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Vistas do alto da Passarela 9, na Avenida Brasil. Projeto Irradiações, Núcleo Experimental de Educação e Arte do MAM Rio. Foto: Gabriela Gusmão, 2010.

Empatia por Contágio – Liberdade é Pintar o Muro da Vida

Gabriela Gusmão

Desafio de um projeto de educação e arte: espalhar energia radiante.

Como produzir um campo magnético e atrair a atenção de um grupo de adolescentes para uma conversa sobre arte, numa tarde escaldante?

Um meio: fazer do seu campo uma antena, um corpo irradiante.

O nome proposto pelo Núcleo Experimental de Educação e Arte do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro sugere uma dinâmica de transmissão e interação: Projeto Irradiações.1

De agosto de 2010 a fevereiro de 2011, participei desse processo coletivo de ação, reflexão e compartilhamento de experiências. Em reuniões semanais discutíamos as mediações e encontros entre sociedade e arte. Nossas conversas sobre a relação entre os percursos no museu e na cidade instigaram particularmente a minha prática. As ideias geradas no grupo de estudos experimental se refletiram nas minhas ações na ONG Luta pela Paz2, situada na comunidade Nova Holanda, no Complexo da Maré, e no Centro de Artes Terreirão3, no Recreio dos Bandeirantes.

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Fonte: Google Maps

As duas instituições se localizavam em pontos opostos da cidade e iniciei minha ação na Maré.

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Saída da Passarela 9, na Avenida Brasil, chegada ao Complexo da Maré, Projeto Irradiações, Núcleo Experimental de Educação e Arte do MAM Rio. Foto: Gabriela Gusmão, 2010.

Logo vi que para trabalhar naquele complexo com um grupo irradiante de jovens seria necessária uma dose tripla de eletromagnetismo.

Cheguei receptiva e me mostrei curiosa sobre as constantes e sobre as novidades daquele lugar. Nos apresentamos e comecei a fazer perguntas sobre o que cada um tinha visto no caminho, pelas ruas. Eu procurava imaginar os trajetos que aqueles jovens autores de suas caminhadas tinham seguido antes do nosso encontro.

Refiz na memória meu próprio percurso por uma rua cheia de estruturas improvisadas, abrigos, gambiarras, inventos e traquitanas móveis de todos os tipos. Naquela vastidão, percebo o extraordinário nos objetos precários e meu objetivo era irradiar essa aptidão para a poética da insignificância, que aprendi com Manoel de Barros.

Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Pra mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias (do mundo e as nossas).”4

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Prancha de musculação encontrada numa esquina do Complexo da Maré. Projeto Irradiações, Núcleo Experimental de Educação e Arte do MAM Rio. Foto: Gabriela Gusmão, 2010.

É vasta minha experiência em reconhecer graça no que parece banal. Para elaborar o projeto Rua dos Inventos, dediquei quase uma década a um vagar sistemático, munida de uma câmera 35mm, um gravador, caderno, lápis, corpo alerta e mente distraída o suficiente para manter o olhar desperto. Iniciei esse processo imersivo no Rio de Janeiro em 1998, onde e quando já havia no espaço público uma clareira aberta para o livre ambulatoriar.

AS RUAS E AS BOBAGENS DO NOSSO DAYDREAM DIÁRIO SE
ENRIQUECEM
VÊ-SE Q ELAS NÃO SÃO BOBAGENS NEM TROUVAILLES SEM
CONSEQUÊNCIA
SÃO O PÉ CALÇADO PRONTO PARA O DELIRIUM AMBULATORIUM
RENOVADO A CADA DIA5

A ideia de “caminhar to and fro sem linearidade”, a abertura para “poetizar o urbano” já estão presentes no Delirium Ambulatorium proposto por Hélio Oiticica para o Mitos Vadios de Ivald Granato, em 1978.

De 1998 a 2006, meu prazer no delírio das ruas revelou objetos sem nome no dicionário e, assim, construí um inventário de inventos. Corri pra não levar tiro, conheci muita gente boa e aprendi nas esquinas o que educação formal nenhuma ensina. Por toda a minha vida, um guarda-chuva cobrindo um banquinho ou um equipamento de musculação capenga me atingem como um poema.

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Terreno baldio onde foram realizados percursos e reflexões durante o Projeto Irradiações, Núcleo Experimental de Educação e Arte do MAM Rio. Foto: Gabriela Gusmão, 2010.

Voltando à Maré, 2010. Fixo o olhar num arame na porta de uma casa e logo me lembro que ali não se deve fixar o olhar em porta nenhuma. Nunca se sabe de quem é a casa. Eu tinha acabado de ouvir uma conversa na padaria. Prestei bem atenção quando o caixa estava contando pra uma senhora:

– O cara me apontou uma pistola. Ele perguntou: “perdeu alguma coisa aqui?”
E a senhora:
– Te apontou a pistola? E você?

