O rio de prata, 2014, cortesia e © Modern Edinburgh Film School
Modern Edinburgh Film School e O rio de prata
Alex Hetherington
A denominação Modern Edinburgh Film School (Escola Moderna de Filmes de Edimburgo) resume minha prática e interesses. Trata-se de esmiuçar uma obra ou as ideias de um artista por meio do próprio artista. Essa investigação se dá com a apresentação de obras ou a criação de uma nova obra a partir de conversas, seja de que forma se manifestem, e da observação do público enquanto vê a obra. Atuo como um tipo de editor e intérprete enquanto isso acontece. Muitas vezes falo como artista e editor ou crítico ao mesmo tempo. Essas decisões editoriais e artísticas se desenvolvem ou definem eventos ou publicações futuros; é um trabalho em evolução. Nesse sentido, isso reforça a ideia que tenho de que a Modern Edinburgh Film School atua como vários indivíduos falando em harmonia, ao mesmo tempo, com diferentes vozes.1
A Modern Edinburgh Film School é uma circunstância estética, social e comportamental e já foi descrita de diversas maneiras, como algo que se “baseia na simplicidade para chegar à complexidade” e “um prisma, no qual uma coisa pode ser vista através de outra” – isso tem como significado distribuir e organizar eventos em diferentes espaços de galeria relacionados aos seus programas e objetivo.
O rio de prata, 2014, cortesia e © Modern Edinburgh Film School
O nome é um disfarce. Definir o trabalho por meio de uma “instituição” permite que ele faça mais do que sou capaz de fazer usando apenas o meu próprio nome. Esse pseudônimo atua com rapidez e agilidade e tem sido capaz de criar um “espaço” que lhe permite ocupar diferentes formas de colaboração e troca. Tenho consciência de termos como instinto e intuição quando trabalho com artistas.
O projeto organiza a apresentação de algo novo, com um colaborador identificado representando uma série de conversas – ou, às vezes, um colaborador anônimo (como no Ateliê Público nº 2) –, na qual as pessoas são convidadas a usar certos materiais para dar uma resposta ao meu trabalho, refazê-lo ou reempregar seus elementos.2 Outras vezes, existe um colaborador que é referenciado: já publiquei edições e trabalhos sobre Trisha Donnelly, Tom Marioni, Candice Breitz, T.J. Wilcox e A.A. Bronson, entre outros. Essas edições ou artigos investigam e explicam detalhadamente suas práticas e estabelecem um tipo de conversa com os artistas ou um tipo de comparação – de qualquer modo, um relacionamento é criado, em todos os casos.
A Modern Edinburgh Film School trabalha com as seguintes formas: filme, escultura, exibições de filmes, redação, publicação e distribuição de edições colocadas num plano horizontal de atividades. É um nome que não tem gênero. Sua identificação institucional tem a ver com confiança e entusiasmo. E, no nível prático, é um método, uma práxis que me ajuda a abordar outros artistas ou instituições com clareza e autoridade.
Minhas edições são obras criadas para desaparecer na sua distribuição (uma pilha de impressos que saem da galeria ou do meu estúdio), da minha mão para a sua (impressos e cartazes dobrados em edições limitadas, colocados em envelopes, dispostos sobre pilhas de outras coisas, organizados em prateleiras e usados como marcadores de livros, muitas vezes considerados “belos”). Constituem uma “biblioteca” e uma “biografia”, e muitos são distribuídos para iniciar uma discussão, conexão ou participação, mas raramente realizam esse objetivo. Enquanto isso, os títulos das minhas exibições de filmes e eventos são documentados na forma de lâminas de vidro preto tamanho A5, gravadas a laser, que parecem convites de galerias ou títulos de filmes. Existem aproximadamente 30 edições impressas e 12 painéis de vidro preto. O interesse desse trabalho está relacionado à duração, ao processo lento, a uma nota tocada por um tempo maior.
