
A poética do resgate
Cristiana Seixas
É no ínfimo que eu vejo a exuberância.
Manoel de Barros1
Há um campo profundo e plural do inconsciente coletivo alcançado apenas por alguns seres, como poetas, crianças, loucos, visionários, artistas, dentre outros raros. Nesse espaço, o que ocorre é a inversão: o visitante não captura, é capturado, é tocado por dimensões outras. O acesso a essa fonte misteriosa transborda as fronteiras pessoais e parece conectar leis maiores, cósmicas. Nesse campo são vivificadas memórias ancestrais, valores essenciais para sustentação dos elos sagrados. Encontro na literatura ressonâncias do fenômeno. Sophia de Mello Breyner Andresen2, por exemplo, escreve:
“Escuto”
Escuto mas não sei
Se o que ouço é silêncio ou deus
Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das planícies do vazio
Ou a consciência atenta
Que nos confins do universo
Me decifra e fita
Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco

É a consciência que, nos confins do universo, a observa. Ela sabe que precisa estar atenta e disponível para suspeitar as forças que nos rodeiam. Sophia revela que é difícil, talvez impossível, distinguir se o poema é feito por ela, em zonas sonâmbulas de si, ou se ela é apenas instrumento para que o ele se manifeste. A escritora intui a condição de acesso: “Sei que o nascer do poema só é possível a partir daquela forma de ser, estar e viver que me torna sensível – como uma película ou um filme – ao ser e ao aparecer das coisas”.3 A arte é círculo traçado em volta de algo que, com a amplificação da atenção ou com a transgressão do olhar, se reinventa.
Nesse sentido, outro exemplo é o artista plástico Vidi Descaves, autor de Tastequiet4, livro com 366 ilustrações, criadas diariamente no período de um ano. No decorrer do trabalho, sentiu necessidade de ficar mais atento ao entorno para produzir narrativas imagéticas interessantes. Ele relata, ao falar do processo de criação, que constatou ser pequeno fragmento de um todo. Percebeu que todos precisamos ser humildes e escutar mais, pois as ideias de uma pessoa não são originais, mas circulam no coletivo. Canais influenciando canais, continuamente.
“As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis” afirma Manoel de Barros.

A cada vez que visito a Casa Museu Rancho Verde, desde o primeiro encontro, fico em estado de alumbramento e confesso que as palavras são insuficientes para abordar emoções e sentidos alcançados. É um relicário do inconsciente coletivo, espaço de acessar memórias afetivas longevas, de observar quantos descartes ao longo daexistência (significativos e não), como nossas próprias histórias. O Rancho é espaço outro, deslocamo-nos da engrenagem moedora de gente do cotidiano e entramos em contato com um homem, que passou por situação delicada, sofrido pela morte de sua companheira, pelas dificuldades desde menino, pelo desamparo circundante. Pois esse ser é incomum: enxerga preciosidades no meio do lixo. Como genuíno garimpeiro, resgata objetos, devolve-lhes a dignidade e o respeito, recupera-os. Assim, numa espécie de espelhamento, se sente igualmente olhado, escolhido, resgatado, cuidado, transformado, regenerado. Ele não apenas limpa e conserta, mas transvê sua utilidade: transforma latinhas em canecas, tampa de caixa d’água em guarda-sol, espaldar de cama em porta utensílios de cozinha, geladeira em armário, dentre tantas outras veredas de releituras no grande e árido sertão da realidade.


Herdeiro da oralidade, generosamente partilha sabedorias sublimes: “somos luzes, quando nos encontramos nos iluminamos”. O dia em que conheci a Casa Museu Rancho Verde e pude ouvir o Sr. Hernandes fiquei transbordada de afeto e deslumbramento. Voltei outras vezes, só e acompanhada, em encontros propostos ou simplesmente sem compromisso, para abrir espaço para conviver e apreender outra lógica de ler e habitar o mundo. Dessa aproximação, brotou fio de confiança tecido pelas falas dos poetas que, aqui e ali, eu declamava em reverberação por suas palavras proféticas e poéticas. Sr. Hernandes então me confiou seus escritos, verdadeiro tesouro, que acolhi como quem recebe pergaminho sagrado e sangrado, nas coragens e desamparos de criança em eterna busca de seus sonhos. Nas leituras e releituras, eram imediatas as correlações com os versos de Manoel de Barros, o que me impeliu a construir um diálogo entre os dois. “Há histórias reais que mais parecem inventadas”5 escreveu Manoel de Barros. É verdade. Essa é uma delas e merece ser guardada. É o que faz esse projeto, feito de tantos seres e saberes, sensíveis e resistentes, que ainda sustentam a poética de pausar a engrenagem equivocada, descobrir e iluminar o que tem valor.
É maneira de “Guardar”, título de poema de Antonio Cícero6:
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
A poesia é linguagem que mais se aproxima do espaço não alcançado pelas palavras, pois é do campo do mistério e do inconsciente. “As coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças”.7


