DouAções: Ateliê de pintura coletiva em homenagem a Ivan Serpa, 12 de outubro de 2011. Núcleo Experimental de Educação e Arte do MAM Rio (2009 – 2013). Foto: Ignes Albuquerque e Taisa Moreno
DouAções: Compartilhando de estado de criação
Sabrina Curi
[…] Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.”
Manoel de Barros1
Era uma belíssima tarde de primavera, dia 12 de outubro de 2011, e por ocasião do dia das crianças o Núcleo Experimental de Educação e Arte do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro homenageou o artista e professor Ivan Serpa. O evento transformou os jardins do museu em um ateliê a céu aberto, onde formas e cores celebraram esse espaço suspenso de criação coletiva, e a memória da história daquele lugar cedia espaço para o presente acontecimento, transcendendo o devir criança e o ser artista, para um estado pleno da mais pura criação.
“Aulas livres de pintura para criança”, esse foi o título dado por Ivan Serpa ao curso que ele ministrou no MAM nos anos 1950. Convidado pelo museu em 19522, o artista, com apenas 29 anos, iniciava a carreira ligando seu nome a uma instituição recém-inaugurada, mas que buscava romper com a tradição, criando um espaço de vanguarda para a nova geração da arte brasileira. Dos pequenos pintores aos futuros grandes artistas, Ivan em pouco tempo ampliou seu curso ao público adulto e reuniu em suas aulas artistas como Aloísio Carvão, Hélio Oiticica, Waltercio Caldas, entre outros, que logo foram reconhecidos pelo cenário da passagem da arte moderna para a contemporânea. A inquietação experimental do mestre Ivan Serpa aplicada à educação, encorajando o uso da forma livre das tintas e o acolhimento às mais diversas maneiras de expressão na arte, em muito inspirou a fluência criativa daquela tarde de outubro.
DouAções: Ateliê de pintura coletiva em homenagem a Ivan Serpa, 12 de outubro de 2011.
Núcleo Experimental de Educação e Arte do MAM Rio (2009 – 2013). Foto: Ignes Albuquerque e Taisa Moreno.
Nesse dia, além das tintas e da grande lona que era pintada por pais e filhos, os jardins de Burle Marx foram parte importante da ação, ampliando o espaço da atividade de forma integrada entre a memória de Serpa e o belo cenário onde tudo acontecia. Tecidos coloridos das mais diversas texturas redimensionaram as cores da grande pintura coletiva feita no chão para um espaço tridimensional, onde árvores tão bem planejadas pelo grande paisagista se reorganizaram em um território poético, transformando aquela paisagem numa grande pintura. Nesta visão, a natureza deixou de ser cenário e passou a ser parte do acontecimento artístico coletivo.
Um pincel, muitas tintas e cores, uma paisagem, liberdade, espaço de criação em sua mais pura concepção – assim se resume o acontecimento daquela tarde de DouAções, o ímpeto naífe da inspiração primeira da arte e a vontade criativa que impulsionou todas as crianças, adultos-crianças, crianças-artistas, artistas-adultos, por todos e para todos, um Curso ou Acontecimento Livre de Pintura, inspirado como memória viva em Ivan Serpa.
DouAções: Ateliê de pintura coletiva em homenagem a Ivan Serpa, 12 de outubro de 2011. Núcleo Experimental de Educação e Arte do MAM Rio (2009-2013). Foto: Ignes Albuquerque e Taisa Moreno.
O programa DouAções nasceu junto com o projeto do Núcleo Experimental de Educação e Arte, em 2009, no MAM Rio de Janeiro. Ouso até dizer que, de todos os programas, esse era o que melhor expressava o DNA e a inspiração essencial da filosofia estrutural do Núcleo Experimental.
A começar pelo próprio nome, DouAções, neologismo que funde as palavras doar e ações, possibilitou um encontro semântico transbordado de significados e potencialidades para interpretações e invenções de futuros.
Antes de mergulhar em memórias e impressões dos acontecimentos específicos, cartografo aqui alguns conceitos e características que perpassam e atravassaram todo o programa DouAções.