A Modern Edinburgh Film School produz obras há dois anos, sustentando-se com diferentes recursos financeiros e subvenções. No primeiro ano, o trabalho foi concentrado em grupos de eventos frequentes, mostras coletivas e trabalhos publicados, e a sensação foi de uma temporada de trabalhos em diferentes espaços de galeria. Começou com uma exibição de filmes sobre mulheres artistas com quem aprendi sobre imagem em movimento, como Catherine Sullivan e Daria Martin, e uma mostra coletiva sobre poesia e documentário de artistas emergentes como Michelle Hannah, Christian Newby e Stina Wirfelt. Outros trabalhos ao longo do ano apresentaram títulos enigmáticos, como 6000 cartazes para gigantes e anões e Segure este objeto até que não reste mais nada de você, e incluíram uma exibição de filmes 16mm de Ute Aurand, sendo que ela mesma veio de Berlim para apresentar seus filmes.
O rio de prata, 2014, cortesia e © Modern Edinburgh Film School
O segundo ano foi dedicado a uma única investigação chamada O rio de prata, que foi apresentada na Gallery of Modern Art de Glasgow (GoMA), uma obra realizada dentro do Ateliê Público nº 2 e que refletia sobre ele.3 O trabalho consistiu de uma série de impressos criados para desaparecer na galeria e em colagens de outras pessoas. Doze vídeos eram exibidos repetidamente num monitor. Sugestões de objetos e peças retirados dos vídeos, referentes às suas narrativas, materiais como vodka, diamantes, cinzas humanas, um cobrador de dívidas, penas de cisnes, gatos vivos, um recital de música quase inaudível e uma performance da artista e atriz Helen Cuinn, que interpretou um “Peter Pan” feminino lendo Peter Pan, foram levados para a galeria para mudar sutilmente sua atmosfera. Para fazer ligeiras intervenções, questionar a visibilidade, a importância, o valor ou viabilidade e consequências. Surgiram questionamentos sobre a viabilidade ou legalidade de se levar vodka para uma galeria ou de haver gatos passeando entre as obras. Essas proposições articularam ideias de anonimato e autoria.
Posteriormente e a partir do trabalho na GoMA, O rio de prata tornou-se uma nova edição escrita e performance apresentando um objeto do Ateliê Público: um texto apropriado do falecido Guy de Cointet, artista franco-americano que trabalhava em Los Angeles e morreu no final dos anos 1980. Essa publicação, intitulada “A new island forming a fighting island, its surfacing painful from freezing, unfathomable waters”, fala de uma “realidade diagonal”, ela própria um cinema flutuante e um evento catártico, e foi criada para uma série de eventos e projetos de curta duração organizados pela Embassy Gallery em Edimburgo. A edição apresentou entrevistas entre as artistas e cineastas Leah Millar, Rebecca Green, Roween Suess, Laura Edbrook, Katrina Valle, Suzanne van der Lingen e outros dois artistas que preferiram permanecer anônimos.
Estética e materiais do Ateliê Público, algumas observações
O Ateliê Público é um artifício para ler a mente do público. É evidência do mundo exterior e suas atualidades, de pessoas dispostas a compartilhar algo, deixar uma marca. Eu o vejo como uma proposta subversiva, em que a curadoria e suas formas de comparação, justaposição, proteção ou preservação, iluminação e esclarecimento se tornam vivas – vivas e elétricas. As responsabilidades, se é que este é o termo correto, são transferidas da curadoria oficial para as pessoas. A estrutura das paredes da galeria e o modus operandi da instituição pública passam a ser seu material, observando a si mesmos. Ele passa a ser seu próprio estúdio e tomador de decisão. Percorrê-lo e ver seus elementos, conforme ficava mais cheio, sobreposto, uma escultura de colagens, era como ler um roteiro ou um jornal misturado, cortado, escrito por um coletivo ou equipe de produção que fazia um filme ou teatro ao vivo. Na galeria, havia artistas como atores, como diretores, como público. Foi uma espécie de registro público e testemunha de suas próprias contingências e caos.
