Fig 9 o artista espectador
Laboratório contemporâneo: experimentações no pátio da Casa Daros, 5 de novembro de 2014, Casa Daros. Foto: Jessica Gogan, com intervenções de Michel Schettert

Casa 7 – O artista-espectador na performance coletiva

Michel Schettert

O que sabe o artista que não conhece a aparência de sua obra? A performance coletiva1, na condição de arte do devir, esconde a resposta no gesto de cada espírito cúmplice, esteja ele no posto de público ou artista. Ambos se tornam espectadores na medida em que a incerteza recíproca reinaugura futuros a cada instante do ato performático. Cada gesto, venha de quem vier, vira então uma conferência-espetáculo que acontece em um espaço-tempo múltiplo, onde é possível imaginar, olhar, escutar e sentir, sob a condição da intotalidade.

Essa condição é própria de performances que conduzem suas ações em um espaço-tempo fragmentado – deslocalizado e simultâneo – e pode ser verificada quando artistas e público se embaralham, provocando travessias de incerteza. Eu, enquanto artista e espectador afetado por tais circunstâncias, não sei ao certo o que aconteceu no dia 12 de dezembro de 2014 na Casa Daros, pois, embora tivesse um roteiro em mente, não pude estar presente em todas as ações. O todo se apresentou em partes. Minha única certeza é que ninguém viu tudo. Parecia que eu estava num jogo de baralho, em que as cartas pretas são o público, as vermelhas são os artistas e o verso representa os espectadores. Ao embaralhar essas cartas, sou antes de tudo um espectador e, ao retirar uma delas, posso me transformar tanto em artista quanto em público; posso tanto agir quanto reagir, sem abandonar minha condição de espectador. Entretanto, esse jogo de baralho tem cartas marcadas. Os artistas conhecem as pré-intenções flutuantes. Eles se fizeram presentes durante todo o planejamento da performance. Nos ensaios, paralisaram o tempo para repetir o jogo no espaço. Testaram e, às vezes, resolveram mudar as estratégias. Deixaram decisões de lado enquanto adotavam outras; sempre em equipe, mesmo sem consenso. Ou seja, imaginar previamente o jogo é estar legitimado como artista, mas, por outro lado, olhar, escutar e sentir o desenrolar das ações do coletivo (incluindo o público) só é possível através da curiosidade típica de um espectador – eis como me sinto: um artista-espectador.

Pois, se minha condição de intotalidade limita o desempenho do meu aparelho perceptivo a um determinado espaço físico e, consequentemente, em certo nível, este fato me exclui de partes da performance coletiva a qual ajudei a elaborar; e ainda, sabendo que minha curiosidade não me é suficiente para acessar espaços simultaneamente, dúvidas essenciais irrompem em mim: como posso falar com propriedade sobre a obra da qual faço parte se não a conheço inteiramente? Antes: eu pertenço a esta obra em sua totalidade? E mais: se ninguém viu toda a obra, quem está apto a lhe pertencer? Um trabalho individualmente coletivo como Olha, imagina, escuta, sente, cujos criadores estão condicionados à intotalidade, põe em questão a natureza indefinida do artista e, nessa brecha, acredito operar o espírito do artista contemporâneo.

_
1 Performance coletiva é entendida aqui como obra artística performática criada e executada em grupo, na qual todos os artistas envolvidos assinam co-autoria. Neste caso, por exemplo, a obra “Olha, imagina, escuta, sente” é de autoria de 16 artistas.