Coletividade / Solidariedade: Processos coletivos – equipe, artista, público – mergulhavam na proposta transformando-a num verdadeiro acontecimento solidário da arte, criando não apenas a realização de um evento, mas uma prática artística coletiva ativada por catarses/acontecimentos singulares de criação. Cada programa era inaugural em si, trazendo suas inesperadas especificidades, sempre surpreendendo pela força da coletividade, daí ser a poética do acaso provocadora e provocada por esses encontros. O exercício experimental da liberdade era atualizado pelo sentido de solidariedade nas formas estética e ética do compartilhar vontades e expressões indissociáveis das interações sociais e pessoais, fundamentais para as práticas artísticas e pedagógicas contemporâneas.
DouAção artística: Nada seria possível sem a incrível e verdadeira generosidade dos artistas, que compartilharam sua arte e se tornaram cúmplices dessa trajetória: Marcos Cardoso, Edmilson Nunes, Carlos Vergara, Guilherme Vaz, Laura Eber, José Bechara, Manuel Caiero, Yanomine, Ernesto Neto, Cruz Diaz e muitos outros, além dos homenageados Ivan Serpa e Hélio Oiticica. Cada artista concebeu e/ou inspirou o DouAções de forma singular, todos amparados por suas poéticas artísticas, encarnadas das mais variadas formas criativas, à luz de revelações inesperadas da arte como acontecimento e compartilhamento de estado de criação.
Diálogo com o artista, a história e o contexto: O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro foi palco de diversos acontecimentos da vanguarda artística brasileira. Os programas e pesquisas do Núcleo Experimental buscavam dialogar com essa história como potência de agir. Assim, o legado de Hélio Oiticica e Ivan Serpa fundamentam referências tanto para as nossas práticas artísticas, pedagógicas e poéticas, como para a importante genealogia e construção simbólica daquele território-museu. A presença e a memória desses artistas alimentaram as bases poéticas e experimentais do Núcleo como laboratório vivo para ativações e experimentações do contemporâneo da arte que até hoje ecoa no MAM.
Distância zero – artista e público: O conceito “distância zero”, segundo o artista/compositor Guilherme Vaz, um dos cofundadores com Frederico Morais, Cildo Meireles e Luiz Alphonsus da Unidade Experimental em 1969 no MAM, busca romper as barreiras entre arte e público, criando zonas híbridas do sentido de criação e recepção entre experiências participativas e as práticas experimentais artísticas.3 Inspirado por esse conceito, o DouAções sempre provocou novos encontros e situações entre os artistas e os diversos públicos, possibilitando que ambos se tornassem cúmplices do mesmo tempo-espaço de criação. Vaz, da sua parte, ministrou um laboratório especial para o DouAções dentro do Bloco Escola resgatando a memória da “distância zero” a partir da relação experimental entre artista e sociedade, relembrando a história da Unidade Experimental. Do Brasil à África, o artista Yonamine, que na ocasião estava participando da exposição Terceira Metade4, também realizou um workshop de produção de “tatuagens” em latas, gerando um mágico efeito de composição musical que remetia aos sons de uma floresta, além de projeções de luzes e sombras produzidas a partir desse material.
Arte como pedagogia em si mesmo: Não pretendíamos criar um evento pedagógico em paralelo, ou interpretar as práticas artísticas a partir dessa vertente, mas reconhecemos e defendemos no programa que cada arte tem sua própria pedagogia. Assim, não realizamos um DouAções parecido com o outro. Formas, formatos, propostas – todos procuraram dialogar com as práticas e os pensamentos diversos e específicos de cada artista envolvido, acolhendo assim a dimensão ética de acontecimento de múltiplas vozes como parte da proposição.