A galeria está decorada com vinil multicolorido, um material adesivo rude, fácil de manipular e dar forma. Durante a mostra, vejo que poderia perceber o verdadeiro significado desse material ou escolher ignorá-lo, imune ao seu drama. Ou aceitar sua estética e trabalhar com seus significados. O vinil torna-se transparente e escolho ver seu conteúdo, ver o possível estímulo externo e como as pessoas estão reagindo, o resíduo do mundo exterior. Imagens do consciente e do inconsciente. Algumas declarações de um amor denso, afirmações em escala local e global, afirmação de presença e eternização, atenção especial a habilidades e talentos artísticos, a energia crua da colagem, cenários sobrepostos e ideias emprestadas, móbiles aleatórios, criação de imagens como territórios marcados, muitos gatos e alguma raiva e histórias sobre pessoas que você provavelmente nunca conhecerá.
Acho o vinil grotesco. Seu arco-íris de cores exacerba minhas publicações monocromáticas e disposições cuidadosas de imagem e texto. Eu diria, porém, que ambos são apenas estilos e, deixando de lado o material, é uma oportunidade de se concentrar no significado (simulação, registro aberto, legenda e convite). Verdade seja dita, penso que somente deveria ser usado para texto, mas é incrível como funciona bem aqui, pois é muito fácil de ordenar, usar, reordenar, manipular, fazer, desvalorizar e descartar. Imita a temporalidade e temporaneidade e só tem ou mantém o valor daquilo que lhe é pedido dizer. Refleti sobre permitir que minha estética reticente desaparecesse nessa confusão e ver se ela conseguiria sobreviver.
A artista e atriz Helen Cuinn e eu tivemos ótimas conversas sobre a galeria como espaço para performance, sobre contação e criação de histórias que permitem que partes delas saiam da tela, do teatro, da galeria ou da televisão. Helen falou sobre personificação e personagem, sobre certos tipos de comportamento entre o artista e o público, sobre a “presença” da apresentação ao vivo. Pedi que ela viesse à galeria para ler Peter Pan. Sua fantasia e seu penteado davam a impressão de algo saído de um filme da Disney e tinham uma estética de inocência e de novidade que reverberava com a mostra de ficção científica/fantasia do andar de baixo, o trabalho de Aleksandra Domanovic, que vê a tecnologia através de uma lente de consciência de gênero, com camadas de muito vinil, versões superbrilhantes de máquinas de filmes de ficção científica ou de contos de fada da Disney.
Achei maravilhoso percorrer o Ateliê Público tendo Helen Cuinn como guia, deixando ela me ajudar a “encontrar” a mostra através de sua performance (que foi quase invisível e pouco divulgada), de suas escolhas estéticas, fortes cores primárias, como o vinil, e do meu entendimento de sua leitura consciente do livro Peter Pan. Ela se tornou um tipo de guia, intérprete ou editora do Ateliê Público, a partir de um relato ficcional, numa versão disneyficada da exposição.
Assistir a sua apresentação foi como assistir a um fantasma se materializar na galeria: era parte do espaço, mas estava inteiramente no seu próprio tempo e estrutura de referência, secreta, mas à mostra, parcialmente presente, mas também ocupando outro mundo, uma materialização de parte da estética do espaço (algo no espaço tinha uma qualidade infantil), fascinante e inocente, oscilando entre fazer e não fazer sentido, entrando e saindo de um mundo particular, porém universal.
Essa ideia de registrar a mente consciente me lembra uma apresentação no simpósio sobre a voz da artista Lindsay Mann, durante o Festival de Filme de Edimburgo, parte de seu doutorado no Edinburgh College of Art. O Dr. Andrew Irving, da Universidade de Manchester, antropólogo social, exibiu vídeos de pessoas andando nas ruas de Manhattan e registrando o fluxo de consciência de seus pensamentos com um fone de ouvido com microfone, seguidas por um operador de steadicam, mostrando como muitas dessas gravações eram caminhadas e observações em espaços sociais e ambientes que estimulavam o pensamento das pessoas, coincidindo com a narrativa dos indivíduos das preocupações presentes nos vídeos: coisas a fazer, problemas, ruminações sobre experiências dolorosas recentes, futuro, passado e presente se desenrolando em tempo real; assuntos predominantes em seus pensamentos, acontecimentos e estímulos do momento afetando esses pensamentos. A mente, por sua vez, já que funciona interna e externamente, apresentando-se como realidade.
