Cumprimente um estranho: conversas causais de pacientes instaladas nas janelas, cortesia e © Hans Clausen
A instituição pública como material – um projeto em curso
Katie Bruce, com Hans Clausen e Sarah Barr
O YoHoArt é um projeto piloto criado a partir da parceria entre a Gallery of Modern Art (GoMA) e o Royal Hospital for Sick Children (Yorkhill), ambos de Glasgow. A finalidade da parceria entre as duas instituições é pesquisar (e desenvolver) de que forma o programa público de uma galeria (encomenda de projetos, mostra de acervos e programas de aprendizado) pode funcionar no contexto de um hospital pediátrico. As instituições também estão interessadas em como essa parceria pode ser usada para dar apoio ao Artigo 31 (direito a atividades recreativas, artes, cultura, lazer e descanso) da Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU.1 Este projeto piloto em parceria utiliza o modelo de artista residente para produzir novos trabalhos com as crianças e adolescentes, o que, por sua vez, promove seu acesso ao Serviço para Crianças e Adolescentes2, que funciona na comunidade hospitalar como um todo. As implicações da abordagem do direito de “brincar” focada nas crianças do artigo da Convenção da ONU para as práticas institucionais, bem como temas mais abrangentes relativos ao potencial de parcerias entre organizações de arte e de saúde, fazem parte do compromisso de longo prazo da GoMA de entender e refletir sobre os programas que oferecemos e como diferentes contextos influenciam a natureza desse trabalho.
O YoHoArt foi desenvolvido por Katie Bruce, produtora e curadora da GoMA, e Sarah Barr, coordenadora dos Serviços para Crianças e Adolescentes em Yorkhill. As instituições parceiras buscavam um artista que fosse receptivo ao trabalho em hospital ou ambiente terapêutico e sensível às necessidades dos jovens. Sarah e Katie estavam abertas a diferentes tipos de práticas artísticas. Depois de divulgarem a vaga, entrevistaram um ceramista, profissionais de teatro e um criador de marionetes e trabalharam junto com dois pacientes ambulatoriais no processo de recrutamento. Os dois pacientes queriam ajudar a recrutar um artista que fosse divertido, se relacionasse bem com as crianças e apresentasse aos pacientes diferentes tipos de práticas artísticas no hospital.
Escolheram o artista Hans K. Clausen, recém-formado em escultura, com experiência anterior em orientação psicológica. Suas esculturas utilizam objetos do cotidiano ou resíduos e são divertidas, além de instigantes.3 Hans descreve a si mesmo como um artista que tem “interesse pelos vocabulários visuais e pelas qualidades narrativas e associações emotivas dos objetos corriqueiros”. As interações envolvendo as pessoas e acultura material compõem área de investigação recorrente na sua prática, e são o relacionamento e o diálogo que as pessoas têm com seu ambiente e os objetos nele contidos que despertam sua fascinação. Seu trabalho muitas vezes utiliza e se reapropria dos materiais comuns do cotidiano e é um convite para o espectador reavaliar seu relacionamento com esses objetos e, quem sabe, seu lugar e seu papel dentro desse ambiente material. A oportunidade de trabalhar em um espaço institucional como um hospital, com seu vocabulário visual distinto, clima estético e fortes associações com objetos, o atraiu de imediato.
Sua experiência profissional anterior em ambientes de saúde e assistência social talvez tenha contribuído para a sensação de familiaridade, ajudando-o a estabelecer relacionamentos e entender o funcionamento prático e a cultura da instituição. Desenvolver e possibilitar relacionamentos eram parte fundamental do processo da residência, bem como elemento intrínseco de algumas das obras. Hans inspirou-se e foi influenciado tanto por conversas ao seu redor como pelos objetos valiosos encontrados nos armários do hospital, e isso deu a algumas das obras um foco relacional. O próprio nome adotado para a residência – YoHoArt (Yorkhill Hospital Art) – surgiu a partir das primeiras conversas e de jogos de palavras com os jovens pacientes.
