É tudo mentira

¡NoPasaran!

É tudo mentira, mais que um filme sobre as manifestações de 2013 no Brasil, é um filme-manifesto. Colocando em sequência os dias de protestos e sua repercussão na grande mídia e os desdobramentos dessas manipulações na mídia alternativa, o roteiro nos leva a perceber que esse título fica mesmo bem apropriado aos fatos.

Ao invés de apresentar os fatos através de um narrador, a ideia é apresentar essa sequência de fatos que desencadearam uma das mais importantes revoluções na opinião pública do Brasil – a revolução da mídia, que em todo o mundo tem modificado a maneira com que olhamos as TVs e lemos os jornais diários.

O filme também incorporou, em seu processo de produção, os ideais anarquistas que reaparecem na contemporaneidade e, nesse caso estrutural, manifestam-se na Web. Dessa forma, os créditos de diretor, montador, roteirista ou fotógrafo não mais interessam, e o filme é assinado pelo coletivo ¡NoPasaran!. Isso coloca em xeque também o modelo do cinema como criador de mitos e de vencedores.

Ao perceber como operam em um caos organizado perfeitamente orgânico e que se apresenta de uma forma totalmente horizontal, podemos ver como esse formato nos propõe também uma nova ordem hoje muito mais possível de uma sociedade mais horizontal.

Desde as principais mídias, nas quais antes só existiam os espectadores e hoje existem muito mais produtores de conteúdos – e a mídia é mais do que nunca na história uma via de duas mãos – até os protestos que acontecem quase que em todo o mundo, vê-se que uma organização heterogênea consegue se organizar sem possuir um líder, e com isso se torna muito mais forte, como um grande monstro.

Quando vemos as imagens históricas de S. Eisenstein, seja em A greve ou em O Encouraçado Potemkin, percebemos como o cinema consegue passar de forma sublime essa ideia da grande massa que se agrupa e forma um outro corpo gigantesco e orgânico capaz de transpor grandes exércitos com armas e tanques.

Quando percebemos essa estrutura nas ruas e seu conceito virtual tomar corpo cada vez maior e se refletir no corpo real da massa que foi às ruas em 2013, conseguimos sintetizar o que pode ter sido a revolução de que nos fala esse filme.

Quando percebemos isso, fica inevitável reproduzir dentro do nosso modelo de produção, propondo assim um novo modelo para o cinema, menos egoísta e atrelado ao fetiche dos líderes e mais ligado à arte coletiva que explode no cenário contemporâneo global de artes visuais.

Outro fato esclarecedor diz respeito ao não julgamento a que o filme se dispõe, embora pareça que ele tem um lado, e sem dúvida todo filme tem, mas aqui preferimos montar esses fatos e deixá-los para que a audiência chegue a sua ou mesmo a nenhuma conclusão.

Não é um filme contra esse ou aquele partido ou governo. Sendo anarquista, ele é contra todo o sistema, pelo qual tudo passa, e se continuar passando estamos sem saída. Não interessa aqui condenar um ou outro político, mas perceber que a política da forma que está instituída é a causa de toda injustiça e miséria existente no mundo.

Colocar evidente esse sistema, apresentar a estrutura que ele reproduz sempre; por ser esse sistema viciado, é ele também condenado ao fracasso de sua organização suicida. Isso é o suficiente para comprovar essa falência. Evidenciar como operam essas forças foi MUITO simples perto da dificuldade que temos de sair dessa estrutura que foi criada por nós mesmos.

É importante ressaltar que o filme não pretende ser panfletário no sentido de dar uma solução ou representar um dos lados envolvidos nesse processo. Devemos lembrar que a obra começa com uma frase de Eduardo Coutinho, para quem o bom filme é aquele que faz perguntas, não o que já tem as respostas.

Assim, quando o apresentamos na mostra dos realizadores, uma das críticas queria sempre comparar com outros filmes feitos sobre o mesmo período, na tentativa desesperada de diminuir sua potência, dizendo que ele era pior que algum outro filme, pois não trazia propostas e sim mais críticas. Ou seja, não era propositivo como se dizia.

Não percebeu o jornalista que proposição aqui não é sinônimo simples de proposta, mas sim substantivo de propor. O que seria então essa proposição? A proposição é justamente que se façam outros filmes sobre o tema. Essa é a grande força de um novo modelo que não se apoia em competição e sim na união em todas as instâncias da sociedade e que já começa a se organizar assim, principalmente na rede e na arte.

Interessante notar que, por mais revolucionária que seja a arte cinematográfica, a indústria e o show business em volta dela começam a parecer um modelo falido. É importante que, como artistas, apontemos para um novo horizonte para o cinema, para além da hierarquia industrial na intenção clara do lucro. Propomos um experimento total de novo modelo para essa mídia.

Aqui não adianta mais perceber a montagem como o simples fazer dos cortes e emendas, o que fizemos nesse filme foi bem mais que isso, ele representa uma nova forma e não apenas uma forma plástica, mas sobretudo uma forma de toda a essência do que pode ser hoje cinema.

Assim, junto a sua estrutura foram pensadas ações e desdobramentos que ainda estão por vir, tanto na forma, em que teremos instalações e debates, como no sentido virtual e propositivo, colocando também material disponível para ser reeditado, modificado, criticado e usado em outros filmes.

Dessa maneira, expandimos o discurso do filme e trazemos outros discursos paralelos e não menos importantes. Com isso a forma proposição entra de forma direta e não apenas com algo ilustrativo, ou pior, panfletário. Nossas imagens já foram inclusive usadas em alguns outros filmes, como Rio em chamas.

Cremos que daqui a algum tempo teremos uma mostra só com filmes relacionados com esse período e esse será um desdobramento natural, não do nosso trabalho, mas de um movimento maior no qual somamos e de uma rede da qual somos apenas mais um elo, nem melhores, anteriores ou maiores que os outros, mas mais fortes sem dúvida.

Com o mesmo intuito, nosso coletivo não possui hierarquia ou limitação, regra; como organização coletiva de arte ele é totalmente aberto, quer mesmo a participação de pessoas de fora, de anônimos e de pessoas que até nem saibam que estão nos ajudando.

Cremos que a arte, como a vida, é algo que acontece naturalmente, que quanto menos manipulada pelo mercado e pela ideia de competição e divisão, mais perto estará da arte. Todas essas conexões que podem surgir, seja pelo filme, site, redes sociais, outros meios futuros ou simplesmente pelo fim, devem ser encaradas com a mesma naturalidade dos eventos e desdobramentos da vida. Assim o cinema está se transformando em algo mais latente, mais pulsante e mais vivo.