Penso que o Ateliê Público faz isso; é um mecanismo de registro para captar pensamentos em tempo real, um repositório de memória para um indivíduo coletivo, um lugar de contação de histórias. É essa essência que faz surgir O rio de prata – ou lhe é abrasiva –, uma ação paralela e dentro da mostra, um trabalho de estúdio que se torna parcialmente visível, e a observação de algo assim, meu trabalho, ser consumido por esse furacão público.
O rio de prata
Os materiais para O rio de prata foram obtidos e produzidos durante o período de desenvolvimento do Ateliê Público, que incluiu uma série de conversas com os outros artistas envolvidos na exposição.
O rio de prata é um espelho bidirecional, refletindo para seu público e também para mim e para o artista que a obra referencia. O espelho bidirecional também encara o público que observa a obra ou se apropria dela. A própria peça é uma apropriação baseada numa série de filmes de 16mm, chamados coletivamente de Garlands, do artista visual T.J. Wilcox, de Nova York. Os materiais representam uma fascinação por diferentes tipos de histórias de todas as esferas da vida e trazem uma espécie de realidade mágica. Eles revelam uma perspectiva estranha, uma persona, ou olhar, peculiar. Ao contar essas histórias e em sua narração, eles contam outra história maior, que tem mais a ver com o narrador, com Wilcox, como ele vê o mundo, suas intenções, suas ideias, sua percepção, sua visão do mundo e aquilo que ele precisa dizer. Quando reconto seus filmes, estou descrevendo o artista.
O rio de prata, 2014, cortesia e © Modern Edinburgh Film School
Os filmes narram diferentes tipos de histórias que mesclam o documentário e suas convenções visuais com contos de fadas, mitologias e observações simples e belas: choque, elegância, mistério, obscuridade, o pungente e o absurdo. Entre as histórias estão o assassinato dos Romanov durante a Revolução Comunista na Rússia, uma mulher que acreditava poder se comunicar telepaticamente com cisnes, uma embaixadora americana morta no alto de sua influência social e política, a morte prematura de uma mãe, cujas cinzas deveriam ser espalhadas pelos continentes em lugares mágicos e carregados de significado, inclusive o Peter Pan Garden, em Londres, os últimos momentos do compositor Chopin e a história de La Comtesse, aristocrata espanhola exilada em Paris que encomendou milhares de fotografias de si própria antes de se tornar uma reclusa, conforme sua beleza se apagava.
O rio de prata cria um relacionamento estético e conceitual entre Wilcox, o público e eu. Esse relacionamento começava a desaparecer na obra, e apenas restavam resquícios e esses resquícios eram uma série de colaborações anônimas, autogeradas, numa série de ciclos anônimos, os impressos, os filmes e as histórias simplesmente desaparecendo lentamente, lentamente.
Escrevi sobre O rio de prata: “Que uma coisa possa ter muitos nomes ou muitas coisas possam ter um único nome. O título O rio de prata insinua movimento vagaroso, tempo, reflexão, duração, desaparecer, filme… trata-se de um interesse por quanto tempo leva para uma história se tornar uma história, como eventos se juntam para se tornar algo significativo, mágico, de interesse, misterioso, inspirador, motivacional, tocante, hipnotizante, equivocado ou exagerado”.
Modern Edinburgh Film School, O rio de prata e sua apresentação na GoMA mostram meu trabalho de artista com a curadoria, produzindo projetos colaborativos, publicações e textos críticos que trabalham conjuntamente o tema de aprender sobre alguns artistas de imagem em movimento e seus filmes e como eles podem ser percebidos.
Julho de 2014, editado em agosto de 2014, Edimburgo, Escócia
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1 Para mais informações sobre a Modern Edinburgh Film School
2 O primeiro Ateliê Público foi concebido em 2011 como um pequeno espaço dentro da Gallery of Modern Art (GoMA) de Glasgow. Nele, o público e um grupo de artistas, criadores e pensadores selecionados foram convidados a orientar e dar forma a uma instalação criada pelos visitantes ao longo de dez semanas. A reação à exposição foi tão positiva que surgiu o interesse de continuar o processo de experimentação já iniciado. Esta segunda experiência de curadoria em público com artistas recebeu o nome de Ateliê Público nº 2
3 Para mais informações sobre a GoMA