Hans tem trabalhado no hospital um dia por semana, às vezes dois, desde fevereiro de 2014, com ausências de um mês quando esteve em residências em outro lugar. As instituições parceiras pediram que ele passasse a primeira metade de sua residência pesquisando e entendendo a comunidade hospitalar e de que forma os pacientes participam dela. No momento, Hans está trabalhando na próxima fase, pondo ideias em prática a partir das conversas com essa comunidade, principalmente com as crianças e adolescentes, o que levará a uma intervenção final e um seminário no hospital até o final de 2014.
Uma série de projetos com artistas aconteceram em Yorkhill nos últimos quatro anos, mas eles abordavam principalmente a melhoria do ambiente do novo hospital previsto para abrir em 2015.4 Esta parceria queria evitar os clichês e desafiar o pressuposto comum de que artistas vão simplesmente decorar o ambiente, contratando um artista para trabalhar com as crianças no aqui e agora. O YoHoArt desejava se contrapor ao estereótipo de trabalhinhos das crianças nas paredes como veículo para melhorar o ambiente hospitalar, buscando envolver mais radicalmente as crianças e adolescentes no ato de pensar e responder ao seu direito fundamental de acesso à arte e à cultura por meio de oportunidades livremente disponíveis, assim como acontece com o atendimento médico e a educação.5
Esses tipos de projetos têm precedentes históricos e atuais. Um exemplo é o Artist Placement Group, ativo nas décadas de 1960 e 1970, que “colocava” artistas em diversas instituições para observarem e contribuírem criativamente em meio às práticas institucionais e organizacionais.6 Mais recentemente, as últimas décadas presenciaram cada vez mais trabalhos relacionando a arte com a saúde. O engage, por exemplo, rede baseada em educação artística do Reino Unido, editou uma revista abordando “a contribuição que a arte pode dar a hospitais e espaços de saúde e como o envolvimento com as artes visuais pode influenciar a vida de pacientes, os profissionais e as carreiras”.7
“A instituição pública como material” é um artigo organizado a partir de conversas editadas entre Katie Bruce (KB) e Hans Clausen (HC) e encontros e reflexões com Sarah Barr, explorando questões éticas acerca da validade de um artista ou galeria trabalhar num hospital, diferentes modelos institucionais públicos, questões da identidade do artista e, mais especificamente, propondo a pergunta: “trata-se do ateliê no hospital ou do hospital como ateliê?”.
Seminário com funcionários e pacientes para discutir a residência, cortesia e © Katie Bruce
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Quando Sarah e eu começamos a discutir a residência, estávamos interessadas na conscientização do artigo 31 tanto entre as crianças como entre os funcionários do hospital. Se assumirmos a posição de que crianças e adolescentes não perdem seus direitos quando são internados, e pensando sobre direitos além do direito ao atendimento médico, o Serviço de Recreação é fundamental para o cumprimento do artigo 31 no ambiente hospitalar. Mas como a instituição vê a arte, a cultura e o acesso a elas? Esta é uma das questões pelas quais me interesso – por que uma galeria está trabalhando em parceria com um hospital e como isso pode ser mais eficaz? Na verdade, estou questionando por que uma galeria/museu como a GoMA deveria trabalhar lá. Somos a instituição certa?
HC
Estando no hospital um ou dois dias por semana e, mesmo tendo de fazer um pouco de várias tarefas, é difícil analisar muito a fundo essa questão. Identidade, este é um dos principais elementos. Por exemplo, quando toco o interfone para entrar nas enfermarias, penso: bem, eles vão perguntar “quem é?”. E agora eu costumo responder: “Hans, do Serviço de Recreação”. No início, eu respondia: “É o artista residente”. Mas parece que é mais simples se você tiver uma identidade definida que os outros possam facilmente relacionar a você. Acho que esse tipo de coisa tem um paralelo com as crianças. Elas entram no hospital como “Antônio”, mas passam a ser o paciente do terceiro leito.
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Você acha que perdeu sua prática como artista dentro do hospital? Está querendo dizer que perdeu sua identidade?