Pois é, e eu depois dessa saí andando. E, claro, não olhei mais pra porta nenhuma. Nem fitei ninguém por ali. Questão de respeito.

Mas minha curiosidade era ouvir daquele grupo de jovens o que eles tinham visto pelo caminho. Por isso insisti na pergunta.

Algumas respostas:
– Um monte de galinhas no meio da rua.
– Eu vi a passarela, uma barraquinha, barraca de camelô, DVD na passarela, era muita coisa.
– Vi o chão, a pracinha, a igreja, o batalhão, galinha.

Outro perguntou:
– Cê não viu as casas, não?
– Não, não olhei.
– Viu alguma placa?
– Vi, lava-jato.
– Cê não viu lixo, não?
– Não reparo essas coisas, não.

Papo vai papo vem, sugeri que formassem frases sobre o cotidiano na comunidade e o que gostariam que fosse diferente. No início, timidez e silêncio. Mas não demoraram a soltar a fala:

– Esse mundo devia dar mais oportunidade de trabalho.
– A gente deveria ter mais liberdade.
– Liberdade de ir e vir sem alguém estar desconfiado, porque chegando lá na frente tem o valão e é outra facção.
– Antigamente a gente passava por lá, mas hoje a gente tem medo.

A falta de liberdade, a presença do valão como limite do espaço, o desejo de circular sem medo se referiam diretamente aos percursos. Eu escrevia as frases que ouvia para registrar o processo e para conhecer as pessoas. Enquanto falavam, eu anotava: paz, capacidade, força de vontade, esperança, liderança, respeito, honestidade, sinceridade, força, igualdade, amor, sonhar, Deus, companheirismo, união, carinho, liberdade, justiça, sabedoria, compaixão.

Ali havia um único verbo: sonhar. Considerei significativa a quase ausência de ação no grupo de palavras. Muitas representavam de algum modo um ideal sem movimento que conduzisse à sua conquista. Perguntados sobre o que gostavam de fazer, vários disseram que não conseguiam pensar em nada que realmente lhes agradasse.

Aumentava minha curiosidade sobre as viagens internas de cada um, e o processo já estava tomando curso de terapia coletiva. Sorri num momento em que todos falavam ao mesmo tempo e parei minhas anotações. A mistura de vozes me conduziu a um diálogo interior paralelo com reflexões sobre o projeto, a comunidade, o lugar da educação no museu, o medo de levar um tiro, o papel da obra de arte, o papel nos becos, a arte nos becos, a Avenida Brasil, as expectativas dos jovens e as minhas.

Em meio ao burburinho, comecei uma prosa delirante e silenciosa. Pensamento voou, topei com um chamado da Senhora História da Arte. Falando em silêncio com essa entidade regente, vi que meus passos ali na Maré tocavam em pegadas astrais de conceitos e ações de alguns de meus extemporâneos que mais admiro: Estamira, Stela do Patrocínio, Arthur Bispo do Rosário, Michel de Certeau, João Paixão, Jean Michel Basquiat, Hélio Oiticica, Manoel de Barros, Guy Debord, Dona Pequena, João do Rio, Profeta Gentileza, Chacrinha.

Tomo pra mim as palavras do velho guerreiro Abelardo Barbosa e penso baixinho pra somente a Senhora História da Arte escutar. Não vim mesmo para explicar e sigo como uma andarilha das ideias em busca da extemporaneidade6, aqui sugerida como a dimensão na qual os seres de diferentes eras podem se encontrar e entrar em sintonia irradiando ideias que percorrem níveis interpessoais, transmitindo sensações, compartilhando encantos, espalhando poesia, expandindo conceitos, contagiando empatia.

Essa linha de associações me guiou ao longo do projeto Irradiações e segui rigorosamente o método livre de produção de experiências coletivas: Empatia por Contágio.

Com um sopro, apaga-se o diálogo interior. Voltei a atenção para as vozes que falavam de seus percursos. O que foi dito, os passos esquecidos, as lembranças (in)ventadas, o tempo vivido e a experiência da escuta trouxeram clareza ao processo.

Empatia por contágio é o caminho para um ato criativo coletivo com um grupo de jovens numa tarde de calor escaldante.

Frente a um momento de bagunça geral, saquei o livro Rua dos inventos e comecei a conversar sobre as estruturas aparentemente capengas que me fazem reconhecer aquele território como um sistema irradiante. O que me atrai naquela rua agitada não é uma ilusão visual de encantamento pelo exotismo. O que me intriga é o alto coeficiente de transformação que está ali espalhado. Algo se transforma em mim quando dois objetos que podiam estar no lixo se tornam uma terceira coisa. Algo se transforma em mim quando eu saio da minha zona de conforto e caminho por um beco onde eu reconheço um grau de energia depositado no fazer de cada objeto sem valor monetário.

