12, Richard Schechner13 e Jerzy Grotowski descrevem as similitudes entre as artes da cena contemporâneas e vivências rituais de uma infinidade de culturas diferentes. Mais do que simplesmente relatar paralelos, alguns destes mestres preconizam uma relação de emulação ou aprendizado direto com as formas cênicas rituais de culturas ancestrais como forma de levar o performer a um estado de presença amplificado, fortalecido, capaz de atravessar a obscuridade assustadora e a luz ofuscante sem perder o passo.
Há uns meses, Jéssica, depois de repetidos enfrentamentos, durante os ensaios, com o aspecto assustador e desestabilizante da presença de Judith e de tantas Judiths de ontem e hoje, chegou à conclusão de que a única forma viável de empreender a travessia seria vivê-la como ritual. Prestar, de forma alerta e disciplinada, os respeitos devidos aos espíritos que nos atravessam e são a consistência própria de nossa realidade social e individual, em seus planos subconscientes. “É um Ebó”, disse Jéssica. O que estamos fazendo é uma oferenda para minha avó, para minha bisavó Francisca, para todas as Judiths, é um Ebó.
Assim, descobrimos que Em Busca de Judith é um Ebó. Um Ebó-Rapsódia.
Dentro do campo das religiões de matriz africana, a canção e o corpo se movem de acordo com um elemento fundamental, que instaura o estado de comunicação transcendente – e este elemento são os tambores, é o ritmo.
Também no teatro Ocidental do século XX – o que corrobora com os paralelos feitos no campo da antropologia teatral – o ritmo é um elemento crucial para a composição e o trabalho de ator. Stanislavski, já no início do século, chamava de tempo-ritmo14 uma espécie de pulsação que subjaz às emoções internas e ações externas de cada cena. Cada personagem, fala, diálogo, é caracterizado por um tempo-ritmo que se revela tanto na distribuição ao longo do tempo das sílabas e pausas, como na relação destas com os movimentos físicos, a respiração, o outro… O tempo-ritmo, para o mestre russo, é parte fundamental do que confere vida, consistência emocional orgânica, tridimensional, a um acontecimento cênico.
A partir deste conceito de tempo-ritmo, buscando trabalhar com Jéssica a relação da música (audível ou inaudível) com as falas, os movimentos, as intenções do espetáculo, elaborei um roteiro de composição, que estamos experimentando em ensaios ao longo das últimas semanas. Esta ainda não é uma metodologia definida, mas uma busca de, a partir da relação, em idas e voltas, entre a música e a dimensão oral-corpórea, descobrirmos camadas mais profundas do sentido do espetáculo – nos aproximaríamos de Judith. Eis os passos deste método.
1 – Durante muitos ensaios, Jéssica e eu (às vezes acompanhado de violão) fomos descobrindo os contrastes, os “climas”, os tempo-ritmos de cada uma das palavras e frases e trechos das primeiras cenas.
2 – A partir de gravações e da minha memória, gravei uma base musical e uma voz guia, para que Jéssica pudesse estudar o texto em relação precisa com os movimentos da música.
3 – Jéssica estudou e praticou o ritmo do texto, descobrindo as sutilezas da relação entre este ritmo e os movimentos de seu corpo.
4 – Então eu trouxe para o ensaio uma nova gravação em áudio, com todos os eventos musicais, mas sem a minha voz guia, e Jéssica trabalhou sobre esta faixa, desenvolvendo a narrativa corpo-voz sobre uma pulsação (ou várias pulsações) musical já estabelecida e internalizada.
Em Busca de Judith é o primeiro espetáculo que assino como diretor, e reconheço com imenso afeto a confiança que Jéssica deposita em meus olhos e palavras. Ouço constantemente seus questionamentos, inquietações e descobertas. Busco, a cada canção, a cada cena, ser menos um autor e mais uma antena, um organizador de afetos. Mas sei que, à medida que o processo avança, Judith é uma busca cada vez mais minha.
Diana Kolker
Eu possuía apenas um relato de meu pai, uma imagem e a lembrança de um documento manuscrito que perdi nos arquivos digitais. Busquei a imagem de Julia e a enviei para familiares com a pergunta: você sabe quem é? A maioria não fazia ideia. Aos poucos que a reconheceram pedi que enviassem qualquer pista, documento, informação, relato, lembrança. Sinto-me costurando informações dispersas, suposições, fragmentos. O esforço de apagamento dessa mulher, que nos possibilitou a vida, deixou um buraco. Esse buraco é uma ferida aberta que não sabemos onde está, mas inflama.