Cadeira com luvas cirúrgicas, cortesia e © Hans Clausen
HC
Não, só acho que tem ficado meio despercebida. Parte disso também tem a ver com a expectativa bem rígida que a maioria das pessoas tem sobre o que um artista vai fazer num hospital. Acabo tendo que ficar bastante atento para não destruir ilusões e não criar obstáculos para mim mesmo, mas, de certa forma, corresponder o suficiente ao que os outros esperam de um artista, porém sem perder minha própria visão dessa função. Alguma coisa em relação ao que eu posso contribuir, mesmo conceitualmente, aquilo que acho que estou fazendo, vai de encontro com a realidade do que a criança quer fazer ou o que o gerente da enfermaria gostaria que fosse feito… Não acho que tenha a ver com a perda da identidade do artista. Há algo na instituição que impõe um meio-termo. Acho que, como artista residente, existe também um aspecto educativo, de processo artístico e educativo. O que é a arte? Por que é arte? Mais do que simplesmente pintar uma parede ou mural… pensar sobre questionar a maneira como as pessoas enxergam as coisas, como olhamos para nós mesmos através da arte. Mas é algo relacional. Leva tempo. Não sei se é uma coisa irrealista ou se talvez só precise de uma abordagem diferente ou de perseverança e de ficar mais atento…
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…ou talvez repensar como o museu funciona naquele espaço. Deixamos bem aberto em termos do seu tempo para isso e também do nosso orçamento. Talvez sejam questões relativas a como as coisas são pensadas.
HC
Fiz uma comparação outro dia entre trabalhar no hospital como artista e trabalhar, como eu costumava fazer, como orientador psicológico. A relação é que a visão da orientação psicológica seria, com frequência, que, aparecendo o orientador e havendo alguém disposto a falar com ele, a orientação poderia acontecer. Ela poderia acontecer em qualquer lugar. A realidade é que precisamos do que chamamos de “espaço terapêutico”, o lugar tem que ser o ambiente certo. Então, me pego pensando da mesma forma que eu costumava argumentar, que se queremos um orientador psicológico ou um artista num hospital, o espaço dado a eles é muito importante… É um espaço de artes ou é um estúdio de arte? É uma sala de aula? Uma sala de jogos? Um espaço multifuncional? Qual o lugar do artista quando ele entra no hospital?
A sala de gesso, onde crianças são engessadas quando quebram algum osso, cortesia e © Hans Clausen
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Para mim, tem a ver com isso: o lugar da galeria é na instituição médica?
HC
Até que ponto podemos esperar que o ethos da galeria e as condições da galeria para o encontro ou a participação sejam reproduzidos num hospital? Não acho que é pedir muito, mas acho que, da forma como está agora, é um imenso desafio. Por exemplo, tem sido complicado, às vezes, chegar às crianças ou as crianças chegarem a mim e ao trabalho… Nesse sentido, me ocorreram dois exemplos diferentes de envolvimento de 20 minutos com as crianças… O primeiro: recebi uma lista de crianças e adolescentes que estavam nas enfermarias para poder ir ao seu encontro. Em 20 minutos, fui a umas quatro dessas enfermarias e não consegui nada, porque levei vários minutos esperando para falar com os enfermeiros responsáveis; eles foram, falaram com alguém e disseram que a criança não tinha voltado do teatro ainda ou não estava se sentindo bem… Eu sabia o que ia fazer e, 20 minutos depois, não tinha conseguido encontrar ninguém. Em outros 20 minutos, eu saí da Zona 12 com o gorila (parte de um dos projetos de arte que Hans estava realizando) para colocá-lo na cabine do estacionamento. Deveria ser um percurso de dois minutos, mas levou 20, porque de repente houve toda uma interação. Faltavam literalmente cinco passos e eu tinha que parar de novo, outra foto, outra criança segurando a mão do gorila. Mas foi aí que se deu o envolvimento mais estimulante e espontâneo.
O Gorila/Guerrilheiro na cabine do estacionamento, cortesia e © Hans Clausen
O Gorila/Guerrilheiro na recepção, cortesia e © Hans Clausen (NT: Em inglês, as duas palavras [gorilla/guerilla] são homofônicas.)
Então, mesmo se o artista tem uma presença móvel (ainda estou convencido de que precisamos de algum tipo de base fixa), acho que o convite para brincar não se limita a “ok, você já teve seus 20 minutos de recreação hoje, portanto fizemos o nosso trabalho”. Existem convites constantes para brincar, oportunidades para brincar, e as pessoas podem escolher a cada momento se querem participar ou não. Essa liberdade parece bastante importante.