Museu ao avesso: Assim como os jardins de Burle Marx são indissociáveis da arquitetura de Affonso Reidy, o DouAções explorou o museu sem paredes nas suas mais diferentes camadas poéticas e históricas, buscando atualizar para o contemporâneo o campo aberto do MAM (como um todo) como lugar de criação. Todos os espaços foram explorados como potência de estados poéticos de criação. Assim, vários grupos eram convidados para uma escuta ambiental, tal como a visita à “cachoeira viva” e potente na sala das máquinas do ar condicionado no subsolo do MAM. A multissensorialidade da arte se expandiu como respostas poéticas às exposições e ambientes dentro e fora do museu. Uma tarde de desenho, música e dança poderia acontecer tanto nas instalações no salão monumental do museu como as experiências na exposição do José Bechara, Elisa Bracher – quanto nos jardins. Muitas intervenções artísticas participativas foram concebidas e compartilhadas pelo Núcleo como respostas específicas aos espaços e estruturas arquitetônicas do MAM. Desde o antigo Bloco Escola à acústica dos pilotis do museu, diferentes aspectos do próprio prédio foram tomados e transformados em suporte para esculturas vivas coletivas, como a intervenção com tecidos coloridos proposta pela artista Gabi Gusmão.
O programa Dou-Ações pode ocupar e usufruir de todos os espaços do museu como territórios de afetos e criação compartilhada. A reversão do avesso do avesso do museu se dava tanto nos espaços expositivos, do fora-dentro das paredes envidraçadas do museu, quanto nas relações convencionais de artistas-criadores e sociedade de espectadores.
DouAções. Gabriela Gusmão. Território do porvir. Intervenção para a DouAções: Experiências no labirinto realizada em colaboração com a exposição Hélio Oiticica: Museu é o mundo de 20 de novembro de 2010. Núcleo Experimental de Educação e Arte do MAM Rio (2009-2013). Foto: Jessica Gogan
Objeto ferramenta-poética: Como obras em si mesmos, como conceitos ou como catalisadores das ações, os objetos como ferramentas-poéticas instauraram novos territórios criativos e registraram encontros de linguagens. A artista Laura Erber passou meses antes de sua exposição mandando telegramas para o curador do MAM em que questionava e explorava o museu, o contexto contemporâneo e a arte, através de cartas-obra. Através da generosidade da Laura para a proposta do Núcleo, estas cartas tomaram forma de uma carta-impressão em braile – um pensamento plástico e objeto estético a ser decifrado só para quem não vê. Da mesma forma, a artista Virginia Motta (também participante do Núcleo) compartilhou seu projeto Biblioteca de Afetos com livros ativos de memórias e histórias de vida. Nesse sentido, tem-se também a obra-mesa do artista Ernesto Neto, Lugar da criação e semente criada, emprestada ao Núcleo por um ano e transformada em um território simbólico e poético de encontros. A Basemóvel levo mesa B, concebida pelos artistas Vitor Cesar e Enrico Rocha, foi idealizada para o Núcleo como obra-ferramenta conceitual, que se tornou em si um campo-dispositivo ativador de espaços de convivência para ações itinerantes do projeto, dentro e fora do MAM. Ou ainda, por ocasião da mostra Terceira metade, o artista português Manuel Caeiro presenteou o Núcleo com uma pintura-aula aberta ao público, elaborando passo a passo, a partir da tela em branco, a construção de suas estruturas pictóricas, em completa DouAção e partilha do seu processo e prática artística. Em ato ainda mais simbólico e generoso, o artista literalmente doou a tela (ainda inacabada) para ser leiloada em favor da Associação de Amigos do Museu de Arte Moderna (ASSMAM) gerando recurso extra para o Núcleo e suas atividades diante das dificuldades de apoio e patrocínio.
Manual Caeiro. Pintura-Aula. DouAções Yonamine e Caeiro realizado em conjunção com a exposição Terceira Metade. 20 de fevereiro de 2011. Núcleo Experimental da Educação e Arte do MAM Rio (2009-2013). Foto: Taisa Moreno.