Vovó confiou ao meu pai seus desabafos de tristeza e perda. Papai guardou essa ausência e a entregou a mim. “O que vais fazer com isso?” – ele perguntou. Buscar Julia – respondi. Cuidar dela.
Em Busca de Judith, busco Judith, busco Julia, busco Jéssica, busco Mariinha, me busco.

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Diana Kolker Carneiro da Cunha
Curadora pedagógica no Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, onde coordena o projeto artístico-pedagógico da instituição, que inclui programas como a Casa B e o Atelier Gaia, além de compor a curadoria e a mediação dos programas expositivos. Mestra em Estudos Contemporâneos das Artes (UFF), especialista em Pedagogia da Arte (UFRGS), bacharela e licenciada em História (PUCRS).
Jéssica Barbosa
Atriz baiana, é formada em teatro pela Escola Martins Penna e em dança pela Faculdade Angel Vianna. Estreou profissionalmente com o filme Besouro (2009), ganhando o prêmio de atriz revelação no Festival de Cinema Negro de São Paulo. Também no cinema, participou de longas como Na Quebrada, Mormaço e O Pai da Rita. No teatro, trabalhou com grandes diretores como Aderbal Freire Filho e Marco André Nunes. Dirigiu ou co-dirigiu os curtas Cicatriz (2017), A Namoradeira (2019) e (re)trato (2020). Artista residente no Museu Bispo do Rosario desde 2018, prepara o solo Em Busca de Judith.
Pedro Sá Moraes Carvalho
Vencedor do Prêmio Profissionais da Música de 2016 na categoria Melhor Cantor Nacional, o ator e músico tem quatro CDs lançados e dezenas de turnês internacionais no currículo. Desde 2005, transita entre a música e as artes cênicas. Dirigido por Norberto Presta, estreou em 2018 o solo A Paixão de Brutus, uma adaptação original do Julius Caesar de Shakespeare para a linguagem do teatro-canção. A pesquisa sobre esta linguagem segue se desdobrando através do espetáculo Em Busca de Judith, em que atua como dramaturgo e diretor, e numa pesquisa de doutorado em Artes da Cena na UNICAMP.
1 OLIVEIRA, Valter. Offereço meu original como lembrança (Salvador: EDUNEB, 2017)
2 PEREIRA CUNHA, Maria Clementina. “Loucura, gênero feminino: As mulheres do Juquery na São Paulo do início do século XX” Revista Brasileira de História (São Paulo, v.9, nº18, ago./set., 1989) 121 à 144.
3 Nota editora: Administrado pelo Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, o Polo Experimental de Convivência, Educação e Cultura integra arte, educação e saúde no desenvolvimento de seus programas. Suas atividades são realizadas no Centro de Convivência, na sede do mBrac, no território onde o museu se localiza e nas redes sociais vinculadas ao Museu. Dentre seus programas estão incluídos: a Casa B (Residência artística); Atelier Gaia; o projeto de geração da renda arte, horta e CIA; o programa de integração psicossocial e visitas mediadas às exposições. Para mais informação: http://museubispodorosario.com/polo-exp/o-polo-experimental
4 WOOLF, Virginia. In: Cartas extraordinárias, Shaun Usher organização e tradução de Hildegard Feist (São Paulo: Companhia das Letras, 2014) p. 49.
5 BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história” in Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política (São Paulo, Brasiliense, 1987), p. 224.
6 DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil Platôs – capitalismo e esquizofrenia, v.4 (São Paulo, ed. 34, 1997), p.100.
7 ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo (São Paulo: Martins Fontes, 2006) p.90.
8 Mil platôs op.cit., p. 102.
9 GROTOWSKI Jerzy. O teatro laboratório de Jerzy Grotowski – 1959-1969 (São Paulo: Perspectiva, 2001) p. 232-237.
10 SARRAZAC, Jean-Pierre et al., org. Léxico do drama moderno e contemporâneo (São Paulo: Cosac Naify, 2012) p. 126-130.
11 ARISTÓTELES. Poética (Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2010) pp. 113-114.
12 BARBA, Eugenio. A Arte Secreta do Ator (São Paulo: É Realizações, 2012).
13 SCHECHNER, Richard. Between Theater and Anthropology (Philadelphia, University of Pensilvania Press, 1985).
14 STANISLAVSKI, Konstantin, An Actor Prepares (Reddich: Read Books, 2015) p.279.