Máscara Mágica feita com material do hospital, cortesia e © Hans Clausen
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Existem pontos em comum com o que estou pedindo que os artistas façam em espaços públicos complexos, como o Ateliê Público nº 2. As conversas foram muito semelhantes, embora se dessem em contextos totalmente diferentes. Um, por sinal, foi posicionado como exposição dentro de uma instituição pública para ser uma brincadeira, um parque de aventuras ou um modelo de estúdio dentro daquele modelo institucional de galeria. Ao passo que, dentro do hospital, estamos testando um modelo de galeria ou de artista, e talvez ainda como outro modelo de estúdio dentro de um tipo de ambiente clínico.
HC
Poderíamos ter transposto o Ateliê Público para um espaço público do hospital e simplesmente o reproduzido? Se houvesse, vamos dizer, uma parte da cantina, uma sala fora do corredor principal, poderíamos ter reunido um monte de materiais do hospital, fita adesiva e cola e as pessoas seriam simplesmente convidadas a entrar e criar, e criar uma exposição nesse espaço, usar esses materiais no seu tempo. Não é muito diferente do que eu achei que estava fazendo quando convidei as crianças para criarem algo, acharem alguma coisa nos resíduos do hospital para criar algo. Mas teria sido muito mais fácil e talvez mais acessível se eu pudesse ter dito: este é o “espaço” e estes são os materiais para os trabalhos de arte.
Seria uma coisa bastante pública. Seria visto por todo mundo, e algumas dessas pessoas teriam participado… [O hospital] é uma instituição pública, mas é bastante difícil ficar realmente visível. Acho que um exemplo são os quadros de avisos. Quantos cartazes é preciso pendurar para ser notado? Na chegada do Bastão da Rainha, acho que havia, literalmente, a cada meio metro, um metro, havia um cartaz8. Ou seja, centenas de cartazes só para ter certeza de que aquele evento fosse conhecido. Mas, no meio disso tudo, existem centenas de outras imagens. Ser visto, dar destaque à sua identidade e sua função em meio àquilo tudo é bem difícil.
Visita de pacientes e um pai à GoMA conduzida por Hans, Katie e Sarah, cortesia e © Hans Clausen
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Por outro lado, as pessoas visitam uma galeria com a intenção de ver arte. Podem não gostar da arte que veem, mas…
HC
…sabem o que foram ver…
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Elas sabem, quando cruzam a porta de entrada, que é um passo consciente que estão dando. Acho que falamos um pouquinho sobre o conflito de modelos e como é possível atuar em meio a esse conflito no hospital. Imagino que enquanto estamos escrevendo isso, Sarah talvez tenha uma reflexão sobre o assunto com base no seu conhecimento de como o hospital funciona.
Reflexões
Trata-se do “ateliê no hospital ou do hospital como ateliê”?
SB
Hans, vou começar pela parte em que você fala da necessidade de um espaço exclusivo para arte e como isso afeta o processo artístico tanto para as crianças como para o artista. Isso foi levantado por diversos artistas anteriormente e continuará sem solução já que, em todas as áreas do hospital, a bagunça (inclusive a bagunça artística!) sempre tem de ser arrumada para deixar as superfícies o mais livres possível para a limpeza. Muitos materiais – como papel ou qualquer coisa não lavável – seriam jogados fora no final de cada dia. Basicamente, o espaço de arte em cada enfermaria nunca seria possível num hospital de cuidados intensivos devido às diretrizes de controle de infecção.9
Cachecol de Aberdeen embalado a vácuo – brincando com a ideia de embalar infecções hermeticamente, cortesia e © Hans Clausen
Isso deixa os artistas sem uma identidade muito óbvia e exige que eles façam parte do todo. Será algo ainda mais presente no novo hospital, já que poucas pessoas terão uma base de trabalho ou sala. Em vez disso, ficaremos constantemente no ambiente do paciente e compartilhando mesas.10 Não há previsão de um espaço tranquilo para pensar ou a noção de ter uma base fixa para ajudar a definir nossas funções.
Se queremos que a arte e a conversa artística aconteçam num hospital de cuidados intensivos, precisamos de artistas que consigam caminhar na linha tênue entre se incorporarem ao todo e permanecerem independentes, capazes de ter ideias que lhes permitam ser inventivos e ajudar a criar coisas novas com as crianças.