As lembranças chegam cheias de cheiro, sentimentos, cor, forma, emoção…
Os sons da cuíca da pequena bateria mirim Pimpolhos da Grande Rio, ecoando embaixo dos pilotis do MAM, ambientaram a alegria das crianças artistas-artesãs, como num ritual preliminar do ato criativo daquela inesquecível manhã de janeiro de 2010. Já em clima de carnaval, os artistas Marcos Cardoso e Edmilson Nunes transformaram o pilotis do museu em um verdadeiro barracão de escola de samba, promovendo uma ação coletiva com a participação da força criativa dos saberes populares da cultura do carnaval, para um dos principais cenários da história da arte do Rio de Janeiro. Em pouco tempo, um Fusca 1972 foi transformado em uma verdadeira instalação contemporânea, recoberta de adereços e enfeites, que poderia perfeitamente integrar uma ala de Escola de Samba, assim como uma exposição de arte. A potência da proposta de Marcos Cardoso e Edmilson trouxe para o MAM a alegria e a liberdade da cultura do samba, dissolvendo as fronteiras da arte contemporânea com a vida e a riqueza cultural carioca. Confundiam-se ou entrelaçavam-se as memórias do Hélio Oiticica-Parangolé com a própria força da existência, alimentando e possibilitando desdobramentos encantadores da potência das ativações de passados e futuros do MAM.
Marcus Cardoso e Edmilson Nunes. DouAções. 23 de Janeiro de 2010. Núcleo Experimental de Educação e Arte do MAM Rio (2009-2013).
E como falar de carnaval na genealogia do MAM sem lembrar um dos programas DouAções que realizamos em homenagem a Hélio Oiticica? O cenário era perfeito e impregnado de memórias, de afetos, de encontros potenciais entre o passado, o presente e o futuro, um território irresistível de possibilidades criativas e dicotomias éticas e estéticas prontas a serem ativadas e transformadas num verdadeiro laboratório experimental de práticas artísticas de seu tempo e, por que não?, atemporal em sua própria existência.
Por ocasião do encerramento da exposição do Carlos Vergara (2010), o Núcleo realizou o DouAções em homenagem a Hélio Oiticica, não apenas pela coincidência da amizade dos dois artistas e suas obras – o parangolé de Oiticia ou Cacique de Ramos de Vergara – mas também por toda a sinergia que confluía naquele momento. Estávamos a poucos dias do Carnaval! Os jardins do MAM já haviam se tornado palco dos ensaios da Orquestra Voadora, que reunia centenas de pessoas ao final das tardes daquela despedida do verão carioca.
As crianças da ONG Casa da Arte da Mangueira, convidadas pelo projeto, participaram da oficina Parangolés Oiticica – Faça você mesmo, que propunha uma interação da arte contemporânea com a plasticidade e as alegorias do carnaval. Mas elas foram muito além disso! Magicamente empoderadas pelas capas/parangolés de Oiticica, as crianças dançavam e brincavam como numa coreografia performática contemporânea, encarnando a liberdade artística de Hélio. O que se vivia e via era um verdadeiro ritual convocando todos a participarem daquela bela celebração.
Também papéis e lápis coloridos foram oferecidos ao público, para serem geradores de perguntas. Em pouco tempo, centenas de frases e desenhos foram espalhados, presos nos parangolés e no jardim do entorno, quando todos foram convidados para visitarem o museu levando seus parangolés e perguntas. Entre música, dança, arte, memória, adultos, artistas, crianças, surge uma pequena menininha vestida de parangolé e carregando a seguinte frase presa em suas costas: “Você já brincou hoje? Quer brincar comigo?”. Ao ler essa frase, meu campo de compreensão do que é a arte, da sua potência e possibilidade, ultrapassou todos os limites, me fazendo perceber que a arte é, acima de tudo, um acontecimento do encontro do ser com o seu mais profundo ato de criação.
DouAções e Cooperações de saberes realizados em conjunção com a exposição de Carlos Vergara, 6 de março de 2010.
