Nº6 VIDAS ESCONDIDAS
Cintya Ferreira, Gabriel Vieira e Mariana de Lima (montagem) com Dudu, Gaby, Isadora, Karina, Kaylane, Kaylanne Rodrigues, Larissa, Maria Clara Carrielo, Maria Clara (Zameii), Renata Targino, Raquel Danielli Mota e Thais. um breve inventário de pequenos deslizes, 2020. Frame.

Um texto, três tempos

Madalena Vaz Pinto

penso que o que o professor transmite, então, não é um saber, mas um aprender, um criar. É como aprendiz, isto é, como criador (e não como sábio ou mestre), que o professor transmite enquanto pensador.

Suely Rolnik1

enquanto experiência, que nada tem de pessoal, nem de impessoal, a literatura ignora os limites estritos da unicidade do sujeito e dá à experiência a natureza de uma multiplicidade incontornável, em devir.

Silvina Rodrigues Lopes2

Cena (im) provável 1

sentada, muito circunspecta, olhando o mapa das dificuldades. os dados, os índices, as estatísticas, as previsões. analisar, perscrutar, comparar, para então concluir pelo déficit: não dá, não tem a menor possibilidade, não tem como. e vai para casa. e repete muitas vezes esse caminho. analisar, perscrutar, comparar: não dá, não tem a menor possibilidade, não tem como. e uma moinha interna, uma inquietude, um desassossego. porque tem vida lá fora. isso não dá para negar. tem vida naqueles seres que habitam a sala, que falam com você, inquirem você com o olhar. então? o que vamos fazer? é muito complicado. tem os métodos, as normas, o passo-a-passo do que deve ser feito, os resultados. mas não funciona. não resulta. eles não gostam, não querem, não se sentem afetados. o mesmo trajeto várias vezes. e uma moinha, uma inquietude, um desassossego. e se? porque tem vida lá fora. isso não dá para negar. como um começo, uma luz, um ar que passa pela fresta. e se e se? carente de direção, de pares, onde ir? onde buscar a inspiração, a fala que apoia. é. uma mudança tem de haver. uma mudança de quê? mas como? não sou eu que digo, são os números. são as estatísticas, não sou eu. não sou eu, isto que fique bem claro,  e olha o mapa, e vê os gráficos, tudo parado, nada mexe. e lê as notícias. ensino público no Brasil, tragédia anunciada e repetida. e começa a moinha, o desassossego. e se? hoje vou fazer diferente. como assim? deixa de ser doida, destemperada. vou. hoje vou fazer, hoje vou inventar, vou começar pelo meio mesmo.

Marca ativa

no que pode fazer sentido evocar uma memória pessoal, trago como marca no corpo e no pensamento a lembrança de uma sensação de impedimento, um longo e forte não. nasci em Lisboa e vivi até aos 14 anos durante a ditadura derrubada em abril de 1974. no caso da minha família, dos meus amigos e conhecidos, a ditadura não se manifestou por meio de repressões políticas e confinamentos, mas por um silêncio fundo e insidioso que se manifestava na sensação de impossibilidade e ausência de horizonte. os destinos estavam desde cedo marcados, não havia o direito de escolher, de mudar, de querer. é viva a lembrança de um diálogo repetidamente escutado quando éramos crianças: eu quero! tu queres? mas tu não tens querer! além das famílias, a igreja e a escola eram os outros pilares essenciais na manutenção do controle e na propagação de uma mentalidade fechada e culpabilizadora. a escola religiosa, então, nem se fala. quem ousasse ser diferente pagava um preço alto em culpa e solidão. esse estado de coisas matou, adoeceu e deprimiu pessoas próximas de maneira irrevogável.