HC
Tentei “caminhar na linha tênue” e, com o emprego de vocabulários visuais, desafiar as percepções e expectativas convencionais da instituição e seus limites/fronteiras/regras percebidos. Para mim, o “ateliê” é importante. Imagine um espaço que não está esteticamente superdecorado e que foi deixado com paredes vazias para as crianças e adolescentes entrarem e terem a liberdade de mudar a estética, e que depois pode ser apagado quando outra pessoa entrar na sala. Para mim, isso não existe no hospital, tudo é controlado. Entendi que esse “ateliê” não seria possível na instituição atual, por isso, uma parte do trabalho consiste em injetar humor na instituição, o que pode ter benefícios terapêuticos inter-relacionais, e empregar abordagens de arte relacional para interceptar sensações de rotina, complacência, tédio, desilusão.
Estou interessado no uso de materiais na instituição para incentivar um “novo olhar”, uma reflexão sobre aquilo que poderia ser visto como trivial. Trazer um novo valor a processos, materiais ou espaços corriqueiros e introduzir modos alternativos de olhar, perceber, comunicar, se relacionar, talvez até práticas de trabalho.
Paisagem de remédios, transformando as bandejas dos remédios receitados numa paisagem ou quadro – a ideia de receitar arte como se receitam pílulas, cortesia e © Hans Clausen
Transformers feitos de porta-copos, cortesia e © Hans Clausen
Um projeto em curso
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Este projeto foi concebido, desde o início, com base na sua relação com o brincar e o Artigo 31. Definir o brincar já é em si uma tese, mas, para mim, significa que ele está constantemente em curso, depende de quem está ali no momento e do convite para participar e que por vezes sua ausência de propósito pode provocar uma questão diferente para um observador. O fato de Hans ter usado muito pouco do orçamento do projeto destinado a materiais, buscando materiais no próprio hospital ou mesmo pessoas e espaços, é estimulante. É como se a própria instituição estivesse inacabada e só se completasse por meio das ações da comunidade hospitalar daquele momento, na qual eu incluiria o artista. Hoje, existe a dificuldade do artista que chega animado com o que está à sua volta e com a oportunidade apresentada pela instituição como material, mas que também tem de administrar as expectativas da instituição com base em experiências anteriores.11
HC
Minha experiência da instituição como material é que se trata mais das relações do que qualquer outra coisa. Acho que disse isso logo no início, que tem mais a ver com a conversa e essas conversas são criativas. Essas conversas, penso eu, são tão valiosas em termos de produto quanto uma atividade. Estamos no estágio do projeto de construção a partir dessas conversas; porém, descobrir formas de ser visto, seja num ambiente cheio de informações visuais (como, por exemplo, a “sopa estética” dos quadros de avisos e áreas públicas dos hospitais) ou num espaço clínico particularmente restritivo (como áreas de infecção/isolamento altamente controladas), é muito difícil. Portanto, manter a identidade, a integridade e a visão artísticas pode ser um desafio quando se trabalha em condições limitadoras e contra as restrições das expectativas dos funcionários.
Suporte para soro decorado, cortesia e © Hans Clausen
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Mas algumas dessas conversas já resultaram em “produtos” visíveis, talvez não previsíveis, como o uso da cabine do estacionamento para o gorila (imagens 4 a 6), resultado de conversas com um gerente administrativo, ou o conserto das luzes do corredor para uma possível obra de arte no quadro de avisos sem passar pelo processo de pedido de serviço.12 Acho que é interessante que o artista possa entrar e direcionar recursos ou ideias para mudar as coisas, mesmo que sutilmente, numa instituição. A arte (ou o brincar) como um “agente irritante” para a instituição de forma a incentivar as pessoas, permitir que elas questionem uma burocracia ou uma ideia diferente da estrutura estabelecida, é importante. Caso contrário, corre-se o risco de amenizar questões da prática institucional relegando o papel do artista ou da arte a um “curativo” estético para a instituição.