Naquele momento, meu desafio era provocar uma transformação naqueles olhares através da empatia por contágio. Saímos pela rua observando o espaço com um olhar renovado e curioso. Muitos queriam falar sobre o que viam, propor um percurso e fazer uma foto. A câmera ficou nas mãos do Sandro, que fez registros discretos e precisos, pois sabíamos o quanto é delicado fotografar na região.

 

Manifestou-se desejo geral de fotografar mais livremente, e o dia da feira, domingo, foi apontado como o mais tranquilo para isso, especialmente com o aviso de que se tratava de um projeto envolvendo um grupo de jovens da comunidade.

O aguardado encontro de domingo aconteceu numa manhã chuvosa que nos forçou a buscar abrigo num espaço coberto onde passamos uma hora soltando frases baseadas no universo vocabular da Maré.

– O lixo é um caminho pro estudo do mundo.
– Sonhar é criar um mundo sem proporção, sem facção, onde o único objetivo é ser feliz.
– Da força faço minha liberdade, do respeito, a sabedoria de compartilhar, do lixo, o meu museu.
– Partilhar faz o chão sorrir.
– Liberdade é pintar o muro da vida, criar um caminho a descobrir.
– Faço da vida um muro de oportunidades.
– O sorvete faz as pessoas felizes.
– Compartilhar o sorvete e, do palito, a oportunidade de criar, sonhar e descobrir um novo mundo.
– As coisas do mundo caminham na passarela.

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Fogareiro com base de cocos. Registro do percurso na feira de domingo, Complexo da Maré. Projeto Irradiações, Núcleo Experimental de Educação e Arte, MAM Rio. Foto: Jaqueline Paz, 2010.

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Detalhe de barraca com goiabas. Registros do percurso na feira, Complexo da Maré. Projeto Irradiações, Núcleo Experimental de Educação e Arte, MAM Rio. Foto: Jaqueline Paz, 2010.

Com o grupo reunido saímos pela feira com liberdade para (discretamente) fotografar. Passamos duas horas observando e registrando. A sensação era de que só se passaram dez minutos (de relógio sem ponteiros).

Quando saímos da feira, fomos pro Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

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Complexo da Maré visto da janela do ônibus na Linha Vermelha, a caminho do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Projeto Irradiações, Núcleo Experimental de Educação e Arte, MAM Rio. Foto: Gabriela Gusmão, 2010.

Trazendo na bagagem o caos da feira, a atenção do coletivo se renovou no MAM descoberto com o som da chuva mixado ao canto dos pássaros. A visita à coleção foi guiada pelo próprio grupo que estava à vontade e já não queria ir embora. O que mais me entusiasmou nesse contato foi que conseguimos positivamente andar pela feira com a atenção de quem caminha em um espaço de arte, observando atentamente os elementos presentes no ambiente, conversando sobre as cores, analisando as estruturas das barracas, valorizando o espaço, criticando ou elogiando formas de objetos. Mais tarde, caminhamos pelo museu com a naturalidade de quem caminha na feira onde as obras de arte se mostram e se revelam sem cerimônia, permitindo falas espontâneas e uma percepção viva da relação entre os conceitos e as imagens. Foi um exercício espontaneamente dialético.

Fechamos o dia com um piquenique no pilotis do MAM, onde combinamos que era preciso definir uma ação para o último encontro.

Na mesma semana, quando nos reunimos na Maré, fizemos um balanço dos encontros anteriores, relemos frases do jogo de palavras e escolhemos uma como a síntese da experiência. Então nos perguntamos: o que fazer com a ideia eleita pela maioria? Como imprimir a frase no mundo? Numa parede? Num muro? Claro, só faltava encontrar o muro. Cada um deu uma sugestão, até que surgiu a ideia de aproveitar o muro do campo de futebol que fica atrás da ONG Luta pela Paz. Por ser um lugar aberto por onde muita gente passa foi logo aceito por todos. Uma vez de acordo, saíram em busca de tinta, baldes, pincéis e vassouras. O processo culminou numa ação coletiva no campo de futebol, onde hoje se lê: LIBERDADE É PINTAR O MURO DA VIDA.

 

Rio de Janeiro, novembro de 2010 / abril de 2015.

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1 http://nucleoexperimental.wordpress.com/irradiacao/

2 http://www.fightforpeace.net/?lang=pt

3 http://www.cat.org.br/

4 Manoel de Barros. Poesia completa: Tratado geral das grandezas do ínfimo. Rio de Janeiro: Editora Leya, 2010. pg 403

5 Hélio Oiticica, Museu é o mundo. Organização César Oiticica Filho. Rio de Janeiro: editora Azougue, 2011, p. 178

6 http://gabrielagusmao.com.br/?p=147