Leituras, reverberações

ser professora é indissociável dessa memória. sei como a sala de aula pode ser um espaço fechado e repressor. e sei também como pode ser o oposto disso, um espaço de escuta e abertura que pode gerar confiança e mudar vidas. desde as primeiras aulas na universidade como professora de graduação, até ao momento em que passei a ser professora do mestrado, persigo, em minha prática, essa possibilidade. o mestrado profissional em letras tem uma característica importante a destacar: os alunos e alunas já são professores.as. professores.as da escola pública. isso significa que trazem consigo a experiência viva de uma realidade a ser reconhecida e acionada durante o curso. a própria configuração da dissertação mostra isso: simultaneamente pesquisa em torno de um problema identificado pelo.a professor.a, e intervenção via um conjunto de atividades na tentativa de transformá-lo. na disciplina “leituras do texto literário”, que leciono, os primeiros encontros começam pelo confronto com a instabilidade que o próprio termo ‘literatura’ instaura. começam por lidar com a pergunta “o que é literatura?”, sem pretensões de respondê-la conceitualmente, mas fazendo dela uma prática de leitura de textos que mostram, em sua potência criativa, a desimportância de definir a ‘natureza’ do literário. ensinar literatura, ou melhor, praticar a leitura literária, para ficar numa expressão menos eloquente e mais adequada, não é aplicar normas e regras sobre um texto, nem determinar as maneiras como deve ser lido. é antes assegurar protocolos de leitura, defender modos de ler que, não sendo da ordem do pragmático e do referencial, reverberam no real pelo conjunto de afetos que produzem, ao desautomatizar percepções e abrir para a possibilidade de outras formas de vida. a observação recorrente trazida pelos.as professores.as de que os.as alunos.as não gostam de ler, vai-se modificando à medida em que se percebe que os.as alunos.as não gostam porque os.as alunos.as não leem. aos poucos, essa percepção vai sendo modificada e transformada a partir de um trabalho de escuta e leitura de textos. isto não é algo que se possa ensinar, tem de ser vivido como experiência, experiência essa que muitos.as professores.as não viveram. para a grande maioria deles.as, o ensino de literatura foi pretexto para aprender a biografia dos.das autores.as, decorar características, datas e períodos literários. os.as alunos.as não tinham voz, não lhes era permitido falar, expor ideias e perplexidades, afetos.  o que tinham gostado ou não e porquê. por isso, é sempre preciso começar por aí. construir “cenas de leitura”, escutar seus efeitos e reverberações. se abrir para a escuta dos.as alunos.as, não temer o  potencial de dissenso que a leitura literária pode gerar e muitas vezes gera. perceber aí a abertura para o respeito à diferença. porque ler pode começar por ser um ato solitário, mas só faz sentido se compartilhado.

Cena (im)provável 2

ei, garotas, garotos, tudo sentado em roda. em roda professora? (eu sabia que não ia dar certo. para de ser doida.) sim, em roda. olho no olho. aqui. senta. vamos ler um texto. ai, professora, não tem coisa melhor? odeio ler. ler para quê? hoje vamos ler um texto. eu leio, vocês leem. nós vamos conversar sobre ele. conversar, professora? ou responder a perguntas? conversar. desconforto, quase silêncio. (para de ser doida, não vem com essa de mudar, mudar o quê? olha esse caos.) e começou. o texto lido. em seguida relido por todos. agora quero saber o que vocês acharam. o que vocês sentiram. silêncio. pode falar professora? pode falar. estou dizendo. e começou. fala aqui, curta, curtinha. resposta ali, e outra adiante, e mais. e falas diferentes. que não combinam. não concordam. não vão pelo mesmo caminho. e vozes, e gritos, e risos, mas sentados na roda, ninguém levantou. não precisou proibir nada. aula diferente. nem organizou, nem seguiu as regras. manter a ordem, organizar, preparar. primeiro, isso, depois isto aqui. lembra como era? tudo calado. mas triste. ninguém falava. ninguém conversava sobre o texto. não queriam saber o que você pensava. as memórias de como foi com você. as marcas. o que fazer com elas?  então? e se? porque tem vida lá fora. isso não dá para negar. risos, correrias, olhares expectantes. eu estou aqui. nós estamos aqui. e se?  há vida lá fora.

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Madalena Vaz Pinto
É portuguesa e mora no Brasil. Estudou Letras na PUC-Rio onde se doutorou com uma tese sobre os modernismos português e brasileiro. É professora adjunta da Uerj na FFP-Faculdade de Formação de Professores de S. Gonçalo e dos Mestrados Acadêmico e Profissional em Letras da mesma faculdade. Sua pesquisa concentra-se na literatura moderna e contemporânea e na formação de professores-leitores a partir de um trabalho conjunto de construção de cenas de leitura e invenção de outros modos de ler. É autora de textos publicados em livros revistas da área. Organizou o livro Gonçalo M. Tavares: ensaios, aproximações, entrevista publicado pela editora Oficina Raquel.


1 Suely Rolnik. Pensamento, corpo e devir. Uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico. Disponível em: https://www.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/pensamentocorpodevir.pdf [Acesso 19.10.2015]

2 Silvina Rodrigues Lopes. A literatura como experiência. In: Literatura, defesa do atrito. Lisboa: Edições Vendaval, 2003, p. 31.