SB
Num NHS (Serviço de Saúde Pública do Reino Unido) sobrecarregado, os serviços de recreação e a arte muitas vezes são vistos como extras menos importantes por alguns gerentes financeiros. Nesse clima de cortes, precisamos provar nosso valor repetidas vezes com o máximo de evidências concretas, para mostrar que a arte e o brincar são componente importante da recuperação dos pacientes. Então, embora eu ache que as pessoas estejam interessadas no Artigo 31, o que acaba acontecendo é que a instituição fica restrita, em termos financeiros, a ver o atendimento intensivo como cuidados médicos e não psicossociais.
Reflexões a serem consideradas nas etapas finais do projeto
HC
Pode ser que haja o papel do artista de unir as pessoas, de proporcionar um “nivelador”, um denominador comum, de incentivar as pessoas a se relacionarem, criar oportunidades/conversas que atravessem os limites disciplinares e dispersem identidades profissionais. Fizemos isso muito por alto no pequeno seminário que realizamos, mas com maior visibilidade poderíamos questionar as percepções convencionais e as expectativas sobre arte em contextos específicos, como, por exemplo, “arte no hospital”, “arte moderna”, “arte profissional”.
SB
Acho interessante tentar responder à primeira pergunta de Katie sobre por que trabalhar com a galeria no hospital. Eu diria que é para melhorar o bem-estar psicossocial tanto dos funcionários como dos pacientes por meio da arte visual. Isso deixa a coisa muito em aberto, mas se quisermos que as galerias desempenhem o papel de mediadoras entre as pessoas (arte e público ou público e público), ajudando a melhorar a comunicação e o entendimento, então certamente trazer uma mente criativa, questionadora e aberta para o mix do hospital fará isso.
KB
A prática da galeria e o trabalho com artistas podem ser usados para questionar criticamente a prática de trabalho no hospital ou devem desempenhar a única função de ferramenta para melhorar o ambiente ou oportunidade terapêutica/de diversão? Como os artistas podem trabalhar nesse novo ambiente e também questionar, ou subverter, os modelos de trabalho e projetar espaços para si próprios e para as crianças e adolescentes que sejam criativos e valorizados? É algo que podemos levar para a intervenção e seminários finais do projeto. Queremos que isso fundamente os aspectos futuros da parceria, especialmente porque o ambiente de trabalho vai mudar com a abertura do novo hospital pediátrico em 2015, onde, de certas formas, os espaços reflexivos com que nossa galeria trabalha, inclusive o espaço de estúdio, estarão ainda mais ausentes.
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1 A GoMA trabalha com a International Play Association (IPA) desde 2010, com a finalidade de questionar como uma instituição de artes pode corresponder aos direitos da criança nos termos do Artigo 31 da Convenção sobre os Direitos da Criança das Nações Unidas (CDC). Essa forma de trabalhar busca colocar a criança no centro das discussões sobre o acesso à arte e à cultura e como o agente que direciona o tipo de oferta cultural. O Artigo 31 da CDC é conhecido como o artigo do “direito de brincar”, mas ele também impõe aos governos signatários da Convenção o dever de promover programas para crianças e adolescentes que garantam o acesso às artes, cultura, lazer e descanso. Katie Bruce participou da redação do Comentário Geral sobre o Artigo 31, aprovado pelo Comitê das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança em 1º de fevereiro de 2013. Desde então, a GoMA continua trabalhando com a IPA Escócia para aumentar a visibilidade do Artigo 31 no setor escocês das Artes, sendo que, hoje, uma referência ao mesmo encontra-se na Estratégia Criativa para crianças e adolescentes lançada em novembro de 2013 pela Creative Scotland (o órgão público que apoia as indústrias artística, cinematográfica e criativa na Escócia). O YoHoArt foi um projeto piloto que buscou verificar como a parceria entre hospital e instituição de artes pode atender ao Artigo 31 e, ao fazer isso, mudar a forma como a instituição poderia pensar sobre os serviços que oferece às crianças e adolescentes no hospital.
2 O Royal Hospital for Sick Children (Yorkhill) oferece cuidados intensivos para crianças de toda a Escócia, o que representa milhares de crianças e adolescentes de 12 anos ou mais todos os anos. O Serviço para Crianças e Adolescentes oferece a esses pacientes atividades adequadas à idade: oficinas, clubes infantojuvenis e outras atividades divertidas no leito e em grupo. Muitas crianças e adolescentes entram para os cuidados intensivos e saem muito rapidamente, logo o modelo dessa oferta de atividades precisa ser flexível, desde uma única sessão com a criança até várias sessões juntos.