Núcleo Experimental de Educação e Arte do MAM Rio (2009- 2013). Foto: Jessica Gogan
Ainda naquela tarde, o grupo Galpão Aplauso apresentou uma performance em homenagem ao artista, trazendo os Parangolés (Faça você mesmo, Oiticica) como protagonistas de suas respostas poéticas do corpo e da arte. Enquanto isso, a Orquestra Voadora continuava embalando a tarde, todos cantavam e dançavam com alegria. Ao final da apresentação, os jovens do Aplausos convocaram o público para uma “visita silenciosa” à exposição do Carlos Vergara, provocando uma experiência de desaceleração do tempo que levou o público da catarse coletiva da celebração ao estado individual da experiência com a arte. Sim, essa era a proposta, provocar diferentes experiências com arte, novos estados de criação.
Encerramos o dia com o programa Diálogos – Cooperações de Saberes, com a participação do artista Carlos Vergara, do professor e pesquisador Felipe Ferreira (UERJ), do curador do MAM-Rio Luiz Camillo Osório e com mediação do coordenador geral do Núcleo Experimental, Luiz Guilherme Vergara, que trouxe o tema das influências do carnaval na obra do artista e as diferentes ramificações do carnaval na cultura contemporânea.
DouAções e Cooperações de saberes realizadas em conjunção com a exposição de Carlos Vergara, 6 de março de 2010. Núcleo Experimental de Educação e Arte do MAM Rio (2009- 2013). Foto: Jessica Gogan
A experiência do programa DouAções com José Bechara ocupou diretamente a própria exposição do artista, Fendas5 (2011). Diferentes artistas e pesquisadores foram convidados a explorar a grande exposição do Bechara como laboratório experimental de produção e criação de respostas poéticas ativadas por meio do entrelaçamento de linguagens, som, corpo, texto e desenho. Um dos mais interessantes aspectos desse programa foram os encontros promovidos entre artistas e pesquisadores de diferentes meios de expressão, como foi o caso deste DouAções, que reuniu Leonardo Stefano (músico), Madalena Vaz Pinto (pesquisadora em Literatura), Andreza Bittencourt (atriz), Anita Sobar e Leonardo Campos (artistas visuais), além do próprio público, que também se tornou protagonista desta ação. Não se deve esquecer ainda a performance especial para um piano de brinquedo, de John Cage, realizada pela artista Vera Terra. Uma comunidade artística, com diferentes talentos, se formou e se juntou ao Núcleo para explorar diretamente com o público as múltiplas formas de expressão no encontro de linguagens e exercícios experimentais de liberdade de criação coletiva.
O silencioso salão monumental logo foi ocupado e transformado, e em pouco tempo tomou a forma de um belo acontecimento de improvisações artísticas, sintonizando intuições na mais espontânea e experimental afinação de sinergias dos acasos. O encontro de diferentes práticas artísticas entrou em ressonância completa com a exposição do Bechara, transformando e ampliando o sentido de expor e do museu para o lugar de multiplicação de tempos e estados de criação coletiva.
A princípio, pequenos grupos foram formados, cada qual assumindo uma interface criativa de ocupação e ativação daquele território. Depois de se reunirem em pequenos clãs, os grupos foram surgindo no salão e de forma misteriosa (imprevisível) cada qual assumiu um espaço, anunciando silenciosamente que ali aconteceria algo, mas que nem os participantes saberiam ao certo o que seria de fato. Em poucos minutos, iniciou-se um belo acontecimento de potência inusitada do risco do experimental. Enquanto os sons dos bancos batendo e se arrastando no chão, conduzidos pelo músico Leonardo e seu pequeno grupo, quebravam o silêncio do museu, ecoava um sinal de entrada para o grupo de expressão corporal. Assim, dava-se a forma mais autêntica e existencial de manifestação e resposta poética para o conjunto ambiental da obra de Bechara. Enquanto isso, um outro grupo tomou partido das sombras do conjunto de esculturas tensionadas pelo equilíbrio instável das estruturas metálicas, projetando-as como redesenhos sobre papéis brancos colocados ao rés do chão. Ali, por uma outra via silenciosa, os participantes puderam materializar graficamente a poesia e ritmos estruturantes de suas próprias interpretações criativas na passagem plástica de um discurso artístico tridimensional para um bidimensional.