E é Astrid Cabral8 que menciona lucidamente que as crianças inventam o mundo e que os poetas ressuscitam a infância. Como nomear e traduzir o fenômeno que faz tantas pessoas orbitarem em torno do Sr. Hernandes, atraídas por fio invisível de encantamentos e possibilidades de recreação e recriação? Visitar a Casa Museu provoca profunda reconfiguração de valores e possibilidades. Convida a prosear com vagar, com respiro, café e bolo de fubá. Oásis no deserto da indiferença. São resgates de dimensões essenciais perdidas. O jogado fora vira material para ser olhado e transmutado. Requer tempo e vasto repertório do imaginário. Assim sendo, além de participar de alguns dos muitos encontros promovidos, para fazer parte do mosaico de experiências estéticas plurais, desenvolvi a proposta da oficina “A poética do resgate”, atividade provocadora de fios entrelaçados entre a literatura e as artesanias do cuidado da Casa Museu Rancho Verde. Em quatro horas de duração, o convite era percorrer o espaço, acessar memórias e histórias e tecer ressonâncias com trechos da literatura, como por exemplo: Manoel de Barros, Adélia Prado, Lygia Fagundes Teles, Lygia Bojunga, dentre outros. Na sequência, a ideia era realizar a oficina para capturar algum verso ou frase inspiradora e pintá-la num pedaço de madeira descartada, renovando-a e utilizando-a como veículo para avivar algo essencial. Preparamos todos os detalhes, separamos materiais, imaginamos a beleza da vivência, mas, por motivos diversos, a oficina foi adiada muitas vezes e acabou não acontecendo. Ficou viva no avesso, na intenção e no desejo. Mas, desse preparo, nasceu o diálogo entre iluminuras de dois poetas: Manoel de Barros e Hernandes José, que partilho com alegria de criança:
O lixo me salvou de um trauma.
No lixo eu encontrei a terapia que eu precisava.
O lixo me transformou
e eu transformei o lixo
em objetos de admiração.
Hernandes José Silva

As coisas jogadas fora
têm grande importância
– como um homem jogado fora
Aliás é também objeto de poesia
saber o período médio
que um homem jogado fora
pode permanecer na terra sem nascerem
em sua boca as raízes da escória
As coisas sem importância são bens de poesia.
Manoel de Barros9
Eu agradeço a transformação
que o lixo fez na minha vida.
A minha vida também foi reciclada.
Da reciclagem foi construído o Rancho Verde.
Hernandes José Silva

Quem atinge o valor do que não presta é, no mínimo,
um sábio ou um poeta.
É no mínimo alguém que saiba dar cintilância aos
seres apagados.
Manoel de Barros10
Na magia do infinito,
no verde da natureza,
um sonho verde
no império da imaginação,
no mundo da saudade,
no lixo que não vale nada.
Tudo que é velho
pode ficar novo.
Mas tudo que é novo,
um dia será velho.
Restauração ou imaginação?
Hernandes José Silva

O olho vê
a lembrança revê
e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
Manoel de Barros11
Eu nunca fui no colégio.
Eu pegava jornal na rua,
perguntava o nome das letras.
Ao passar do tempo,
aprendi a ler,
mas não aprendi a escrever.
Eu sempre contava
as minhas histórias e os poemas,
mas não escrevia.
Mas as pessoas queriam
conhecer as histórias.
Um poema não deixa a luz se apagar.
Mantém aceso o clarão
do nosso eterno amor.
Tu és a flor que renasceu
uma luz no meu coração.
Hernandes José Silva
Fez-se um silêncio branco… E aquele
Que não morou nunca em seus próprios abismos
Nem andou em promiscuidade com os seus fantasmas
Não foi marcado. Não será marcado. Nunca será exposto
Às fraquezas, ao desalento, ao amor, ao poema.
Manoel de Barros

Sozinho eu não tinha condição de ter sobrevivência.
A solidão me fez adormecer
no mais profundo sonho.
Hoje sou feliz,
mas tenho um coração vazio,
dentro dele a lembrança
e a saudade de um amor
sem fim.
Hernandes José Silva
Eu sou fraco,
mas quem está em mim
é muito forte.
Hernandes José Silva
***
Cristiana Seixas
Psicóloga, mestre em Educação, biblioterapeuta, especialista em arteterapia, focalizadora de danças circulares, consteladora familiar sistêmica. Autora do livro Vivências em biblioterapia: práticas do cuidado através da literatura, atua com linguagens sensíveis para o cuidado sistêmico. Para saber mais, acesse: www.crisseixas.com.br.
1 BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. In Biblioteca Manoel de Barros [coleção]. São Paulo: LeYa, 2013, p. 36.
2 ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. Obra poética. Rio de Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2018, p. 520.
3 Ibid, p. 901.
4 DESCAVES, V. Tastequiet. Rio de Janeiro: 2013.
5 BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: LeYa, 2010.
6 CÍCERO, Antonio. Poemas escolhidos. Rio de Janeiro: Editora Record, 1996, p. 337.
7 BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. In Biblioteca Manoel de Barros [coleção]. São Paulo: LeYa, 2013, p. 10.
8 CABRAL, Astrid. Trasanteontem. Rio de Janeiro: Editora Kd, 2017.
9 BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: LeYa, 2010, p. 147-148.
10 Ibid, p. 387.
11 BARROS, Manoel de. Livro sobre nada. In Biblioteca Manoel de Barros [coleção]. São Paulo: LeYa, 2013, p. 51.