3 http://www.hanskclausen.com/gallery/
5 Existe um Serviço de Recreação do hospital para os pacientes. Ele consiste na visita de recreadores às enfermarias, adequando-se aos horários dos médicos e ao departamento educacional do hospital para oferecer atividades para as crianças. É comum não terem uma especialidade ou treinamento para trabalhar com crianças e adolescentes, e os serviços destinam-se mais a crianças menores. Ao montarmos este projeto, quisemos diferenciar o trabalho que Hans fazia no sentido de não oferecer somente atividades às crianças e adolescentes para aliviar o tédio, mas de promover a interação com Hans e de que as intervenções resultantes fossem visíveis no hospital e influenciassem o atendimento dado a eles.
6 O Artist Placement Group foi criado em Londres em 1966 por Barbara Steveni e John Latham com o objetivo de providenciar colocações ou residências em empresas para os artistas. A ideia era que os artistas não estariam presentes para usar os serviços da indústria, mas sim para usar sua criatividade e prática de forma a obter um efeito positivo no negócio em que foram inseridos. Ficando basicamente de fora da burocracia da organização, os artistas conseguiam mostrar aos funcionários outras formas de agir dentro da instituição.
7 Engage 30: Arts and Healthcare, Summer 2012, Publicado por engage, Londres. Engage é a organização nacional para a educação nas galerias do Reino Unido.
8 O Bastão da Rainha é o equivalente à Tocha Olímpica dos Jogos da Comunidade Britânica (Commonwealth Games). Ele viaja pelos países participantes antes de voltar à nação de origem para ser apresentado à Rainha na cerimônia de abertura dos Jogos.
9 A solução ideal de haver um espaço onde o artista não sinta que o lazer ou os espaços de recreação estejam sendo menosprezados foi discutida com a administração do hospital antes de Hans começar o trabalho. Falou-se um pouco sobre o espaço ser identificado, ou seja, as instituições parceiras têm isso em mente, mas a ideia ainda não se concretizou. Isso cria um problema com relação a deixar o trabalho de uma semana para a outra e deixar qualquer tipo de processo de pesquisa ou de estúdio aberto para outras pessoas verem as obras inacabadas.
10 A mesa compartilhada significa que mais de um funcionário usa a mesma mesa em momentos diferentes, quando os outros não estão. Geralmente existe um sistema de reserva para garantir uma estação de trabalho. Os espaços de trabalho serão estruturados dessa forma quando o novo hospital abrir em 2015.
11 Os funcionários pediram a Hans que pintasse murais de personagens da Disney, pois essa é a experiência que eles costumam ter da atuação dos artistas. O projeto tem tentado abrir as possibilidades de criação artística para as crianças e adolescentes nas enfermarias e no hospital.
12 A intervenção do gorila na cabine do estacionamento do hospital (imagens 4, 5 e 6) demandou muita negociação com o funcionário do estacionamento (Tam), que estava muito cético. Hans conseguiu que a cabine fosse limpa e, uma vez feita a instalação, Tam começou a se apropriar da obra, cuidava do gorila e acrescentava elementos, como um casaco e bananas. O motivo desse orgulho pela obra pode ser em parte o fato de que seu espaço de trabalho nunca havia sido limpo e agora fora “notado”, mas também o fato de que a obra mudou seu relacionamento com os visitantes do hospital. “As pessoas provavelmente se dirigem a ele com nervosismo sobre onde estacionar etc. (…) ou seja, foi como uma vida nova para ele e para suas conversas com os pacientes e as famílias. Não foi de maneira alguma a intenção da obra, mas é ótimo que tenha feito tanto sucesso. Não virou somente tema de conversa, ela realmente mudou as relações entre certos membros da equipe. Mas sim, isso não iria para a proposta, que vamos pôr uma fantasia de gorila (com enchimento) na sua cabine de estacionamento e que isso terá algum efeito num subgrupo de funcionários.” Conversas com HC, 6 de agosto de 2014.