Simultaneamente, poesias e textos foram lidos sincronizando a coreografia poética em resposta ao encontro da arte com o público e, por que não?, do artista com sua própria obra. Afinal, Bechara estava também presente e pôde revisitar, com surpresa, seu próprio trabalho sob a perspectiva de múltiplos olhares e vozes, como campo gerador de criação de novas e outras interpretações.
DouAções. Pipas cinéticas: Cores no espaço: um encontro com Carlos Cruz-Diez em colaboração com Casa Daros. 7 de maio de 2011. Núcleo Experimental de Educação e Arte do MAM Rio (2009 – 2013).
E é retornando aos jardins do MAM que encerro essa genealogia poética das minhas memórias, relembrando o DouAções realizado, em parceria com a Casa Daros, com o artista franco-venezuelano Carlos Cruz-Diez e sua intervenção Pipas cinéticas: Cores no espaço. Com a ajuda de Douglas, Jefferson, Rodrigo e Telto, moradores da comunidade do morro do Palácio em Niterói, o público foi convidado a confeccionar suas próprias pipas com desenhos cinéticos criados pelo artista. A alegria dos pais, revivendo sua infância e relembrando com seus filhos o ofício de confeccionar uma pipa, marcou essa tarde. Todos participaram, e a atividade resgatou a brincadeira como ofício de crianças e adultos, um lugar comum da criação, onde a arte mais uma vez é mediadora de inesquecíveis encontros. Ao final, todos soltaram suas pipas expandindo o lugar da criação e transformando os céus do MAM em um verdadeiro espaço poético suspenso, celebrando a arte, a forma, o conceito e a criação!
Carlos Cruz-Diez (1923) é um dos principais expoentes da arte cinética mundial, movimento das décadas de 50 e 60. Sua reflexão e sua pesquisa artística demonstram que a cor, ao interagir com o observador, se converte em um acontecimento autônomo capaz de invadir o espaço sem a ajuda da forma. Mais uma vez, a cultura popular é tomada por um artista-propositor como suporte de sua linguagem e mantendo a estética solidária da “distância zero” com a sociedade.
DouAções. Pipas cinéticas: Cores no espaço: um encontro com Carlos Cruz-Diez em colaboração com Casa Daros. 7 de maio de 2011. Núcleo Experimental de Educação e Arte do MAM Rio (2009 – 2013).
Não são poucas as memórias que trago da experiência que vivi no projeto do Núcleo Experimental de Educação e Arte do MAM-RJ ao longo dos três anos de existência, e tenho clareza que minha vida, e não digo apenas a vida profissional, é dividida em antes e depois dessa experiência. O Núcleo foi uma verdadeira escola, lugar onde tive espaço de aprender experimentando, verdadeiro laboratório de arte e de educação que faz parte do meu presente, faz parte do que sou. Não é passado, vivo e trago essa experiência para tudo que faço hoje e tenho uma incrível sensação de que serei Núcleo, em parte de tudo que sou e serei pra sempre. Ficam aqui meus agradecimentos mais sinceros aos meus amigos “nucleares”, protagonistas tanto quanto eu dessa história, dessa mais pura e verdadeira DouAção em forma de arte, dessa arte como experiência e dádiva da vida!
DouAções. Pipas cinéticas: Cores no espaço: um encontro com Carlos Cruz-Diez em colaboração com Casa Daros. 7 de maio de 2011. Núcleo Experimental de Educação e Arte do MAM Rio (2009 – 2013).
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1 BARROS, Manoel, em ‘Sobre Importâncias’, Memórias Inventadas: as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008
2 Ivan Serpa ministra suas primeiras aulas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ) em 1952, exerce sistemática atividade didática, em especial no ensino infantil. In. enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa8922/ivan-serpa
3 Guilherme Vaz. DouAções, Julho 2011
4 Terceira Metade. MAM/RJ 01/03 – 10.04/2011. Curadoria de Marta Mestre.
5 Proposta do DouAções: José Bechara: Contaminações Entre Linguagens. Por ocasião da Exposição do José Bechara: Fendas, MAM/RJ 24/11/2010 – 30/01/2011.